Um outro japonês em Santa Cruz
Memória de um drama
Manuela
Catarino
“A memória é um elemento
essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje” escreveu o historiador Jacques Le Goff,
sublinhando que a “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”1
I
– 2024, Santa Cruz
Numa tarde de conversa, a
propósito de factos relacionados com os quotidianos e a história da praia de
Santa Cruz, relembrava-se a figura do escritor japonês Kazuo Dan, que escolheu ali
viver nos anos 70 do século passado. A certa altura, um dos interlocutores
acabou por referir uma antiga memória, transmitida pelo pai e pelo avô, sobre
um outro nipónico que teria tido naquelas águas um fim trágico. Ignorava o nome
e as razões da sua vinda, mas uma certeza tinha: havia acontecido em Santa
Cruz.
A inicial surpresa deu lugar
à necessidade de saber algo mais. Fomos em busca dos factos, esperando que as
fontes documentais nos elucidassem. Queríamos recuperar aquela memória.
II
– 1910, Miss Phoebe Roberts, Campeã mundial de luta Ju-Jitsu, em Portugal
A presença de Phoebe Roberts,
em Portugal, mereceu honras de destaque na revista Ilustração Portugueza de Janeiro de 1910. Uma novidade e um assombro assim
se lhe referia o articulista, contrapondo o seu aspecto franzino, longa trança
loura e olhos azuis (denotando a sua ascendência britânica) ao das mulheres de
forças que habitualmente se apresentavam nos circos.2
Phoebe
Roberts e Yuzo Hirano segundo a Illustração
Portugesa
Nascida em 1887, em
Londres, começou aos quinze anos a tomar as primeiras lições de Ju-Jitsu na Japanese
School of Jujitsu, em Oxford Street, onde, em breve, pelas suas capacidades
excepcionais se tornou instrutora e atleta. A escola tinha então mestres de
nomeada – de entre os quais Yukio Tani,
Taro Miyake, e Yuzo Hirano. A carreira de Phoebe foi ganhando o maior destaque
na Inglaterra. Em 1907, mestre Hirano e Phoebe casaram, partilhando ambos não
apenas o gosto pela prática do ensino como o da divulgação do Ju-Jitsu pela
Europa. Numa dessas visitas chegaram a Portugal, suscitando a admiração do público.
As apresentações foram um êxito como noticiado na Illustração Portugueza. O casal prosseguiu a sua actividade em
outros palcos europeus e, em 1915, Hirano voltaria a Portugal.
III–
1915, O Circo Royal em Torres Vedras
Em Março de 1915, na sala
do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o Cirque
Royal de Bruxellas apresentara, para além da sua companhia equestre, e de
outros interessantes artistas, a estreia de “L’homme sans peur” protagonizado pelos equilibristas “Beby and Glads”,
com estrondoso sucesso.
O
Circo Royal na sua digressão por
Portugal 3
–
Feira de Santiago, Setúbal (1915).
Em 30 de Setembro desse
ano, noticiava o jornal A Vinha de Torres
Vedras que se havia instalado, na porta da Várzea, a companhia do Circo Royal, de Bruxelas, e que as três sessões
apresentadas tinham tido um agrado muito grande do público. Informava, ainda,
que se faria um espectáculo de gala “com a despedida da família Villani” e no
sábado seguinte actuaria o aclamado “clown Beby Frediani”, com a apresentação
de novos artistas e grande campeonato de luta greco-romana.
Era acontecimento para atrair
gentes da vila e dos arredores. A fama do Circo
Royal chegava de várias partes do país, e do mundo, onde se apresentara com
o maior sucesso: entre várias piruetas e
destrezas, o arriscado número da família Frediani com a coluna de três
acrobatas sobre o dorso de um cavalo a galope, fascinava e atemorizava
plateias. Dois irmãos, Willy e Aristodemo (Beby) completavam, em altura, a
acrobática coluna com Zizine, filho do primeiro.
Beby sofreu várias quedas
que o incapacitariam cada vez mais para as acrobacias equestres, o que veio a
acontecer em 1918. Todavia, a sua natureza de comediante, proporcionou-lhe a
criação de uma figura muito especial – a
do “clown” desajeitado e manhoso que desencadeava o riso. Perdia-se o acrobata,
nascia o palhaço.
IV-
1915, Outubro, praia de Santa Cruz
Na edição de 7 de Outubro
de A Vinha de Torres Vedras lia-se em
notícia de primeira página: “Na segunda
feira foram passear á praia de Santa Cruz os artistas Beby Frediani e sua
esposa Gladis Frediani, que aqui teem trabalhado nesta vila, no Circo Royal.
