O jornal Badaladas faz parte do Património Cultural de Torres Vedras. Por isso, publiquei, em 6 de Dezembro, este texto:
ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA E DIVULGAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL DE TORRES VEDRAS
08 dezembro 2024
JORNAL BADALADAS EM PERIGO - CARTA ABERTA AO PADRE JOAQUIM MARIA DE SOUSA
PASSOS EM VOLTA - UM LEGADO SILENCIOSO
CEMITÉRIO DE S. JOÃO, em TORRES VEDRAS
Ontem, 7 de Dezembro, a Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV), em parceria com o sector de Turismo da Câmara Municipal de Torres Vedras - dinamizado pela Ângela Vitória - orientou mais uma visita guiada. Manhã chuvosa, que não amedrontou os 20 interessados participantes.
A introdução, à entrada do cemitério, foi feita pela Ana Rita Pereira, da Direcção da Associação, seguindo de perto o artigo que publicara, uma semana antes, no jornal Badaladas.
Já dentro do recinto, Joaquim Moedas Duarte, também da Direcção, guiou os participantes até junto das campas e jazigos de torrienses ilustres que deixaram um rasto indelével nas nossas memórias:
Fernando Vicente, resistente anti-fascista; Maria da Conceição Barreto Bastos, benemérita fundadora do Lar de S. José; António Hipólito, Francisco António da Silva e Francisco Xavier Damião, os três "latoeiros prodigiosos", fundadores das três maiores empresas torrienses do séc. XX; Vasco Parreira, Gerente da Casa Hipólito; Leonel Trindade, arqueólogo e director do Museu Municipal; Júlio Vieira, autor de celebrado livro "Torres Vedras Antiga e Moderna".
Visitámos também os talhões dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras e dos Franciscanos do Convento do Varatojo.
As fotos ilustram um pouco da actividade. O mau tempo impediu a tradicional foto do grupo.
UM OLHAR SOBRE O CEMITÉRIO DE S. JOÃO - PAPEL NA HISTÓRIA LOCAL E PARTICULARIDADES - Jornal BADALADAS 29 NOVEMBRO 2024
Um olhar sobre o cemitério de
São João – papel na história local e particularidades
Ana Rita Pereira
(Membro da Direcção da ADDPCTV)
Vamos
abordar um pouco da história daquele que foi, durante mais de um século, o
“Cemitério da Vila”, o cemitério de São João, e mostrar como este pode ser
olhado, para além de um sítio de dor, como uma representação da história da
localidade.
Nas palavras de
Fernando Catroga, «todo e qualquer cemitério (…) deve ser visto como um lugar
(…) de reprodução simbólica do universo social». Quer através da sua disposição
e dos materiais utilizados nos jazigos, quer dos próprios regulamentos, é
possível entender a hierarquia, as dinâmicas e as normas sociais e políticas de
cada época, constituindo desta forma uma memória da comunidade e da sua
história com a qual podemos aprender muito.
A criação do cemitério de S. João veio na sequência das Leis de
Saúde Pública do século XIX. O governo de Costa Cabral, iniciado
em 1842, ficou marcado por medidas transformadoras ao nível administrativo, da
instrução e da saúde públicas. No âmbito da saúde pública, destaque para o Decreto de 18 de setembro de 1844 que proibiu
definitivamente os enterramentos dentro de igrejas ou capelas, nos povoamentos
onde existisse cemitério público e requeria a aprovação de um delegado de saúde
para a realização dos mesmos. Esta
alteração, mais do que uma inovadora medida administrativa, representava grande
mudança de costumes. Até então havia uma divisão clara entre a esfera da Igreja
e a esfera pública, como era o caso dos enterramentos, que sempre se realizavam
dentro das igrejas ou em volta delas, em território sagrado e limitado aos seus
crentes. Com aquela lei, o Estado passou a interferir, obrigando à criação de
um local próprio para as inumações – um cemitério público – destinado a
qualquer tipo de pessoa, independentemente da religião praticada ou da forma de
morte, o qual devia situar-se longe do centro das localidades. O enterramento passou
a ser pago, assim como o serviço religioso.
PRIMEIRO CEMITÉRIO
PÚBLICO EM TORRES VEDRAS
Até à criação daquela
lei, em Torres Vedras os enterramentos eram realizados no cemitério da
Misericórdia, situado entre a igreja e a rua homónima, na Igreja de São Pedro e
Santiago e nos adros adjacentes, espaços sagrados. Tornou-se necessário criar
um cemitério público e, para isso, havia que definir um lugar apropriado. A cerca da Ermida de São João,
aquando das invasões francesas, fora cemitério das tropas francesas e inglesas,
em 1807 e 1811, respetivamente. Situada
num campo a nascente da vila, parecia ter as condições necessárias, mas a Ordem
Terceira, proprietária do terreno, protelou a sua construção, pois misturava católicos com crentes de outras religiões.
Procuraram-se outras soluções, como a
cerca e, até, o claustro do extinto Convento da Graça, mas a falta de
condições levou ao retorno da ideia inicial.
