12 agosto 2024

MARIA LUCÍLIA MIRANDA SANTOS - UMA JUSTA HOMENAGEM / Jornal BADALADAS, 31 MAIO 2024

 

Maria Lucília Miranda Santos

UMA JUSTA HOMENAGEM

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

 


Maria Lucília Miranda Santos, destemida opositora do regime salazarista, foi a advogada que mais presos políticos defendeu durante o Estado Novo, trabalho que fazia gratuitamente. Foi agora homenageada, a título póstumo, pela Ordem dos Advogados Portugueses. Recebeu a distinção seu filho, José Eduardo Sapateiro, juíz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. A Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV) associa-se a esta homenagem, recordando que a Drª Mª Lucília foi dedicada associada e seu filho, autor deste texto, faz parte dos actuais Corpos Sociais desta Associação. Mª Lucília, nascida em 1922, deixou-nos em 15 de Novembro de 2016.| JMD

 

«O Conselho Geral da Ordem dos Advogados Portugueses, deliberou em sessão de 2 de fevereiro de 2024, conceder, a título póstumo, a Medalha de Ouro da Ordem dos Advogados Portugueses à Dra. MARIA LUCÍLIA MIRANDA SANTOS pelo seu elevado mérito e relevante ação na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos/as cidadãos/ãs, com plena identificação com os ideais de justiça, liberdade e defesa do Estado de Direito que norteiam a ação desta Ordem.

Por ocasião do 50.º aniversário do 25 de abril, a Ordem dos Advogados homenageia a Advogada e reconhece o seu exemplo no exercício de uma  Advocacia livre, independente e combativa pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e pela oposição ao regime fascista e defesa do Estado de Direito Democrático».

       

É esta Declaração, datada de 23 de abril de 2024 e assinada pela Bastonária da Ordem dos Advogados, Dra. Fernanda de Almeida Pinheiro, que se pode ler, por debaixo da Medalha de Ouro atribuída, por tal organismo representativo dos advogados, a minha mãe.     

Minha mãe, como nome profissional, usava apenas o de MARIA LUCÍLIA MIRANDA SANTOS.  Se bem que, de seu nome completo, se chamasse DA LIBERDADE. Por força da sua tia e madrinha AURORA DA LIBERDADE.  Fez, de muitas formas, jus a esse apelido privado e escondido.

Se ainda hoje fosse viva, teria 100 anos de idade. E certamente ficaria tão ou mais orgulhosa, honrada e emocionada quanto a sua família, com a justa homenagem que lhe foi feita, nesse dia 23 de abril de 2024, no Salão Nobre dessa Casa Ilustre dos Advogados.

Minha mãe era, antes de mais, de corpo e alma, UMA ADVOGADA. Adorava a sua profissão, principalmente quando esta a levava à barra dos tribunais por esse país fora. Com o seu sentido de humor muito próprio, dizia que era a defensora dos «frascos e dos comprimidos» (fracos e oprimidos), como foi o caso, já depois do 25 de abril, de muitos rendeiros rurais que patrocinou e que se juntavam, aos magotes, no seu escritório, em Torres Vedras, onde desenvolveu a sua atividade durante várias décadas. 

Para vencer no meio masculino dos advogados, viu-se compelida, no gabinete do juiz, onde todos se encontravam, a dar um par sonoro de bofetadas no rosto de um varão e barão da advocacia de uma comarca de província de então, quando este, arrogante e superior, a mandou cozer meias para casa em vez de estar no tribunal a exercer essa nobre e incontornável profissão. O som das mesmas fizeram eco imediato no meio social envolvente, que funcionando como uma enorme caixa de ressonância, foi transportando adiante a história daqueles sopapos, por muitos anos. Estando longe de ser um caso único, a resistência também se fazia por aí, nessa época.

Foi a partir de 1958, com as eleições para a Presidência da República, em que concorreu o General Humberto Delgado, que começou a ter intervenção política, enquanto cidadã e advogada, na sociedade portuguesa de então, participação essa que, de maneira mais ou menos ininterrupta, se prolongou até depois do 25 de abril de 1974, sendo de realçar os muitos julgamentos que efetuou, enquanto defensora de presos políticos e a sua pertença à COMISSÃO NACIONAL DE SOCORRO AOS PRESOS POLÍTICOS, tendo muitas das suas reuniões se realizado no seu escritório em Lisboa.

