26 agosto 2023

OBJECTOS COM HISTÓRIA - O CONTADOR DE VIDAS | Página PATRIMÓNIOS NO BADALADAS DE 25 AGOSTO 2023

 

OBJECTOS COM HISTÓRIA: O CONTADOR DE VIDAS

Christiane Schickert

 


No conceito de Patrimónios cabem realidades diferenciadas que têm em comum o carácter de testemunhos históricos. É o caso deste contador, evocativo de tempos e gentes que fazem parte da nossa memória colectiva. Gratos à autora, cidadã alemã a viver em Portugal há muitos anos, agora radicada em Torres Vedras. | JMD

Há dias, chegou-me às mãos a imagem dum objecto hoje perfeitamente obsoleto, mas que me traz à memória um rol de histórias. É um instrumento rudimentar para efectuar contagens, de “tecnologia” básica: cada pressão no botão regista uma unidade. De fabrico alemão, terá sido produzido há cerca de 100 anos. Pertenceu ao meu irmão mais velho, já falecido, e durante os anos em que trabalhámos juntos, numa grande agência de viagens de Lisboa, muitas vezes o vi na sua mão. Sabemos que, nos inícios da actividade turística em Lisboa, antes da primeira Guerra Mundial, aquela geringonça teria servido, por exemplo, para contar os turistas alemães que se aventuravam a descobrir as belezas da Serra de Arrábida, a partir de Azeitão, montados em ... burros!

 

ANOS 60, PORTUGAL

Mas agora estávamos nos anos sessenta, altura em que, empurrados pelas difíceis condições de vida, centenas de milhares de portugueses enveredaram pelos caminhos da emigração, rumo à Europa central: França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, entre outros países. Não poucos optaram pela via clandestina, passando a fronteira a salto ou partindo sem rumo definido nem perspectiva concreta de trabalho. Mas a grande maioria, oficialmente requisitada pelas autoridades dos países de destino como mão de obra de que urgentemente careciam, era agrupada em transportes semanais de caminho de ferro, com transbordo em Hendaya. Estando a agência em que trabalhávamos encarregada da organização desses transportes, tive ensejo de viver muito de perto este verdadeiro drama humano que é a emigração.

Local: Lisboa, Estação de Santa Apolónia. Hora: 07.00 da manhã. São centenas de homens e (poucas) mulheres, de roupa escura e semblante carregado que se acotovelam no topo das linhas. Chegam a ser mais de 500, numa viagem. Os destinos são Paris, Colónia e Estugarda. Na cancela de acesso ao cais, as presenças são registadas com um “clique” no tal contador. Cada clique confirmava que mais uma pessoa tinha recebido a sua passagem de comboio (uma minúscula contramarca de cartão, do tamanho dos bilhetes de eléctrico da altura, e muito fácil de se perder...), bem como o respectivo farnel. Preparados por uma empresa de catering, os farnéis continham: um frango assado, várias “sandes” de chouriço e ovos mexidos, bolachas, algumas peças de fruta, água e uma pequena garrafa de vinho. Comida para uma viagem de dois dias e meio! À medida que se aproxima a hora de partida, mais lancinantes se tornam as cenas de despedida dos muitos familiares que não se pouparam à longa viagem desde a “terra”, de táxi ou de camioneta, para dar um último abraço aos pais, filhos, irmãos ou amigos. Gente de aspecto humilde e acabrunhado, os homens de boné, as mulheres de xaile, com crianças pequenas nos braços. Lágrimas, gritos, desmaios e olhares como que empedernidos dos que partem. Nessa altura, de Lisboa viajavam essencialmente pessoas oriundas do sul do país: Algarve, Alentejo, Ribatejo e Estremadura, enquanto os nortenhos eram encaminhados a partir do Porto. Nunca esquecerei as enormes listagens, verdadeiros “lençóis”, onde era preciso dar baixa dos já presentes. Cuba, Vidigueira, Mourão, Aljustrel, Reguengos, Gavião, nomes de tantas e tantas localidades que se foram esvaziando dos seus homens, deixando para trás as mulheres, as crianças e os idosos.  Uma pequena nota de humor eram os maravilhosos apelidos que surgiam, sobretudo dos alentejanos. Por entre os vulgares Camelo, Cação e Cabaço, dois deles, por impagáveis, ficaram gravados na minha memória: Maria Jesuína Xarope Pé-Leve; e Manuel António Catrapoula Espingarda!