Em finais de 1848 o novo cemitério estava concluído, mas o facto de ter
sido lugar de enterramentos dos ingleses protestantes
atrasou a sua utilização, que desagradava à população. Só depois da cerimónia
religiosa de sagração, o cemitério pôde ser utilizado e o primeiro enterramento
fez-se em 30 de junho de 1849. O cemitério de São João passou a ser oficialmente
o «cemitério das 4 freguesias da vila», como está descrito no Quesitos em relação aos cemitérios públicos existentes no
concelho. No entanto, ocorreu ainda um
conflito com a Santa Casa da Misericórdia que continuava a querer para o seu cemitério
a exclusividade dos enterramentos dos falecidos no hospital, o que levou a que
a situação demorasse a estabilizar.
A
administração do cemitério de São João ficou oficialmente a cargo da Ordem
Terceira a partir de outubro de 1849, pois já era proprietária do terreno desde
1805, por Alvará régio. Apenas no final do século XIX a administração passou
para a Câmara Municipal. Na Sessão da
Câmara Municipal de 14 de junho de 1890 foi apresentado o projeto do
regulamento do cemitério municipal e em 2 de janeiro
de 1893 já existia uma vereação responsável pela inspeção dos «Impostos,
açougues e cemitérios».
Ao longo do século XX e até hoje, a administração do cemitério tem
oscilado entre a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, estando neste momento
a cargo da Junta de Freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães.
O cemitério reflete o crescimento da vila ao longo dos anos, pois
também este teve necessidade de se expandir. Em 17 de maio de 1884 foi comprado
um terreno perto do cemitério para garantir o seu alargamento, e em 1974, foi
aprovada a expropriação de territórios na zona de Arenes para a construção do
novo cemitério municipal – que viria a ser o cemitério de São Miguel – devido
ao estado de saturação do cemitério de São João.
Através da observação direta, da consulta das plantas presentes no
Arquivo Municipal de Torres Vedras e dos próprios regulamentos, verificamos que
o cemitério de São João é constituído por sepulturas de planta retangular e
jazigos, ambos classificados como temporários ou permanentes – sendo estes
segundos pertencentes a famílias. Como equipamentos, inicialmente tinha um
espaço para depósito de finados, uma casa destinada ao serviço médico-legal,
uma casa para o guarda do cemitério e a sua família, uma casa de depósito e uma
capela. Na área de inumações, há talhões específicos como os destinados a
bombeiros, padres e crianças. Os regulamentos revelam-se uma fonte de maior
importância para este estudo pois, através deles, é possível perceber a
organização das sepulturas e dos talhões, as regras de funcionamento do
cemitério, dos enterramentos e as coimas para os infratores. Definem-se as
características permitidas de embelezamento dos jazigos e das sepulturas,
apresentando em contraponto as que não são consentidas, como os «epitáfios que
exaltem ideias políticas ou possam ser desrespeitosos». No final do Regulamento
do Cemitério Municipal de 1923, encontramos o parecer de três médicos em
como aprovam aquele regulamento.
Os elementos decorativos e as características próprias dos jazigos
e das sepulturas permitem recolher informações sobre as profissões e/ou o papel
que o defunto teve em vida. Veja-se o já mencionado talhão dos padres, que se
separa dos demais por uma vedação e um pequeno portão decorado com uma
ampulheta com asas de anjo, como que simbolizando a passagem do tempo; ou o
talhão dos bombeiros que está acima de degraus e com uma decoração no meio com
a palavra “Bombeiros” inscrita. O jazigo do comendador António Hipólito é
decorado com uma figura feminina simbólica da Indústria, relacionando-se assim
com a sua profissão.
Ao longo do cemitério é possível encontrar várias sepulturas em
que a imagem escolhida para colocar na lápide é do defunto com a farda da sua
profissão (exemplo polícias, combatentes) ou então a forma de apresentação
remete para sua profissão como é o caso de José Maria Pinheiro da Silva Jr que
na sua descrição surge como “Bacharel formado em Direito” ou do “MAESTRO
Francisco Xavier de Melo” nomeado desta mesma forma com a profissão incluída no
seu nome.
Em suma, a evolução das formas e locais de enterramento,
permitem-nos observar as mudanças de mentalidade e medidas higiénico-sanitárias
no concelho e do país. Por um lado, dificuldade de estabilização do cemitério
público e a sua administração na última metade do século XIX revelam a
instabilidade política da época e a evolução da relação entre o Estado e a
Igreja. Por outro, a necessidade de
alargar o terreno demonstra as alterações demográficas da vila. As diferenças
dos materiais e da decoração utilizados nas sepulturas e jazigos são sinais
reveladores das diferenças de estatuto social e das profissões.
Referências: Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV) documentação
sobre os cemitérios; ASSUNÇÃO, Ana Paula de Sousa , «O valor da transfiguração
do cemitério em produto turístico. Cemitério Municipal de Loures-estudo de
caso.», Tese de Doutoramento em Turismo, Universidade de Lisboa, Lisboa,
2022;CATROGA, Fernando,«O culto dos mortos como uma poética da ausência» in
ArtCultura, n.20, Janeiro, Junho,2010,pp.163 a 182; FONSECA,
Teresa «A Guerra Civil de 1846-47 e a Administração Municipal de
Montemor-o-Novo» in Almansor, Revista de Cultura, nº1, 2ª série, 2002,
pp. 197 a 208; MATOS, Venerando Aspra de , «Elementos para o estudo da
Saúde Pública e da criação dos cemitérios públicos em Torres Vedras no século
XIX» in BARBOSA, Pedro Gomes & all ,
Turres Veteras VI, História da Morte ,Câmara Municipal de Torres
Vedras Setor da Cultura, Instituto de
Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, Torres Vedras,
2004,pp.133 a 152; Blog Vedrografias , disponível em https://vedrografias2.blogspot.com/2021/03/torres-vedras-no-seculo-xix-o-tempo-e-o.html,
Site
Parlamento.pt,
disponível emhttps://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Revolta-Maria-da-Fonte.aspx.
