13 agosto 2024

Um outro japonês em Santa Cruz - Memória de um drama / Jornal BADALADAS - 28 JUNHO 2024

 

Um outro japonês em Santa Cruz

Memória de um drama

Manuela Catarino

“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje” escreveu o historiador Jacques Le Goff, sublinhando que a “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”1

 

I – 2024, Santa Cruz

Numa tarde de conversa, a propósito de factos relacionados com os quotidianos e a história da praia de Santa Cruz, relembrava-se a figura do escritor japonês Kazuo Dan, que escolheu ali viver nos anos 70 do século passado. A certa altura, um dos interlocutores acabou por referir uma antiga memória, transmitida pelo pai e pelo avô, sobre um outro nipónico que teria tido naquelas águas um fim trágico. Ignorava o nome e as razões da sua vinda, mas uma certeza tinha: havia acontecido em Santa Cruz.

A inicial surpresa deu lugar à necessidade de saber algo mais. Fomos em busca dos factos, esperando que as fontes documentais nos elucidassem. Queríamos recuperar aquela memória.

II – 1910, Miss Phoebe Roberts, Campeã mundial de luta Ju-Jitsu, em Portugal

A presença de Phoebe Roberts, em Portugal, mereceu honras de destaque na revista Ilustração Portugueza de Janeiro de 1910. Uma novidade e um assombro assim se lhe referia o articulista, contrapondo o seu aspecto franzino, longa trança loura e olhos azuis (denotando a sua ascendência britânica) ao das mulheres de forças que habitualmente se apresentavam nos circos.2


Phoebe Roberts e Yuzo Hirano segundo a Illustração Portugesa

 

Nascida em 1887, em Londres, começou aos quinze anos a tomar as primeiras lições de Ju-Jitsu na Japanese School of Jujitsu, em Oxford Street, onde, em breve, pelas suas capacidades excepcionais se tornou instrutora e atleta. A escola tinha então mestres de nomeada –  de entre os quais Yukio Tani, Taro Miyake, e Yuzo Hirano. A carreira de Phoebe foi ganhando o maior destaque na Inglaterra. Em 1907, mestre Hirano e Phoebe casaram, partilhando ambos não apenas o gosto pela prática do ensino como o da divulgação do Ju-Jitsu pela Europa. Numa dessas visitas chegaram a Portugal, suscitando a admiração do público. As apresentações foram um êxito como noticiado na Illustração Portugueza. O casal prosseguiu a sua actividade em outros palcos europeus e, em 1915, Hirano voltaria a Portugal.

III– 1915, O Circo Royal em Torres Vedras

Em Março de 1915, na sala do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o Cirque Royal de Bruxellas apresentara, para além da sua companhia equestre, e de outros interessantes artistas, a estreia de “L’homme sans peur” protagonizado pelos equilibristas “Beby and Glads”, com estrondoso sucesso.


O Circo Royal na sua digressão por Portugal 3 – Feira de Santiago, Setúbal (1915).


Em 30 de Setembro desse ano, noticiava o jornal A Vinha de Torres Vedras que se havia instalado, na porta da Várzea, a companhia do Circo Royal, de Bruxelas, e que as três sessões apresentadas tinham tido um agrado muito grande do público. Informava, ainda, que se faria um espectáculo de gala “com a despedida da família Villani” e no sábado seguinte actuaria o aclamado “clown Beby Frediani”, com a apresentação de novos artistas e grande campeonato de luta greco-romana.

Era acontecimento para atrair gentes da vila e dos arredores. A fama do Circo Royal chegava de várias partes do país, e do mundo, onde se apresentara com o maior sucesso:  entre várias piruetas e destrezas, o arriscado número da família Frediani com a coluna de três acrobatas sobre o dorso de um cavalo a galope, fascinava e atemorizava plateias. Dois irmãos, Willy e Aristodemo (Beby) completavam, em altura, a acrobática coluna com Zizine, filho do primeiro.

Beby sofreu várias quedas que o incapacitariam cada vez mais para as acrobacias equestres, o que veio a acontecer em 1918. Todavia, a sua natureza de comediante, proporcionou-lhe a criação de uma figura muito especial –  a do “clown” desajeitado e manhoso que desencadeava o riso. Perdia-se o acrobata, nascia o palhaço.

 

IV- 1915, Outubro, praia de Santa Cruz

Na edição de 7 de Outubro de A Vinha de Torres Vedras lia-se em notícia de primeira página: “Na segunda feira foram passear á praia de Santa Cruz os artistas Beby Frediani e sua esposa Gladis Frediani, que aqui teem trabalhado nesta vila, no Circo Royal. Acompanhava-os o professor Kirano, que viera de Lisboa para lutar com Beby no domingo e estando annunciada nova luta para aquele dia em que se deu o trágico sucesso que vamos narrar.”