Numa manhã escura e chuvosa, faltaram à chamada quatro homens. Havendo quem os tivesse visto na viagem da terra até Lisboa, pusemo-nos à procura em todas dependências e átrios da estação. Já quase sobre a hora de partida, fui dar com eles ... instalados, com toda a sua parafernália de bagagens, nos bancos do carro eléctrico amarelo, estacionado frente à gare! Foi um episódio que me entristeceu profundamente: como iriam aqueles seres, que nem na sua própria terra se sabiam orientar, enfrentar um mundo totalmente diferente do seu, em que nem a língua era a mesma?! Aliás, o “dia de Santa Apolónia” era sempre um dia emocionalmente pesado, para todos nós. Ficava um travo amargo e uma enorme compaixão por estas vidas desviadas da sua rota por um destino ingrato.

Felizmente, hoje em dia, vivendo numa zona de forte emigração, sobretudo para a Alemanha, falo com muitas pessoas que por lá singraram, foram felizes, criaram os filhos e, entretanto regressados para gozar a merecida reforma, trouxeram boas recordações. É grande o poder do Homem de forjar o seu destino.

 

Foto de Gerald Bloncourt


TURISTAS POLACOS

Mudamos de cenário: Ano: 1965 ou por aí. Local: Cais de Alcântara, 07,30 h duma fria manhã de Outono. A nossa agência é responsável por organizar as excursões em terra de um barco de cruzeiro polaco, uma raridade nos tempos da Cortina de Ferro. Lá está o meu irmão com o indispensável contador, para confirmar o número de passageiros em cada um dos muitos autocarros alinhados no cais. Vindos duma Polónia hermeticamente fechada ao ocidente, os passageiros, embora bem vestidos (recordo que as senhoras usavam belos casacos de peles) não dispunham, no entanto, de um único centavo de divisas portuguesas! Nem um café poderiam beber, durante a breve estadia em solo português. Recordo-me que, ao verem que alguém no autocarro trazia na mão um atraente folheto publicitário do Restaurante Solmar, as pessoas tornavam a sair, para também pedirem algo ... que era distribuído gratuitamente, coisa impensável na terra deles. A páginas tantas, sou abordada por um pequeno grupo de turistas polacos que, num inglês algo incipiente, me pedem um enorme favor: são católicos crentes e inscreveram-se neste cruzeiro sobretudo na enorme esperança de poderem conhecer Fátima. Um desejo impossível de confessar à direcção dum cruzeiro vindo dum país oficialmente ateu e que era acompanhado por agentes da polícia política. Disseram-me: “Juntámo-nos todos na mesma camioneta, e prescindimos de ir visitar a Batalha ou Alcobaça, se em vez disso pudermos dizer uma oração em Fátima”.  O problema era que o percurso, por mais longo, se tornaria mais caro, e eles não tinham dinheiro para pagar. Que fazer? Apesar da hora, 7 da manhã, resolvi ligar ao dono da nossa agência de viagens, o Senhor Arno Harting, homem crente que há muitos anos dirigia o Conselho de Paróquia da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, em Palhavã. E, tal como esperava, obtive o consentimento dele: ele próprio assumiria o pagamento da diferença. Um belo gesto de ecumenismo. No final do dia, regressaram felizes e gratos; convidaram-me a tomar uma bebida a bordo e ofereceram-me uns pequenos bonecos de artesanato polaco, em madeira. Separámo-nos com um abraço fraterno de cristãos.

Que mais histórias nos poderia relatar o velho contador de metal? Não sei, mas gosto de as imaginar, coloridas, variadas e ... sempre humanas.

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A página no BADALADAS




10 agosto 2023

PASSEIO DOS POETAS EM SANTA CRUZ

 Foi no passado Domingo, 6 de Agosto 2023.

28 pessoas aderiram ao percurso proposto por Joaquim Moedas Duarte, da Direcção da ADDPCTV e evocaram os três poetas que deixaram marcas da sua passagem pela praia de Santa Cruz - Torres Vedras: Antero de Quental, com seu amigo Jaime Batalha Reis, nos Verões de 1868 a 71; João de Barros, nos anos 50 do séc. XX; e Kazuo Dan em 1971/72.

No final, o actor, músico e cantor Weber Carvalho interpretou cinco sonetos de Antero de Quental, que musicou para este dia. Foi um belíssimo final, na Capela de Santa Helena.

Algumas imagens, para memória futura:


O grupo, junto ao memorial de João de Barros


Junto ao monumento ao escritor japonês Kazuo Dan


Junto da estátua de Antero de Quental





No memorial a João de Barros

No final, Ângela Vitória, do Sector de Turismo  da Câmara Municipal de Torres Vedras, responsável pela organização, e Weber Carvalho, com seu violão


09 agosto 2023

PASSOS EM VOLTA - FIGURAS ILUSTRES DE TORRES VEDRAS | 25 JUNHO 2023

 



O Sector do Turismo da Câmara Municipal de Torres Vedras, através da Ângela Vitória, convidou a Associação do Património de Torres Vedras a participar em mais um percurso cultural da série PASSOS EM VOLTA. O tema era "figuras ilustres de Torres Vedras", perpetuadas em estátua, busto ou outro tipo de monumento.