Monumento funerário mais antigo do cemitério de S. João, em memória de António Pedro Ferreira Campello, benemérito da St. Casa da Misericórdia, falecido em 1858.
A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO - Jornal BADALADAS - 25 OUT 2024
A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO
DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO
Vítor
Serrão
Historiador
de Arte
Prof. Catedrático Emérito da Univ. de Lisboa
Retábulo barroco da capela mor
Acabam de passar quinhentos e cinquenta
anos sobre a entrada no convento do Varatojo, em 4 de Outubro de Fevereiro de
1474, dos primeiros catorze frades vindo do Convento de São Francisco de
Alenquer. A casa, que vira em 1470 colocada a primeira pedra, sob égide do
próprio D. Afonso V (na pessoa de seu filho D. Duarte), em cumprimento do voto
a Santo António e São Francisco se o auxiliassem nas conquistas do Norte de
África, abria então sob direcção do Provincial Franciscano Fr. João da Póvoa. O
rei dedicou grande afeição ao convento, onde com frequência se recolhia, o que
explica a qualidade das obras, desde o claustro gótico primevo, ao portal
gabletado da igreja, à célebre janela de canto, junto à portaria, que pertencia
aos aposentos régios, ao tecto de alfarge mudéjar da entrada, e outros
pormenores coevos da campanha de final do século XV.
A qualidade da arquitectura gótica, bem
como o recheio setecentista de talha, imaginária e azulejos, tem feito esquecer
o importante acervo de pintura que o convento ainda conserva. São cerca de
oitenta quadros, entre os quais se acham obras pouco conhecidas de Gaspar Dias,
Belchior de Matos, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, Vincenzo Baccherelli e Diogo
Magina, e vários «anónimos». A convite de Frei Vítor Melícias e da comunidade
franciscana, proferi uma conferência a 4 de Outubro passado, tendo tido
oportunidade para divulgar o resultado dos estudos preliminares sobre esse acervo,
que merece inventariação, análise científica, medidas de conservação e restauro
e, em último lugar, musealização condigna.
Impõe especial destaque o antigo retábulo
da capela-mor, custeado pela corte de Avis-Beja e dado a fazer à oficina de um
dos mais respeitados artistas de Lisboa no último terço do século XVI: o pintor
GASPAR DIAS. Como se sabe, a capela-mor antes da actual (que é barroca-pedrina e
de início do século XVIII) era uma 'reforma' do primitivo edifício gótico e foi
custeada pela Rainha regente D. Catarina de Áustria, já viúva de D. João III, cerca
de 1565-70. As obras prolongaram-se, por várias razões (a que a crise política
não foi alheia), e só em 1582 o retábulo estava pronto. O conjunto, constituído
por sete óptimas tábuas maneiristas, teve ainda financiamento de Filipe I de
Portugal, que chegou a visitar o convento. Até às remodelações barrocas que
geraram o actual retábulo (com talha de António Martins Calheiros e tela de
Vincenzo Baccherelli), o retábulo-mor reunia sete pinturas de notabilíssima
valia.
Estas pinturas, que mereceram já estudo a
autores como Adriano de Gusmão, Pedro Flor, Susana Flor, José Alberto Seabra,
Fernando Baptista Pereira, Vanessa Antunes e outros, estão sujas e danificadas
(mas sem vestígios de repintes) e, por isso, muito esquecidas e ignoradas dos
estudiosos, pelo que reclamam estudo integrado, consolidação, análises e
tratamento laboratorial. Um projecto já entretanto aprovado, que envolve as
equipa de técnicas da Associação TENTO, irá dar início, em boa hora, a esse
processo.
O PINTOR GASPAR DIAS
São sete pinturas a óleo sobre madeira,
como se disse, outrora colocadas no retábulo-mor em três andares sobrepostos: desde
o tempo de D. João V, quatro estão colocadas nas paredes laterais da capela-mor
barroca, com molduras de talha apostas após o apeamento. A ANUNCIAÇÃO, a
ADORAÇÃO DOS MAGOS (à esquerda), a ADORAÇÃO DOS PASTORES e a APARIÇÃO DE CRISTO
À VIRGEM (à direita). No arco triunfal, vemos (muito alta) a RESSURREIÇÃO DE
CRISTO. Na sacristia, enfim, encontram-se o PENTECOSTES e o MILAGRE EUCARÍSTICO
DE SANTO ANTÓNIO, que são as de maior formato; estavam ao centro das duas
fiadas principais do conjunto.
Os saberes decorrentes do estudo histórico,
artístico, iconográfico, iconológico e comparativo confirmam muitos indicadores
e estilemas que aproximam estas sete pinturas da 'maneira' de Gaspar Dias, um
grande pintor de Lisboa formado em Roma e em Parma, que foi influenciado pelos
modelos da tradição rafaelesca e 'pierinesca', bem como por Parmigianino, e que
actua entre 1555 e 1594, data provável da morte, e a quem se devem a famosa ‘Aparição
do Anjo a São Roque’ da igreja de São Roque e duas das tábuas do retábulo
da Luz de Carnide, onde o desenho de figura, a largueza dos panejamentos e a
cenografia da arquitectura têm preciosismos de pincel, resoluções consistentes,
pessoalismos de estilo e afinidades acentuadas com as tábuas do Varatojo.