Apesar de essa sua atividade política de protesto e combate ao Estado Novo, nunca esteve presa,  nunca pertenceu a nenhum partido  [embora tivesse apoiado, pelo menos em 1969, a CDE (COMISSÃO DEMOCRÁTICA ELEITORAL)] nem nunca foi comunista. À imagem, aliás, de muitos outros opositores ao regime fascista, que também resistiram fora das fileiras ou da influência do Partido Comunista Português. Tal não significou qualquer animosidade contra o PCP, tendo ela perfeito conhecimento da importância e papel desse Partido na resistência ao fascismo, assim como dos muitos sacrifícios feitos pelos seus militantes nessa luta de décadas  contra o regime.  

 

CORAGEM

Era uma mulher corajosa, temerária, roçando, por vezes a imprudência.

Recordo um episódio que ela me contou e que terá decorrido no ano de 1958, quando, provindos da Ordem dos Advogados, a minha mãe e  o advogado e pintor Dr. ARLINDO VICENTE, membro do Partido Comunista Português e candidato à Presidência da República foram, de repente, abordados, na Praça dos Restauradores, por dois agentes da PIDE, que agarraram o referido causídico com o propósito de o arrastarem para dentro de um carro e desaparecerem, pela calada da noite. Como na canção de José Afonso: “era de noite e levaram”.

Tentaram-no mas não conseguiram, que a minha mãe agarrou-se, com unhas e dentes, ao colega e desatou a gritar por socorro, tendo atraído, nesse frenesim de gritos e bulha física, um polícia sinaleiro que ali estava de serviço e que, de imediato, ignorante de tudo, se aproximou em auxílio de ambos e acabou por levar toda a gente para a esquadra, forçando assim os raptores a refrearem o seus ímpetos e intenções, pois tinham de ser discretos e de não dar muito nas vistas. ARLINDO VICENTE viria a ser preso, mais tarde, no ano de 1961.

Recordo também um fim de tarde em que a minha mãe chegou, combalida, a casa, depois de ter estado em Aveiro, onde se havia realizado o III CONGRESSO DA OPOSIÇÃO DEMOCRÁTICA e onde a polícia de choque tinha investido contra os manifestantes pacíficos que circulavam nas ruas daquele cidade, vindo minha mãe a ser atingida com duas ou três bastonadas na cabeça por um dos agentes, quando, num impulso de revolta e raiva contra a violência que presenciava e que se traduzia na agressão indiscriminada e por vezes sangrenta das pessoas que a rodeavam, se voltou para os elementos da força policial que se aproximava e chamou-lhes, aos berros, “assassinos”, “assassinos”, “assassinos”.

Com as cacetadas que levou, minha mãe terá tombado ou, pelo menos, se ajoelhado no passeio,  mas, como me contava depois, não teria sido também atacada pelo pastor-alemão que era levado à arreata pelo seu agressor, dado o animal em questão ter sentido que ela gostava de animais…                        

O 25 de abril de 1974 foi, para a minha mãe – como, certamente, para muito de nós –, um dos grandes – senão mesmo o maior – acontecimento da sua vida.

Ora, nessa madrugada do dia da revolução dos cravos, após um telefonema de alerta para o que se estava a passar nas ruas e que levou a família a  refugiar-se toda, novos e velhos, na casa do irmão da minha mãe, esta, contra a opinião de todos, desarvorou para a Baixa, argumentando que tinha um julgamento marcado para as 10,00 horas da manhã – o que, efetivamente, correspondia à verdade, decorrendo o mesmo no tribunal plenário da Boa Hora e tendo, como réus, diversos elementos da ARA [AÇÃO REVOLUCIONÁRIA ARMADA], braço armado do Partido Comunista Português, na resistência ao fascismo -, audiência essa que contudo não se chegou a realizar, dado a DGS [DIREÇÃO GERAL DE SEGURANÇA, antiga PIDE] ter comunicado ao juiz do processo que não conseguia assegurar a comparência dos presos no tribunal.

O magistrado judicial que presidia aos trabalhos quis marcar uma nova data para a sua realização mas a minha mãe, segundo ela me contou, disse-lhe, empolgada, que era melhor adiá-lo «sine die», pois aquele julgamento nunca mais se faria.

Tinha ABSOLUTA razão. Não se fez nesse dia nem nos cinquenta anos de democracia que já levamos. Que venham então, não apenas mais cinco, mas mais cinquenta anos.

 

 



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