Maria
Lucília Miranda Santos
UMA JUSTA HOMENAGEM
José Eduardo Miranda Santos Sapateiro
«O
Conselho Geral da Ordem dos Advogados Portugueses, deliberou em sessão de 2 de
fevereiro de 2024, conceder, a título póstumo, a Medalha de Ouro da Ordem dos
Advogados Portugueses à Dra. MARIA LUCÍLIA MIRANDA SANTOS pelo seu elevado
mérito e relevante ação na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos/as
cidadãos/ãs, com plena identificação com os ideais de justiça, liberdade e
defesa do Estado de Direito que norteiam a ação desta Ordem.
Por
ocasião do 50.º aniversário do 25 de abril, a Ordem dos Advogados homenageia a
Advogada e reconhece o seu exemplo no exercício de uma Advocacia livre, independente e combativa
pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e pela oposição ao regime
fascista e defesa do Estado de Direito Democrático».
É esta
Declaração, datada de 23 de abril de 2024 e assinada pela Bastonária da Ordem
dos Advogados, Dra. Fernanda de Almeida Pinheiro, que se pode ler, por debaixo
da Medalha de Ouro atribuída, por tal organismo representativo dos advogados, a
minha mãe.
Minha mãe,
como nome profissional, usava apenas o de MARIA LUCÍLIA MIRANDA SANTOS. Se bem que, de seu nome completo, se chamasse
DA LIBERDADE. Por força da sua tia e madrinha AURORA DA LIBERDADE. Fez, de muitas formas, jus a esse apelido
privado e escondido.
Se ainda
hoje fosse viva, teria 100 anos de idade. E certamente ficaria tão ou mais
orgulhosa, honrada e emocionada quanto a sua família, com a justa homenagem que
lhe foi feita, nesse dia 23 de abril de 2024, no Salão Nobre dessa Casa Ilustre
dos Advogados.
Minha mãe
era, antes de mais, de corpo e alma, UMA ADVOGADA. Adorava a sua profissão,
principalmente quando esta a levava à barra dos tribunais por esse país fora.
Com o seu sentido de humor muito próprio, dizia que era a defensora dos «frascos
e dos comprimidos» (fracos e oprimidos), como foi o caso, já depois do 25
de abril, de muitos rendeiros rurais que patrocinou e que se juntavam, aos
magotes, no seu escritório, em Torres Vedras, onde desenvolveu a sua atividade
durante várias décadas.
Para vencer no
meio masculino dos advogados, viu-se compelida, no gabinete do juiz, onde todos
se encontravam, a dar um par sonoro de bofetadas no rosto de um varão e barão
da advocacia de uma comarca de província de então, quando este, arrogante e
superior, a mandou cozer meias para casa em vez de estar no tribunal a exercer
essa nobre e incontornável profissão. O som das mesmas fizeram eco imediato no
meio social envolvente, que funcionando como uma enorme caixa de ressonância,
foi transportando adiante a história daqueles sopapos, por muitos anos. Estando
longe de ser um caso único, a resistência também se fazia por aí, nessa época.
Foi a partir
de 1958, com as eleições para a Presidência da República, em que concorreu o
General Humberto Delgado, que começou a ter intervenção política, enquanto
cidadã e advogada, na sociedade portuguesa de então, participação essa que, de
maneira mais ou menos ininterrupta, se prolongou até depois do 25 de abril de
1974, sendo de realçar os muitos julgamentos que efetuou, enquanto defensora de
presos políticos e a sua pertença à COMISSÃO NACIONAL DE SOCORRO AOS PRESOS
POLÍTICOS, tendo muitas das suas reuniões se realizado no seu escritório em
Lisboa.
Apesar de
essa sua atividade política de protesto e combate ao Estado Novo, nunca esteve
presa, nunca pertenceu a nenhum
partido [embora tivesse apoiado, pelo
menos em 1969, a CDE (COMISSÃO DEMOCRÁTICA ELEITORAL)] nem nunca foi comunista.
À imagem, aliás, de muitos outros opositores ao regime fascista, que também
resistiram fora das fileiras ou da influência do Partido Comunista Português.