Tratar-se-á, portanto, de obras devidas a
Gaspar Dias, o pintor da Casa da Índia e Minas, muito estimado no seu tempo
pela sua «delicadeza» e «grande maneira», qualidades que se
destacam nestes painéis de final de carreira. Um pintor de alta craveira,
actualíssimo de modelos e internacionalizado de formação. Pormenores como as
peças de ourivesaria dos magos, a cesta de legumes dos pastores (uma verdadeira
natureza-morta avant la lettre !), as belas arquitecturas clássicas dos
fundos, os tapetes turcos, os elegantes panejamentos soprados, e a caracterização
dos gestos, rostos e posturas, tudo atesta uma obra de altíssima qualidade e de
inspiração italiana, que urge recuperar, estudar e divulgar na medida das suas
valências.
14 outubro 2024
CASTELO DE TORRES VEDRAS | BADALADAS - 4 OUTUBRO 2024
A propósito do Dia Nacional dos Castelos
algumas reflexões sobre o estado de conservação e o uso do
CASTELO DE TORRES
VEDRAS
Desde 1984 que se comemora em outubro o Dia Nacional dos Castelos, com o objetivo de promover em todo o país iniciativas e atividades que visam o conhecimento e a reflexão sobre o património fortificado (1). Os castelos são testemunhos da memória coletiva dos povos e representam uma importante referência arquitetónica, histórica, cultural e simbólica de um país.
E foi precisamente há 40 anos, que a ADDPCTV promoveu uma
jornada comemorativa a nível nacional, em colaboração com a Associação dos Amigos
dos Castelos e a Câmara Municipal, que terá marcado o início de uma era de
renovado interesse pelo nosso Castelo.
Desde então para cá, e ao contrário de uma certa percepção,
o monumento tem sido objecto de maior cuidado, se considerarmos o estado de
abandono em que se encontrava.
A ocorrência de escavações arqueológicas, a realização do”
Castelo deMúsica”, a reabertura da Igreja de Santa Maria, a colocação de placas
informativas no recinto e o relativo asseio do espaço visitável, mas sobretudo,
a criação do polo informativo no Torreão, com informação adequada - um vídeo de
grande qualidade que explica ao visitante o tipo de construção que as ruínas tornam
difícil de perceber – são entre outros, factores que dignificam o nosso
castelo. E apesar de tudo, o Castelo continua a ser o monumento mais visitado –
por turistas, que não por torrienses.
UMA PROPOSTA A TER EM CONTA
Vem tudo isto a propósito da reafirmação recente de uma
proposta do movimento político local - Unidos por Torres Vedras - visando: “...
fazer do Castelo um equipamento vivo, trazendo novas valências e atividades
culturais de lazer que permitam o usufruto dos torrienses”, como se pode ler
num comunicado bem formulado, onde não falta o cuidado com a referência à
manutenção de ...” todos os traços de identidade” ... e ao seu enquadramento
...” como âncora à urgente dinamização do centro histórico”. E conclui a sua
posição com a proposta de ... “abertura de um Concurso de Ideias para
requalificar o Castelo” ... através de …”um processo que resulte de uma
discussão pública sobre a natureza da recuperação, dando voz a especialistas e
à população do concelho”. Perante tal iniciativa, a Associação do Património de
Torres Vedras tem o dever, em primeiro lugar, de se congratular pela inequívoca
demonstração de interesse pelo monumento que simbolicamente se afirma como
imagem fundacional da nossa ancestral comunidade. Mas igualmente se impõe o compromisso
de alertar para alguns perigos que uma ideia assim formulada, com justas e
defensáveis motivações, possa acarretar. Sem se discutir a importância da fruição
pública do Património, há que reconhecer que alguns problemas de manutenção
resultam de um uso massivo como espaço de “eventos”. Alguns dos danos que a
seguir elencamos, devem-se ou são potenciado precisamente por eventos a que acorre
um tipo de público pouco respeitador da herança cultural e por uma organização
menos cuidada, quer pela falta de preparação e insuficiência de meios materiais
e humanos.
CUIDAR, CONSERVAR, RESTAURAR
O fundamental deve ser a acção de preservação do castelo, função legalmente atribuída à Câmara Municipal torriense, cujo trabalho temos seguido, não deixando de, a espaços, chamarmos a atenção para alguns aspectos mais relevantes. Como é o caso da Porta do Paço dos Alcaides que apresenta uma situação de risco, uma vez que se encontra desprovida das grandes peças de cantaria numa das umbreiras. A reposição destas pedras é fundamental para a sustentação do pesado lintel em arco abatido. Igualmente as umbreiras da porta de acesso ao cimo do torreão apresentam um grande desgaste. No interior do Paço - um espaço aparentemente apetecível para concertos e afins - o piso em calçada (original) está cada vez mais deteriorado, agravado pela passagem de materiais pesados que são arrastados, provocando falhas nas estruturas e levantamento de pedras. A presença de um número significativo de pessoas neste tipo de eventos também tem provocado o derrube de vestígios remanescentes dasconstruções interiores do paço. Nas grossas paredes exteriores são várias as zonas em que é visível a falta de reboco de consolidação, a exigir uma continuada atenção. Também a colocação de sinalética, com materiais não adequados tem como resultado a degradação das paredes. Porque, não nos iludamos, pela aparência rude das ruínas do castelo podemos intuir uma ideia de robustez, mas na realidade elas são uma estrutura frágil. Não esquecer que estão ali, pelo menos, cinco séculos de desgaste, um terramoto, e duas campanhas militares.