Coube a Joaquim Moedas Duarte, membro da Direcção da ADDPCTV, organizar o percurso e fazer as explicações informativas junto de cada figura.
A foto foi tirada no final do itinerário, junto do busto do Dr. José Maria Antunes.





LISTA DE FIGURAS

 

Dr. Afonso Vilela

Dr. José Maria Antunes

P. Joaquim Maria de Sousa

Henriques Nogueira

Luís António Maldonado Rodrigues

 Bispo de Limira (Bispo Joaquim Rafael da Assunção)

Ana Maria Bastos

Homem Rural (Monumento)




Descobrir outros Patrimónios | Jornal BADALADAS 28 JULHO 2023

 

Descobrir outros Patrimónios - Torres Vedras e Marvila

Pedro Fiéis

Professor e Presidente da Direção da ADDPCTV

 

Tem sempre sido apanágio da Associação para Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras ( ADDPCTV) colaborar ativamente com as escolas, afinal é nos jovens que começamos a incutir a importância da preservação do Património, material e imaterial, da paisagem natural, da identidade que nos torna singulares num mundo global. Por isso, mas não só, aceitou esta direção desde o primeiro momento o desafio colocado por professoras do Agrupamento de Escolas Madeira Torres (AEMT), de colaboração no seu projeto do Plano Nacional das Artes (PNA).

Tal como descrito em texto anterior, o PNA utiliza as artes como forma de “indisciplinar” a escola, ou seja, é proposto aos participantes que saiam da norma habitual, que é a sua disciplina e sala de aula, que seja alargado o campo de ensaio do jovem, quer através da partilha de experiências interdisciplinares, quer convivendo diretamente com obras de arte e seus executores, por forma a poder construir-se “a nossa identidade em diálogo com esse depósito de humanidade que está no património e nas obras de arte”.

Recordo o intercâmbio entre alunos da Escola Básica Padre Francisco Soares (do AEMT), em Torres Vedras, e do Colégio Cesário Verde, em Marvila, que estabeleceu relações de cultura, promovendo o debate, a conservação, o conhecimento e a valorização do património de ambos os locais. Os itinerários explorados pelos alunos abrangeram uma diversidade de temas, como a arquitetura, as tradições, a gastronomia, lojas com história, todo um conjunto de património artístico e natural que nos une na diferença, mas onde podemos igualmente encontrar pontos em comum, como a firma Abel Pereira da Fonseca e as vivências quotidianas de outros tempos, projetadas na atualidade.

A cooperação entre estas escolas e a ADDPCTV facilitou a construção destes itinerários culturais, expressos em valores materiais e imateriais, conducentes à descoberta e fruição do património local. Pelo caminho foram de mãos dadas com a interdisciplinaridade e transversalidade, proporcionadas pela conjugação de várias formas de arte, promovendo o desenvolvimento de inúmeras competências e aprendizagens essenciais.

Em ambas as escolas, do todo se fez a criação final, no caso do AEMT, culminando na apresentação do espetáculo “Turres Veteras”, no palco do Teatro Cine em Torres Vedras, com uma primeira apresentação interna e uma segunda, a 19 de março de 2023, para as famílias, resultado da residência artística com a Associação MusicÁlareira, cujo repertório foi tocado ao vivo pelos ALBALUNA e as 3 turmas envolvidas.

O projeto, contudo, não se esgotou nesse momento, antes ramificou-se, permitiu explorar outras ideias, como se puxando o primeiro fio, outros surgissem, numa autêntica explosão da imaginação dos jovens, bem enquadrados pelos seus professores, tendo no património um mundo para descobrir e explorar.

Menciono, ainda, como a arte tem o poder de transformar e agregar, assim ao Projeto Cultural da Escola (PCE), o qual integrou o PNA, uniu-se o Plano Nacional de Cinema (PNC), o Plano Nacional de Leitura (PNL) e o Plano Local de Leitura (PLL), do município de Torres Vedras, surgindo o Emocionário Ilustrado I e II, outro trabalho transdisciplinar, com um docu-filme e pinturas e textos expostos na Biblioteca Municipal entre os dias 1 de junho e 14 de julho de 2023.

Alunos do curso de Artes Visuais do Agrupamento de Escolas Henriques Nogueira (AEHN) ilustraram emoções e colegas do AEMT escreveram sobre as mesmas. O que permanece nestes jovens? Uma excelente ferramenta para o autoconhecimento, comunicação, expressão de emoções, auxiliando na gestão de conflitos. Na página do Facebook PCE-AEMT podem ser consultadas notícias e imagens do imenso trabalho desenvolvido por esta equipa excecional.

Equipa à qual deixo um profundo agradecimento: Cristina Coimbra (Coordenadora), Ana Nunes, Elisabete Reis e Niki Paterianaki, com as quais partilhámos esta experiência e as quais terão sempre nesta Associação um parceiro com que podem contar. Bem hajam pela vossa determinação e vontade em construir uma vivência diferente.