Tal não significou qualquer animosidade contra o PCP, tendo ela perfeito
conhecimento da importância e papel desse Partido na resistência ao fascismo,
assim como dos muitos sacrifícios feitos pelos seus militantes nessa luta de
décadas contra o regime.
CORAGEM
Era uma
mulher corajosa, temerária, roçando, por vezes a imprudência.
Recordo um
episódio que ela me contou e que terá decorrido no ano de 1958, quando,
provindos da Ordem dos Advogados, a minha mãe e
o advogado e pintor Dr. ARLINDO VICENTE, membro do Partido Comunista
Português e candidato à Presidência da República foram, de repente, abordados,
na Praça dos Restauradores, por dois agentes da PIDE, que agarraram o referido
causídico com o propósito de o arrastarem para dentro de um carro e
desaparecerem, pela calada da noite. Como na canção de José Afonso: “era de
noite e levaram”.
Tentaram-no
mas não conseguiram, que a minha mãe agarrou-se, com unhas e dentes, ao colega
e desatou a gritar por socorro, tendo atraído, nesse frenesim de gritos e bulha
física, um polícia sinaleiro que ali estava de serviço e que, de imediato,
ignorante de tudo, se aproximou em auxílio de ambos e acabou por levar toda a
gente para a esquadra, forçando assim os raptores a refrearem o seus ímpetos e
intenções, pois tinham de ser discretos e de não dar muito nas vistas. ARLINDO
VICENTE viria a ser preso, mais tarde, no ano de 1961.
Recordo
também um fim de tarde em que a minha mãe chegou, combalida, a casa, depois de
ter estado em Aveiro, onde se havia realizado o III CONGRESSO DA OPOSIÇÃO
DEMOCRÁTICA e onde a polícia de choque tinha investido contra os manifestantes
pacíficos que circulavam nas ruas daquele cidade, vindo minha mãe a ser
atingida com duas ou três bastonadas na cabeça por um dos agentes, quando, num
impulso de revolta e raiva contra a violência que presenciava e que se traduzia
na agressão indiscriminada e por vezes sangrenta das pessoas que a rodeavam, se
voltou para os elementos da força policial que se aproximava e chamou-lhes, aos
berros, “assassinos”, “assassinos”, “assassinos”.
Com as
cacetadas que levou, minha mãe terá tombado ou, pelo menos, se ajoelhado no
passeio, mas, como me contava depois,
não teria sido também atacada pelo pastor-alemão que era levado à arreata pelo
seu agressor, dado o animal em questão ter sentido que ela gostava de
animais…
O 25 de
abril de 1974 foi, para a minha mãe – como, certamente, para muito de nós –, um
dos grandes – senão mesmo o maior – acontecimento da sua vida.
Ora, nessa
madrugada do dia da revolução dos cravos, após um telefonema de alerta para o
que se estava a passar nas ruas e que levou a família a refugiar-se toda, novos e velhos, na casa do
irmão da minha mãe, esta, contra a opinião de todos, desarvorou para a Baixa,
argumentando que tinha um julgamento marcado para as 10,00 horas da manhã – o
que, efetivamente, correspondia à verdade, decorrendo o mesmo no tribunal
plenário da Boa Hora e tendo, como réus, diversos elementos da ARA [AÇÃO
REVOLUCIONÁRIA ARMADA], braço armado do Partido Comunista Português, na resistência
ao fascismo -, audiência essa que contudo não se chegou a realizar, dado a DGS
[DIREÇÃO GERAL DE SEGURANÇA, antiga PIDE] ter comunicado ao juiz do processo
que não conseguia assegurar a comparência dos presos no tribunal.
O magistrado
judicial que presidia aos trabalhos quis marcar uma nova data para a sua
realização mas a minha mãe, segundo ela me contou, disse-lhe, empolgada, que
era melhor adiá-lo «sine die», pois aquele julgamento nunca mais se
faria.
Tinha
ABSOLUTA razão. Não se fez nesse dia nem nos cinquenta anos de democracia que
já levamos. Que venham então, não apenas mais cinco, mas mais cinquenta anos.
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