SIM AO DEBATE DE IDEIAS
Dito isto, que não se subentenda uma desaprovação da iniciativa – que saudamos – mas antes um apelo ao cuidado pelo compromisso fundamental para com o Património, que é o de o preservar para os vindouros. Até lá, que se continue a manter e reparar as estruturas, a cuidar dos caminhos, a cortar as ervas, para que possamos sentir a sua presença como algo que nos assegura um sentimento de pertença e nos insufla a ideia de continuidade geracional, em suma, que nos irmana num sentimento de comunidade. Essa é a principal função do Património.
(1(1) Inicialmente era celebrado no primeiro sábado do
mês mas em 2003 estabeleceu-se o dia 7 como a data oficial.
IGREJA DE SANTIAGO - Jornal BADALADAS | 6 de Setembro 2024
IGREJA DE SANTIAGO –
TORRES VEDRAS
VI FESTIVAL DE MÚSICA
ANTIGA DE TORRES VEDRAS
Joaquim
Moedas Duarte
(texto e
fotos)
O VI Festival de Música
Antiga de Torres Vedras decorreu entre 18 de Maio e 29 de Junho do corrente
ano. Organizado pelo sector de Cultura da Câmara Municipal, com a curadoria do
organista e professor Daniel Oliveira, teve como linha condutora a ligação
entre a Música e o Património religioso edificado. A Associação do Património
de Torres Vedras (ADDPCTV) colaborou, fazendo em cada concerto a
contextualização patrimonial do espaço em que ele decorria. Em 26 de Junho, foi
na Igreja de Santiago, na cidade de Torres Vedras.
O TEMPLO
De novo marcámos
encontro nesta Igreja de Santiago, numa feliz articulação entre o Património
Edificado e o Património Musical.Recordemos alguns aspectos essenciais sobre
este templo:
Foi uma das quatro
Igrejas matrizes de Torres Vedras, bem no Centro Histórico da então Vila
Medieval. Sabemos da sua existência já em 1248 / séc. XIII.
O espaço em que hoje
estamos resulta da reconstrução da antiga ermida, feita entre os séculos XVI e
XVII.
Do séc. XVI temos três
relíquias:
O portal principal, de estilo manuelino, que o
tempo e a poluição têm vindo a degradar inexoravelmente; a pia baptismal, numa
capela cujo desleixo e indiferença dos responsáveis religiosos tornam indigna
desta peça preciosa, onde foram baptizados milhares de antepassados nossos; uma
escada de pedra, em caracol, igualmente vítima de grande desleixo, que dá
acesso ao coro alto, onde restam os vestígios de um cadeiral, datado de 1634,
infelizmente em ruínas. Este coro é de grande monumentalidade, assente em três
arcos, dos quais o do meio é abatido, com elegante desenho.
Olhemos bem a abóbada: em forma de berço, de grandes
caixotões, sobreviveu ao terramoto de 1755, ao contrário das outras igrejas de
Torres Vedras. Ela cobre uma nave muito ampla, onde existiam seis altares, três
de cada lado. Estão hoje completamente desfigurados, pois este templo foi retirado
do culto em meados do séc. XX. Destaca-se, no corpo da Igreja, o belíssimo
púlpito, todo em mármore, do século XVII. Está hoje quase ao nível dos nossos
olhos pois o chão da Igreja sofreu múltiplos alteamentos, devido às frequentes
cheias do Sizandro, que inundavam o interior.
Na parede onde se abre
o arco triunfal, foram descobertas, durante umas obras de restauro, há cerca de
quarenta anos, pinturas murais que estavam cobertas por estuque, provavelmente
do século XVIII, época da última grande reconstrução da Igreja, em que terá
sido erguida a actual fachada, com a torre sineira.
Mas a maior riqueza
decorativa deste templo está na capela mor. Vejam-se os dois silhares de
azulejos figurativos, do século XVIII, atribuídos ao Mestre PMP, que
representam os atributos de Santiago: a cruz e os apetrechos do peregrino.
Sobre estes azulejos, há quatro telas, recentemente restauradas, representando
quatro doutores da Igreja: do lado esquerdo (Evangelho), S. Jerónimo e Santo
Agostinho; do lado direito (Epístola), Santo Ambrózio e S. Gregória Magno.
O retábulo, que seria
em talha dourada, característica do estilo barroco, está reduzido à estrutura
base, mas mantém no alto uma cartela com as insígnias de Santiago. E assenta
num friso de mármores embutidos. No teto, há belos ornatos que preenchem o
espaço entre os arcos de sustentação.
De referir ainda, na
sacristia, o monumental lavabo, também de mármores embutidos e o grande arcaz
com ferragens do séc. XVIII.
DEFICIENTE PRESERVAÇÃO
Esta Igreja, por
iniciativa da Escola Secundária Henriques Nogueira e da Associação para a
Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras (ADDPCTV), foi classificada
pelo Governo da República Portuguesa, em 2013, como Monumento de Interesse Público.