Queremos mais, divulgar é palavra primordial nos objetivos da ADDPCTV, é por esse meio que temos dado a conhecer a importância no nosso património coletivo, daí estarmos recetivos a propostas de trabalho, através do email: addpctvedras@gmail.com. A Escola afigura-se como um parceiro imprescindível, veículo de comunicação e cruzamento de saberes entre as várias gerações e de ligação entre o passado e o futuro.

Qual o papel a desempenhar? Precisamente aquele previsto pelo PNA, de mediação, interligando as artes e o património por forma a despertar o olhar, a curiosidade, a criação. Tal como nos é dito, pela junção do tradicional com o contemporâneo, do popular com o erudito, estamos a incutir nas novas gerações a importância do trabalho colaborativo e das artes, sob diversas formas, como sentido para a vida humana, despertando o respeito pelo outro, pela diferença, enfim, construindo uma sociedade mais justa.

É aos jovens a quem escrevo por fim, com 44 anos de existência, esta Associação precisa de todos para continuar a ter razão de existir. Há muito por fazer, projetos para abraçar. Juntem-se a nós com novas ideias, mantendo viva a esperança de ser o Património um elemento primordial na construção futura da nossa sociedade.

Grupo de professores das escolas parceiras com o artista residente em Marvila.


Cartaz exposição Biblioteca Municipal de Torres Vedras

 


Espetáculo Azul – artista residente Alba Luna

 


Espetáculo Azul - Final


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ÓRGÃO HISTÓRICO DA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE TORRES VEDRAS Jornal BADALADAS 30 junho 2023

 

O Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia Celebra 250 Anos

(Segunda parte)

Daniel Oliveira

Organista titular, professor de Órgão no Conservatório Nacional de Lisboa

e no Conservatório de Música de Torres Vedras.

 

Na primeira parte deste trabalho (Jornal BADALADAS de 26 de Maio), contámos a história deste instrumento secular. Hoje concluímos com as referências ao seu uso contemporâneo, forma de o manter cada vez mais vivo.

 

A criação de uma escola de Órgão

“Respeitar o passado para compreender e servir o presente” foi o lema utilizado pelo saudoso Sr. Vasco Fernandes, antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras que sempre sonhou com o restauro do instrumento. De facto, este lema foi colocado em prática logo após o concerto inaugural do mesmo, em 2008, pelo organista João Vaz e a soprano Ana Ferraz.

Após um restauro é fundamental dar uma “nova vida” ao instrumento e que o mesmo dialogue com o meio onde se insere. Sendo este, ainda hoje, o único órgão de tubos ativo no concelho de Torres Vedras, houve desde logo a necessidade de criação de público e, consequentemente, a necessidade de criar uma escola que formasse jovens organistas e sensibilizasse a comunidade para este instrumento, valorizando-o e dando a conhecer compositores e obras musicais dedicadas ao mesmo. Em 2009, numa feliz parceria entre a Santa Casa da Misericórdia e o Conservatório de Música da Física de Torres Vedras, foi possível a abertura do curso oficial de Órgão no concelho. Desde então, as aulas e as audições dos alunos contribuíram para uma descoberta maior do instrumento, passando já por esta classe de órgão umas boas dezenas de alunos. Actualmente, e graças a este cativante instrumento, a classe de órgão do Conservatório de Música da Física, é composta por cerca de 25 alunos, contando com dois docentes do instrumento.

 

O Ciclo de Órgão de Torres Vedras e a Sua Presença na Comunidade

Com a criação de uma classe de órgão, surge também a necessidade de criação de momentos de fruição artística, onde o órgão histórico interagisse de uma forma mais direta com a comunidade.

Começou-se então a dar os primeiros passos neste campo. Em 2010 surgem os primeiros concertos de órgão que tinham como principal objectivo ancorar o instrumento na comunidade e dar a conhecer práticas musicais, compositores e géneros certamente nunca ouvidos neste espaço geográfico, mas mantendo sempre o foco na historicidade do instrumento, divulgando a música e compositores do tempo da construção do mesmo.

Embora estes concertos surgissem num contexto muito informal e simples, começou a ser notório o carinho que a população torreense nutria pelo espaço e pela música que ali se fazia, convidando sempre o público a uma autêntica viagem pela História, pela nossa história.

Mais tarde, em 2015, surge o Ciclo de Órgão de Torres Vedras na sua primeira edição, contando com a organização da Câmara Municipal de Torres Vedras e da Santa Casa da Misericórdia. Um Ciclo onde o órgão histórico Bento Fontanes era o digno anfitrião. Até hoje este Ciclo tem trazido organistas de renome internacional, ajudando jovens organistas a afirmarem-se no panorama artístico regional e nacional, bem como a colocar este instrumento na rota dos Órgãos Históricos da Europa, sobretudo através da transmissão online dos recitais, levando Torres Vedras e este autêntico documento histórico vivo a todo o mundo.