O drama acontecera à frente de todos: vestidos os fatos de banho, os três amigos foram, contudo, “advertidos pelo banheiro José do Pisão” da perigosidade do mar. “Kirano, confiando nas suas forças, entrou na agua e nadando, rompeu tres ondas, mas, no mesmo instante virou-se para terra, parecendo aflito, a pedir socorro. Mrs. Gladis, com uma intrepidez notável, atirou-se á agua em auxilio do lutador japonez, mas, chegada junto a Kirano, foi por este agarrada por um pé, e no meio das suas aflições, fez esforços supremos para se livrar. Uma onda arremessou Kirano sobre uns penedos, fazendo-o desaparecer e atirando mrs. Gladis para a praia, onde a meio caminho se agarrou ao salva – vidas, sendo recolhida já sem forças.”

A senhora Gladis foi prontamente assistida pelo médico Francisco Esteves de Oliveira, que se encontrava na praia. O corpo de mestre Yuzo Hirano nunca mais apareceu. A sua viúva Phoebe voltaria a casar, em 1916 com D. Carlos de Castro Henriques. Falecida em Outubro de 1936, foi sepultada no cemitério do Prado do Repouso, na cidade do Porto.

Esta tragédia seria recordada, em Agosto de 1931, nas páginas de O Jornal de Torres Vedras a propósito de uma ocorrência com uns jovens banhistas da Merceana, que se atreveram a desafiar imprudentemente as ondas. Também nesse drama de nada valeram os esforços do então banheiro Joaquim da Perpétua. Da memória dos habitantes fazia eco o jornal: “É certo que, felizmente, depois da morte do celebre nadador japonês, Kirãno(?) e isto ha jà uns quinze anos, não nos ocorre que alguém mais, pereceu nas aguas de Santa Cruz”.


V – 2024, Santa Cruz

Passou mais de um século do infausto acontecimento que ceifou a vida ao mestre de Ju-Jitsu, Yazu Hirano no mar de Santa Cruz. Das gerações que, entre si, foram transmitindo oralmente o sucedido, possivelmente muito poucos estarão vivos para o relembrar. Restam as fontes documentais, acervos da memória, para nelas recolher e tentar reconstituir os acontecimentos. Nesta partilha que fazemos procurámos resgatar do esquecimento não apenas a figura de um individuo, mas também evocar mais um elo de ligação entre as vivências de uma comunidade.

 

NOTAS:

1-      Jacques Le Goff, “Memória”In Enciclopédia Einaudi, Volume I Memória-História, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp.46-47.

2-      Illustração Portugueza, Nº 204, Lisboa, 17 de Janeiro de 1910, pp. 86-87.

3-      Imagem reproduzida de José Manuel Madureira Lopes e Alberto Manuel de Sousa Pereira, A indústria das conservas de peixe em Setúbal, Estuário, 2015.

4-      “ 1910 – A primeira Senhora praticante de Ju-Jutsu em Portugal: Phoebe Laugthon ou Miss Roberts Phoebe” in

  http://clubejudoporto.weebly.com/histoacuteria--histoacuterias/-1910-a-primeira-senhora-praticante-de-ju-jutsu-em-portugal-phoebe-laughton-parry-de-castro-henriques

5-      Miss Phoebe Roberts, “Champion Lady Ju-Jitsu Wrestler of the World” in

https://bartitsusociety.com/miss-phoebe-roberts-champion-lady-ju-jitsu-wrestler-of-the-world/

6-     Dominique Denis, “ Augusto Frediani, fondateur de la célébre lignée” In https://www.circus-parade.com/2021/03/06/augusto-frediani-fondateur-de-la-celebre-lignee/

7-     “ Aristodemo Frediani dit Beby ( 1885-1958) in

https://www.cirk75gmkg.com/article-aristodemo-frediani-dit-beby-1885-1958-103460537.html

8-      O Thalassa, Anno III, nº92, Lisboa, 19 de Março de 1915.

9-      A Vinha de Torres Vedras, XXI Ano, Nº 1:130, 30 de Setembro de 1915.

10-   A Vinha de Torres Vedras, XXI Ano, Nº 1:131, 7 de Outubro de 1915.

11-   O Jornal de Torres Vedras, Ano III, Nº109, 2 de Agosto de 1931.

 


 

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