Este facto implica
responsabilidades acrescidas de preservação e conservação. Infelizmente,
verificamos que, a notável acção de valorização desta Igreja, realizada
pelo falecido Pároco, Padre Daniel
Batalha, não teve continuidade. Entre outras intervenções necessárias,
necessitam de obras urgentes a capela baptismal e a escada do coro – obras que
até nem seriam muito dispendiosas.
Respondendo à
importância deste Monumento, a Câmara Municipal, com a aquiescência da Paróquia,
incluíu-o no Projecto ISA Património, o que permite que ele esteja aberto ao
público todos os dias da semana, excepto à Segunda-feira. É triste que as
pessoas que o visitam verifiquem que, afinal, uma parte significativa dele
esteja em tão lamentável estado de conservação.
13 agosto 2024
PASSEIO DOS POETAS - PRAIA DE SANTA CRUZ
PASSEIO DOS POETAS
Joaquim Moedas Duarte
Integrado no projecto PASSOS EM VOLTA, realizou-se no dia 10 de Julho de 2024, o Passeio dos Poetas, na praia de Santa Cruz, guiado por Joaquim Moedas Duarte, membro da Direcção da Associação do Património (ADDPCTV) de Torres Vedras.
IGREJA DE S. DOMINGOS DE CARMÕES - VI FESTIVAL DE MÚSICA ANTIGA DE TORRES VEDRAS / Jornal BADALADAS 26 JULHO 2024
IGREJA DE S. DOMINGOS DE CARMÕES
VI FESTIVAL DE MÚSICA ANTIGA DE TORRES VEDRAS
Joaquim Moedas Duarte
(Texto e fotos)
Entre 18 de Maio e 29 de Junho deste ano, decorreu
o VI Festival de Música Antiga de Torres
Vedras, organização da Câmara Municipal de Torres Vedras. Foi seu curador
Daniel Oliveira, Professor de Órgão na empresa Escola Artística de Música do
Conservatório Nacional. O conceito que inspirou os cinco concertos está
expresso no texto de apresentação pública: “Criando pontes entre o passado e o
presente, o Festival de Música Antiga de Torres Vedras convida-nos, a todos, a
uma autêntica viagem pelo património histórico de Torres Vedras”.
A Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV), através de Joaquim
Moedas Duarte, membro da Direcção daquela associação, foi parceira, fazendo em
cada concerto a contextualização patrimonial do espaço em que ele decorria. Em
16 de Junho, foi na Igreja de S. Domingos de Carmões.
A IGREJA
Em 1758, o Padre Baltazar Freyre da Costa, pároco
de S. Domingos de Carmões, respondeu ao inquérito que foi mandado fazer pelo
Marquês de Pombal sobre os estragos feitos na sua paróquia pelo terramoto de
1755.
A igreja de que ele fala é bem diferente desta em
que hoje estamos. Ficou bastante arruinada e as obras de arranjo demoraram
porque, diz ele: “esta freguesia é
pequena e pobre, os habitantes todos tiveram destruição nas suas casas, que
para nelas habitarem repararam como puderam o mais necessário, e no tempo
presente estão mais necessitados pela falta e careza do pão, por cuja causa
estão mais aptos para pedirem esmolas do que para poderem fazer a sua
Paróquia”.
Mais adiante, informa que na igreja caíram dois
pedaços da abóbada, um sobre o coro que abateu, e outro junto ao arco do
cruzeiro. Toda a abóbada ficou fendida pelo meio, o arco desuniu-se, as paredes
com fendas, assim como a tribuna da capela mor, “que é de pedraria com quatro
colunas manchadas de branco e vermelho. A torre do sino ficou com muitas
aberturas e fendas,, mas não caiu talvez por estar presa na parte superior com linhas de ferro”.
Lembremos:
Carmões é lugar antigo, já referido documentalmente
no início do séc. XIV. Devido ao crescimento do número de moradores, aqui se
fez uma ermida em 1507, para assistência religiosa aos moradores, e logo depois
se constituiu a paróquia, subordinada à Igreja de S. Pedro, de Torres Vedras.
Esta é uma zona onde se estabeleceram grandes
quintas, sinal de prosperidade agrícola em que pontificavam famílias abastadas.
Em época de grande religiosidade, dever-se-á a estas famílias a substituição da
ermida primitiva por um templo maior, onde se instituíram capelas de devoção e
sufrágio fúnebre, jazigos para inumação de defuntos ilustres. É isso mesmo que
vemos nas lápides de dois altares laterais: do lado da Epístola, a capela
instituída em 1630 por Francisco Mendo Trigoso, da família que foi proprietária
da Quinta do Belo Jardim, aqui em Carmões e que mais tarde se ligaria com a
família Aragão, da Quinta Nova, em Matacães. Esta capela foi reformada mais
tarde, como se pode ver nas diversas inscrições, nas quais surge a data de
1775.
Do lado do Evangelho, temos a capela instituída
pelo Padre Iº [Inácio? Ierónimo?] da Costa Queirós, em 1639, de uma família que
terá sido de boa abastança.
Há também referências a um ramo da família Botto
Pimentel, que tem jazigo mais recente no cemitério de Carmões, e de que se
conhecem inumações nesta igreja.
Esta enumeração pode explicar a riqueza decorativa
do templo em que estamos.