Celebrando a V edição deste ciclo, foi lançado um CD que documentou música portuguesa e italiana dos séculos XVIII e XIX neste mesmo instrumento. Foram intérpretes Daniel Oliveira ao órgão, Marcos Lázaro no violino barroco e foi editado pela editora francesa FSB.

 

CD lançado em 2020 que regista discograficamente o Órgão da Igreja da Misericórdia

 

Um instrumento ou um documento histórico

O órgão de tubos é, sem dúvida, o instrumento de tecla mais antigo que se conhece. Os mais antigos terão cerca de 600 anos de existência.

Ao contrário de outros instrumentos históricos, que ficam em exposição em museus sendo possível fazer cópias dos mesmos mas não serem usados regularmente, os órgão históricos presentes nas igrejas são, por um lado, instrumentos originais que transportam consigo um legado ou herança cultural, religiosa e musical de vários séculos, catalogando-se como peças de museu, mas por outro lado, são objectos vivos, que soam e que conseguem reproduzir autenticamente as sonoridades de uma determinada época naquele mesmo espaço. Assim, o Órgão da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras é, simultaneamente, um instrumento musical e um autêntico documento do século XVIII.

Uma pérola do nosso património que interage de forma multidisciplinar. Na educação através do ensino da música aos mais jovens, na sociedade através da criação de uma nova oferta cultural, na religião ajudando os crentes na oração, e na revitalização do centro histórico da cidade. São 250 anos bem celebrados e que merecem o nosso aplauso, com os votos de boa saúde, com muita atividade em prol dos torreenses.

A classe de Órgão surge em prol do instrumento histórico da Igreja da Misericórdia que, através das suas sonoridades envolventes e motivantes, tem cativado inúmeros alunos ao longo destes anos. 

De referir que os alunos participam ativamente em concertos neste mesmo instrumento, bem como a realização de Masterclasses por organistas nacionais e estrangeiros tem sido uma constante, proporcionando uma forte interação entre o órgão histórico da Santa Casa da Misericórdia e os alunos torreenses, que estudam no Conservatório de Música da Física, que neste momento se encontra com as suas inscrições abertas, convidando toda a comunidade a conhecer e estudar este instrumento maravilhoso. 

 

Testemunhos 

" O Órgão da Igreja da Misericórdia foi marcante para a minha formação. Ali aprendi a voar pela história da música e dos sons. Hoje, sou licenciada em relações internacionais, mas as aulas na Misericórdia marcaram-me para sempre"

Bárbara Pereira, antiga aluna de Órgão da Física de Torres Vedras 

 

"Quando ouvi pela primeira vez o órgão histórico da Misericórdia, senti que era algo diferente de qualquer outro instrumento. Foi numa demonstração de instrumentos e, desde logo, senti que queria tocar este instrumento."

Bernardo Picoto, Antigo aluno da classe de Órgão do Conservatório de Música da Física. 

 


Concerto na Igreja da Misericórdia de Torres Vedras, alunos CNL

 

 

Um muito jovem aluno de órgão

 



Concerto com a participação do coro masculino da Escola de Música da Física

 

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Página do jornal BADALADAS




O ÓRGÃO HISTÓRICO DA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE TORRES VEDRAS | Jornal BADALADAS 26 MAIO 2023

 

O Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia Celebra 250 Anos

(Primeira parte)

 

Daniel Oliveira

Organista titular, professor de Órgão no Conservatório Nacional de Lisboa

e no Conservatório de Música de Torres Vedras.

 

Um Testemunho Vivo do Património Musical e Histórico Torreense

Os instrumentos musicais históricos despertam muitas vezes fascínio e curiosidade e, sendo documentos vivos da sua época, conseguem por vezes levar-nos por autênticas viagens pelas práticas musicais, culturais e artísticas dessa mesma época e região.

O órgão de tubos da igreja da Misericórdia em Torres Vedras é mais um fascinante exemplo de um instrumento do passado, que testemunha as técnicas de construção desse tipo de instrumentos em Portugal, em particular na região Oeste.

Este instrumento foi construído por Bento Fontanes em 1773, celebrando, portanto, este ano, 250 anos de existência. Este construtor, em linguagem organística designado por organeiro, pertencia a uma família de organeiros oriundos da Galiza (Espanha) e que se fixaram em Portugal deixando um significativo número de instrumentos no nosso país, atravessando várias épocas e filosofias de construção. De referir que a família Fontanes trabalhou em Portugal durante os séculos XVIII e XIX. Em 1765, João Fontanes de Maqueira, pai de Bento Fontanes, constrói o grande órgão de São Vicente de Fora, em Lisboa, um dos maiores exemplares da organaria ibérica.