Acompanhava-os o professor Kirano, que
viera de Lisboa para lutar com Beby no domingo e estando annunciada nova luta
para aquele dia em que se deu o trágico sucesso que vamos narrar.”
O drama acontecera à
frente de todos: vestidos os fatos de banho, os três amigos foram, contudo, “advertidos pelo banheiro José do Pisão” da
perigosidade do mar. “Kirano, confiando
nas suas forças, entrou na agua e nadando, rompeu tres ondas, mas, no mesmo
instante virou-se para terra, parecendo aflito, a pedir socorro. Mrs. Gladis,
com uma intrepidez notável, atirou-se á agua em auxilio do lutador japonez,
mas, chegada junto a Kirano, foi por este agarrada por um pé, e no meio das
suas aflições, fez esforços supremos para se livrar. Uma onda arremessou Kirano
sobre uns penedos, fazendo-o desaparecer e atirando mrs. Gladis para a praia,
onde a meio caminho se agarrou ao salva – vidas, sendo recolhida já sem
forças.”
A senhora Gladis foi
prontamente assistida pelo médico Francisco Esteves de Oliveira, que se
encontrava na praia. O corpo de mestre Yuzo Hirano nunca mais apareceu. A sua
viúva Phoebe voltaria a casar, em 1916 com D. Carlos de Castro Henriques.
Falecida em Outubro de 1936, foi sepultada no cemitério do Prado do Repouso, na
cidade do Porto.
Esta tragédia seria
recordada, em Agosto de 1931, nas páginas de O Jornal de Torres Vedras a propósito de uma ocorrência com uns
jovens banhistas da Merceana, que se atreveram a desafiar imprudentemente as
ondas. Também nesse drama de nada valeram os esforços do então banheiro Joaquim
da Perpétua. Da memória dos habitantes fazia eco o jornal: “É certo que, felizmente, depois da morte do
celebre nadador japonês, Kirãno(?) e isto ha jà uns quinze anos, não nos ocorre
que alguém mais, pereceu nas aguas de Santa Cruz”.
V
– 2024, Santa Cruz
Passou mais de um século
do infausto acontecimento que ceifou a vida ao mestre de Ju-Jitsu, Yazu Hirano
no mar de Santa Cruz. Das gerações que, entre si, foram transmitindo oralmente
o sucedido, possivelmente muito poucos estarão vivos para o relembrar. Restam
as fontes documentais, acervos da memória, para nelas recolher e tentar reconstituir
os acontecimentos. Nesta partilha que fazemos procurámos resgatar do
esquecimento não apenas a figura de um individuo, mas também evocar mais um elo
de ligação entre as vivências de uma comunidade.
NOTAS:
1- Jacques
Le Goff, “Memória”In Enciclopédia Einaudi,
Volume I Memória-História, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp.46-47.
2- Illustração Portugueza,
Nº 204, Lisboa, 17 de Janeiro de 1910, pp. 86-87.
3- Imagem
reproduzida de José Manuel Madureira Lopes e Alberto Manuel de Sousa Pereira, A indústria das conservas de
peixe em Setúbal, Estuário, 2015.
4-
“ 1910 – A primeira Senhora praticante de Ju-Jutsu em Portugal: Phoebe
Laugthon ou Miss Roberts Phoebe” in
5- Miss
Phoebe Roberts, “Champion Lady Ju-Jitsu Wrestler of the World” in
https://bartitsusociety.com/miss-phoebe-roberts-champion-lady-ju-jitsu-wrestler-of-the-world/
6-
Dominique Denis, “
Augusto Frediani, fondateur de la célébre lignée” In https://www.circus-parade.com/2021/03/06/augusto-frediani-fondateur-de-la-celebre-lignee/
7- “ Aristodemo Frediani dit Beby ( 1885-1958) in
https://www.cirk75gmkg.com/article-aristodemo-frediani-dit-beby-1885-1958-103460537.html
8- O Thalassa,
Anno III, nº92, Lisboa, 19 de Março de 1915.
9- A Vinha de Torres Vedras, XXI
Ano, Nº 1:130, 30 de Setembro de 1915.
10- A Vinha de Torres Vedras, XXI
Ano, Nº 1:131, 7 de Outubro de 1915.
11- O Jornal de Torres Vedras, Ano
III, Nº109, 2 de Agosto de 1931.
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