Desde logo a profusão de mármores em todos os
retábulos, conferindo unidade de conjunto. O da Capela Mor, com colunas de
mármore rosa e veios brancos, e capitéis compósitos. Nos outros altares, há
mármores de diversas cores. Nota especial para as mesas de altar, em bloco
maciço de mármore amarelo. Nas paredes laterais da Capela Mor, os mármores são
substituídos por belíssimos estuques marmoreados.
Para não nos alongarmos, referimos resumidamente o
que merecerá um olhar mais demorado:
O Trono do Santíssimo, no retábulo da capela-mor; colunas
do coro alto, com belos capitéis e altos socos; capela batismal; silhar de
azulejos do final do Séc. XVIII (D. Maria).
No altar da capela do P. Queirós, uma tábua do Séc.
XVII, representando “A Virgem com o Menino intercedendo pelas Almas”.
Belíssimo lavabo da sacristia, datado de 1772.
PRESERVAÇÃO
Mas o tempo não parou na época dos antepassados que
nos legaram este magnífico templo.
Os anos gastaram, e até arruinaram, o que eles
fizeram. Só a persistência e o amor pelo Património, que são timbre da comunidade
de Carmões, explicam que possamos admirar este espaço como se ele tivesse sido
acabado de construir.
Referência justa à comunidade religiosa e ao
empenho de pessoas como Georges Steyt e Altino Cunha, Padre Diamantino
Teixeira, Pároco de S. Domingos de Carmões entre 2015 e 2021. De salientar,
também, o apoio constante da Câmara Municipal de Torres Vedras.
Como se sentiria feliz, o Padre Baltazar, se aqui
estivesse hoje. Ficaria como nós, fascinado por este magnífico espaço, onde
iremos ouvir a música que foi criada no tempo em que esta igreja foi
restaurada, depois do terramoto, o magnificente e festivo Séc. XVIII.
Um outro japonês em Santa Cruz - Memória de um drama / Jornal BADALADAS - 28 JUNHO 2024
Um outro japonês em Santa Cruz
Memória de um drama
Manuela
Catarino
“A memória é um elemento
essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje” escreveu o historiador Jacques Le Goff,
sublinhando que a “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”1
I
– 2024, Santa Cruz
Numa tarde de conversa, a
propósito de factos relacionados com os quotidianos e a história da praia de
Santa Cruz, relembrava-se a figura do escritor japonês Kazuo Dan, que escolheu ali
viver nos anos 70 do século passado. A certa altura, um dos interlocutores
acabou por referir uma antiga memória, transmitida pelo pai e pelo avô, sobre
um outro nipónico que teria tido naquelas águas um fim trágico. Ignorava o nome
e as razões da sua vinda, mas uma certeza tinha: havia acontecido em Santa
Cruz.
A inicial surpresa deu lugar
à necessidade de saber algo mais. Fomos em busca dos factos, esperando que as
fontes documentais nos elucidassem. Queríamos recuperar aquela memória.
II
– 1910, Miss Phoebe Roberts, Campeã mundial de luta Ju-Jitsu, em Portugal
A presença de Phoebe Roberts,
em Portugal, mereceu honras de destaque na revista Ilustração Portugueza de Janeiro de 1910. Uma novidade e um assombro assim
se lhe referia o articulista, contrapondo o seu aspecto franzino, longa trança
loura e olhos azuis (denotando a sua ascendência britânica) ao das mulheres de
forças que habitualmente se apresentavam nos circos.2
Phoebe
Roberts e Yuzo Hirano segundo a Illustração
Portugesa
Nascida em 1887, em
Londres, começou aos quinze anos a tomar as primeiras lições de Ju-Jitsu na Japanese
School of Jujitsu, em Oxford Street, onde, em breve, pelas suas capacidades
excepcionais se tornou instrutora e atleta. A escola tinha então mestres de
nomeada – de entre os quais Yukio Tani,
Taro Miyake, e Yuzo Hirano. A carreira de Phoebe foi ganhando o maior destaque
na Inglaterra. Em 1907, mestre Hirano e Phoebe casaram, partilhando ambos não
apenas o gosto pela prática do ensino como o da divulgação do Ju-Jitsu pela
Europa. Numa dessas visitas chegaram a Portugal, suscitando a admiração do público.
As apresentações foram um êxito como noticiado na Illustração Portugueza. O casal prosseguiu a sua actividade em
outros palcos europeus e, em 1915, Hirano voltaria a Portugal.
III–
1915, O Circo Royal em Torres Vedras
Em Março de 1915, na sala
do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o Cirque
Royal de Bruxellas apresentara, para além da sua companhia equestre, e de
outros interessantes artistas, a estreia de “L’homme sans peur” protagonizado pelos equilibristas “Beby and Glads”,
com estrondoso sucesso.
O
Circo Royal na sua digressão por
Portugal 3
–
Feira de Santiago, Setúbal (1915).
Em 30 de Setembro desse
ano, noticiava o jornal A Vinha de Torres
Vedras que se havia instalado, na porta da Várzea, a companhia do Circo Royal, de Bruxelas, e que as três sessões
apresentadas tinham tido um agrado muito grande do público. Informava, ainda,
que se faria um espectáculo de gala “com a despedida da família Villani” e no
sábado seguinte actuaria o aclamado “clown Beby Frediani”, com a apresentação
de novos artistas e grande campeonato de luta greco-romana.