Bento Fontanes fixou-se em Lisboa em meados do século XVIII, onde tinha o seu atelier em Santa Engrácia e aí desenvolveu todo o seu trabalho. A região Oeste conta com três exemplares adicionais deste organeiro que, para além do Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia, construiu o órgão da Igreja de Santa Maria em Óbidos e o instrumento que se encontra na Igreja da Encarnação, pertencente ao concelho de Mafra.

O tipo de construção destes instrumentos era bastante sofisticado, seleto e pormenorizado, denotando um profundo estudo dos espaços e uma preocupação com a adequação acústica e estética aos locais onde estariam inseridos.

Centrando-nos novamente no Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia, este foi alvo de um restauro bastante criterioso em 2008, pelo mestre organeiro Dinarte Machado, respeitando toda a sua origem, desde a conservação e manutenção dos materiais até à afinação e pressão do ar que o instrumento possuía na altura.

Sendo que cada órgão tem uma personalidade própria, não havendo seguramente dois instrumentos iguais, neste caso estamos perante um instrumento com caraterísticas ibéricas, mas onde vemos claramente uma forma de construção bastante influenciada pela escola italiana setecentista. É típico dos instrumentos italianos terem os tubos da frente organizados em forma de triângulo, aspeto visual que encontramos também claramente no órgão da Igreja da Misericórdia.

 

 Pormenor do Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia onde vemos a montra dos tubos em forma de triângulo, típica da construção italiana no século XVIII


Durante os séculos XVIII e XIX, os instrumentos em Portugal, Espanha e Itália tinham um aspecto em comum: a existência de apenas um teclado.

Dentro desta caraterística típica, havia um sistema que permitia que, no mesmo teclado, fosse possível coexistirem duas sonoridades bem distintas. Ou seja, a parte mais grave (mão esquerda) poderia ter o som de flautas e, por sua vez, as partes média e aguda do teclado (mão direita) poderiam ter um som completamente diferente como uma corneta, havendo assim a possibilidade de criar obras musicais com vários contrastes sonoros e tudo isto apenas com um teclado. Portugueses, Espanhóis e Italianos já aqui “economizavam”, e este instrumento torreense é um testemunho claro dessa filosofia de construção e, consequentemente, do repertório que por cá seria executado.


Teclado único e registos laterais

 

O uso do instrumento na liturgia

Sabemos, através de alguns documentos pertencentes à Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras que, em pleno século XVIII, o instrumento servia particularmente  os serviços litúrgicos e que, nas maiores solenidades litúrgicas havia lugar à contratação de músicos da Capela Patriarcal de Lisboa (grupo de músicos profissionais que estava ao serviço da Patriarcal). Sabemos aínda que, este serviço foi extinto aquando de uma crise financeira do hospital da Misericórdia (que funcionava na atual sede da Santa Casa da Misericórdia), sendo que o orçamento destinado para a contratação de músicos acabou por ter de ser utilizado para a compra de camas e outros bens de primeira necessidade para o hospital. Desde então, o instrumento não foi mais utilizado, acabando por se degradar até ao seu restauro em 2008.

Hoje em dia, este instrumento está inteiramente integrado nas liturgias da igreja da Misericórdia, cumprindo a sua função na perfeição.



Registos (timbres) do Órgão da Igreja da Misericórdia

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PÁGINA DO JORNAL BADALADAS




BARROS E CUNHA: PUBLICISTA E POLÍTICO | Jornal BADALADAS 28 ABRIL 2023

 

Barros e Cunha: publicista e político 

Álvaro Costa de Matos*

Recordamos que a figura do ilustre torriense Barros e Cunha foi tema de uma tertúlia na Garrafeira Venceslau (Mercado Municipal), no passado dia 2 de Março. O seu autor aceitou o nosso convite para resumir a sua palestra para a página PATRIMÓNIOS, o que agradecemos.| JMD

 

 


Aquando da morte de João Gualberto de Barros e Cunha, a 10 de Janeiro de 1882, os jornais, mesmo aqueles que o combateram politicamente, traçaram um retrato consensual acerca da sua vida e obra. O Diário Ilustrado, órgão do Partido Regenerador Liberal, caracteriza Barros e Cunha “como homem de acção”, um self-made man que “chegou à mais alta posição social, tendo apenas a acompanhá-lo nesse longo trajecto uma vontade tenaz e uma audácia sem igual.” A revista O Ocidente fala dum “estadista”, que “foi incontestavelmente um homem de trabalho e de estudo”, um progressista cujo nome foi dos “que mais excitaram as paixões políticas do nosso país”. Vejamos como este retrato jornalístico se encaixa com o seu percurso histórico.