Era acontecimento para atrair
gentes da vila e dos arredores. A fama do Circo
Royal chegava de várias partes do país, e do mundo, onde se apresentara com
o maior sucesso: entre várias piruetas e
destrezas, o arriscado número da família Frediani com a coluna de três
acrobatas sobre o dorso de um cavalo a galope, fascinava e atemorizava
plateias. Dois irmãos, Willy e Aristodemo (Beby) completavam, em altura, a
acrobática coluna com Zizine, filho do primeiro.
Beby sofreu várias quedas
que o incapacitariam cada vez mais para as acrobacias equestres, o que veio a
acontecer em 1918. Todavia, a sua natureza de comediante, proporcionou-lhe a
criação de uma figura muito especial – a
do “clown” desajeitado e manhoso que desencadeava o riso. Perdia-se o acrobata,
nascia o palhaço.
IV-
1915, Outubro, praia de Santa Cruz
Na edição de 7 de Outubro
de A Vinha de Torres Vedras lia-se em
notícia de primeira página: “Na segunda
feira foram passear á praia de Santa Cruz os artistas Beby Frediani e sua
esposa Gladis Frediani, que aqui teem trabalhado nesta vila, no Circo Royal.
Acompanhava-os o professor Kirano, que
viera de Lisboa para lutar com Beby no domingo e estando annunciada nova luta
para aquele dia em que se deu o trágico sucesso que vamos narrar.”
O drama acontecera à
frente de todos: vestidos os fatos de banho, os três amigos foram, contudo, “advertidos pelo banheiro José do Pisão” da
perigosidade do mar. “Kirano, confiando
nas suas forças, entrou na agua e nadando, rompeu tres ondas, mas, no mesmo
instante virou-se para terra, parecendo aflito, a pedir socorro. Mrs. Gladis,
com uma intrepidez notável, atirou-se á agua em auxilio do lutador japonez,
mas, chegada junto a Kirano, foi por este agarrada por um pé, e no meio das
suas aflições, fez esforços supremos para se livrar. Uma onda arremessou Kirano
sobre uns penedos, fazendo-o desaparecer e atirando mrs. Gladis para a praia,
onde a meio caminho se agarrou ao salva – vidas, sendo recolhida já sem
forças.”
A senhora Gladis foi
prontamente assistida pelo médico Francisco Esteves de Oliveira, que se
encontrava na praia. O corpo de mestre Yuzo Hirano nunca mais apareceu. A sua
viúva Phoebe voltaria a casar, em 1916 com D. Carlos de Castro Henriques.
Falecida em Outubro de 1936, foi sepultada no cemitério do Prado do Repouso, na
cidade do Porto.
Esta tragédia seria
recordada, em Agosto de 1931, nas páginas de O Jornal de Torres Vedras a propósito de uma ocorrência com uns
jovens banhistas da Merceana, que se atreveram a desafiar imprudentemente as
ondas. Também nesse drama de nada valeram os esforços do então banheiro Joaquim
da Perpétua. Da memória dos habitantes fazia eco o jornal: “É certo que, felizmente, depois da morte do
celebre nadador japonês, Kirãno(?) e isto ha jà uns quinze anos, não nos ocorre
que alguém mais, pereceu nas aguas de Santa Cruz”.
V
– 2024, Santa Cruz
Passou mais de um século
do infausto acontecimento que ceifou a vida ao mestre de Ju-Jitsu, Yazu Hirano
no mar de Santa Cruz. Das gerações que, entre si, foram transmitindo oralmente
o sucedido, possivelmente muito poucos estarão vivos para o relembrar. Restam
as fontes documentais, acervos da memória, para nelas recolher e tentar reconstituir
os acontecimentos. Nesta partilha que fazemos procurámos resgatar do
esquecimento não apenas a figura de um individuo, mas também evocar mais um elo
de ligação entre as vivências de uma comunidade.
NOTAS:
1- Jacques
Le Goff, “Memória”In Enciclopédia Einaudi,
Volume I Memória-História, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp.46-47.
2- Illustração Portugueza,
Nº 204, Lisboa, 17 de Janeiro de 1910, pp. 86-87.
3- Imagem
reproduzida de José Manuel Madureira Lopes e Alberto Manuel de Sousa Pereira, A indústria das conservas de
peixe em Setúbal, Estuário, 2015.
4-
“ 1910 – A primeira Senhora praticante de Ju-Jutsu em Portugal: Phoebe
Laugthon ou Miss Roberts Phoebe” in
5- Miss
Phoebe Roberts, “Champion Lady Ju-Jitsu Wrestler of the World” in
https://bartitsusociety.com/miss-phoebe-roberts-champion-lady-ju-jitsu-wrestler-of-the-world/
6-
Dominique Denis, “
Augusto Frediani, fondateur de la célébre lignée” In https://www.circus-parade.com/2021/03/06/augusto-frediani-fondateur-de-la-celebre-lignee/
7- “ Aristodemo Frediani dit Beby ( 1885-1958) in
https://www.cirk75gmkg.com/article-aristodemo-frediani-dit-beby-1885-1958-103460537.html
8- O Thalassa,
Anno III, nº92, Lisboa, 19 de Março de 1915.
9- A Vinha de Torres Vedras, XXI
Ano, Nº 1:130, 30 de Setembro de 1915.
10- A Vinha de Torres Vedras, XXI
Ano, Nº 1:131, 7 de Outubro de 1915.
11- O Jornal de Torres Vedras, Ano
III, Nº109, 2 de Agosto de 1931.