Vida & Obra

Barros e Cunha nasceu a 10 de Outubro de 1826, em Runa, no concelho de Torres Vedras. Era filho de Maria Rita de Barros e Cunha e de António Luís Pereira da Cunha (tenente-coronel do exército). Começou por tentar uma carreira literária como poeta, mas falhou. Escreveu regularmente artigos de opinião na imprensa, teve uma importante carreira política, sobretudo parlamentar, e publicou vários livros: Hoje (1868), História da Liberdade em Portugal (1869), A dívida de Mr. Lowe (1870), Os factos (1870), Da Fazenda Pública (1871), Real d’Água. Discurso proferido na câmara electiva (1872), Pântanos e irrigação. Relatório e projecto de lei apresentado à câmara dos senhores deputados (1876) e Lourenço Marques (1881).

Publicista

Barros e Cunha foi articulista em vários jornais e revistas, sendo de destacar a sua colaboração literária n’A Revolução de Setembro, um dos principais jornais do liberalismo monárquico, na Gazeta do Povo, com escritos políticos, e n’A Semana de Lisboa, com poesia. Participou em algumas polémicas nacionais, “onde se manifestou contra o iberismo, apreciou a evolução da política internacional, discutiu a introdução do sistema de representação de minorias no parlamento inglês e condenou veementemente a Saldanhada de 1870[1], golpe militar que levou à demissão do governo de Loulé. Barros e Cunha não fez da escrita em periódicos o seu modo de vida, profissão e, consequentemente, principal fonte de rendimento. Foi essencialmente um publicista, usando a imprensa como uma tribuna para divulgar as suas ideias políticas e uma rampa de lançamento para uma auspiciosa carreira política.

Político

Seguindo as pisadas do pai, Barros e Cunha alistou-se voluntariamente e combateu nas fileiras das tropas populares durante a guerra civil da Patuleia (1846). A partir daqui passou a desempenhar várias funções: foi secretário do duque de Loulé, vogal do Conselho Geral do Comércio, Agricultura e Manufacturas (1865) e ministro das Obras Públicas no governo do marquês de Ávila (5/III/1877 a 29/I/1878). Como ministro, assumiu-se como o braço direito de Ávila, sendo-lhe confiada a condução geral da política do governo. Segundo carta da altura de Emídio Navarro a José Luciano de Castro, Barros e Cunha “estava ministro de todas as pastas”! E na leitura de Pinheiro Chagas, era o representante do “partido progressista” no ministério[2], que ficou conhecido como “mientras vuelve”, já que em Espanha se noticiou que este governo se manteria em funções até que regressasse Fontes Pereira de Melo – o que aconteceu com a queda de Ávila no final de Janeiro de 1878.

Barros e Cunha começou por filiar-se no Partido Histórico, que reunia os liberais progressistas de “esquerda” e absorveu os setembristas, liderado por Loulé. Em 1876 afastou-se deste partido e aproximou-se do Partido Reformista, que congregava os liberais moderados. Alinhou, depois, com o grupo político de Ávila, que juntava os liberais conservadores (cartistas), o que acabou por o levar ao governo. Em suma: Barros e Cunha evoluiu do setembrismo (liberalismo progressista) para o cartismo (liberalismo conservador). Ordem acima da desordem e da transformação social radical.

Sem surpresa, vai envolver-se em várias controvérsias com os seus adversários políticos: o conflito com Espanha relacionado com uma questão de pescarias no Algarve, o inquérito às obras da Penitenciária de Lisboa, que deu origem a uma viva polémica na imprensa, nas Cortes e acabou por causar a queda do governo (29/I/1878), ou o Tratado de Lourenço Marques: apesar de anglófilo, Barros e Cunha foi um dos seus mais vibrantes opositores, tendo até sido orador num comício republicano (8/III/1881).

Se, como ministro, teve uma experiência efémera, como deputado teve uma prática longa e prolífica: foi eleito deputado pelo círculo de Torres Vedras em 1864, pelo de Vila Franca de Xira em 1870, pelo de Silves em 1871 e 1874, pelo Partido Histórico, pelo de Lisboa em 1878, pelos “avilistas”, e pelo círculo do Cadaval e Lisboa em 1879, pelo Partido Progressista, então no poder. Era um orador prolixo e exuberante, um parlamentar temível e polémico, como o atesta o obituário d’O Ocidente (11/II/1882): “Eleito deputado, enfileirou-se nas hostes progressistas, e foi um dos campeões mais enérgicos desse partido. A sua voz, vibrante e cortante, a sua grande verbosidade, davam-lhe, nas lutas do parlamento, uma vantagem sobre muitos dos seus adversários, com quem travou frequentemente duelos mortais, porque a sua palavra, incisiva e violenta, acendia muitas vezes a paixão política nos mais plácidos debates.” Pertenceu a várias comissões, trabalhando com afinco na Comissão de Verificação de Poderes para o Parlamento, e proferiu extensos discursos sobre as mais diversas matérias: abolição de todos os privilégios de isenção de impostos concedidos aos bancos, de modo a criar condições de igualdade entre os vários agentes económicos e obstar à desordem social (1871); rejeição do projecto de reforma da Carta Constitucional apresentado pelos reformistas (1871); discurso contra o real de água, pois os impostos injustos eram outra das origens dos protestos sociais (1872); defesa da colonização interna do Continente face à viragem para África (1881); e homenagem em memória do duque de Ávila (1881).

Estes discursos mostram que Barros e Cunha tinha um conhecimento profundo dos problemas domésticos e que estava a par do pensamento político, social e económico, não só nacional como internacional, com citações de Dudley Baxter, Proudhon, Frederic de Bastiat, Robert Peel, Thiers e doutros.

Em jeito de conclusão, importa reter cinco ideias que julgo definirem o perfil político-ideológico de Barros Cunha: (1) um self-made man, que se elevou socialmente pelos seus próprios méritos; (2) um homem de acção, de trabalho, mais do que de doutrinação, embora actualizado na teoria; (3) um polemista temível, quer no parlamento quer nos meetings públicos, respeitado até pelos seus “inimigos políticos”; (4) um adepto da liberdade económica para combater a desigualdade social; (5) uma figura incontornável do parlamentarismo português nas décadas de 1860-70.



* Historiador.



[1] F.M. – “CUNHA, João Gualberto de Barros e (1826-1882)”, in Dicionário Biográfico Parlamentar: 1834-1910. Lisboa: Assembleia da República, 2004, pp. 945-947.

[2] História de Portugal. Vol. X!!. Lisboa: Escritório da Empresa, s.d., p. 620.



IGREJA DE S. MIGUEL DE TORRES VEDRAS | Jornal BADALADAS 31 MARÇO 2023

 

Igreja Matriz de S. Miguel de Torres Vedras 

Em busca da memória perdida

 

Manuela Catarino

 

“Longe da vista, longe do coração” reza a sabedoria popular a propósito de alguém, ou de algo, que se fasta da nossa convivência e se vai esvaindo inexoravelmente em direcção ao esquecimento. Aos contornos nítidos da sua presença vão sucedendo sombras, mais ou menos fugazes e, por fim, um total olvido que quase surpreende que houvera existido.

A evolução do tempo, práticas humanas, sensibilidades culturais e outros factores têm sido os agentes das alterações que na paisagem urbana foram acontecendo ao longo dos séculos e, com maior ou menor mudanças, chegaram até ao tempo presente.  Sinais de evolução, de transformações ávidas de futuro.  No entanto, aqui e ali descortinam-se algumas marcas antigas, indícios de outras vivências, relembrando as comunidades antecessoras que escolheram o mesmo espaço para se fixarem, viverem e nele baixarem à derradeira morada.

Caminhe-se no vagar de uma qualquer tarde de sol primaveril pela cidade de Torres Vedras. Do parque da várzea, a norte, no morro sobranceiro, os olhos avistam a vetusta silhueta da Igreja matriz de Santa Maria do Castelo, aconchegada ao que resta de um outrora proeminente paço dos alcaides. Adentrando-nos no casario, no coração antigo da urbe, vamos encontrar a Igreja matriz de Santiago, hoje sem funções religiosas, ostentando, porém, um património digno de cuidada visita.

Pelas ruas do centro histórico, as marcas da toponímia prendem-nos a atenção. São acenos de estórias e de História comum. Os passos irão dar à Igreja matriz de S. Pedro, plena de ricos elementos patrimoniais que justificam longa paragem e um olhar pormenorizadamente apreciativo. A tarde ainda convida a que a caminhada continue. À sombra da colina do castelo busquemos as águas do Sizandro. Os documentos antigos dão conta da existência, nos tempos idos, de quatro igrejas matrizes em Torres Vedras. Já notámos três, falta-nos uma quarta…a de S. Miguel.

Quando nos acercamos da margem esquerda do rio Sizandro, desembrulhamos um mapa de 1882. Nele, o arquitecto sinalizou o que, ao tempo, ainda restava da Igreja de S. Miguel. Também a antiga ponte, do mesmo nome, que dava acesso á circulação de homens e bens em direção aos lados do mar.  A ponte moderna, ampliada, não se situa no sitio da anterior e o próprio rio sofreu alterações para que as catástrofes das cheias não voltassem a sobressaltar os torrienses. Todavia, olhando em redor, não encontramos qualquer menção à antiga matriz, nem um ínfimo sinal. No espaço que ocupou, estão automóveis estacionados. Sinais dos tempos hodiernos.

 

MEMÓRIAS ESCRITAS

Será apenas nas memórias escritas que a Igreja matriz de S. Miguel de Torres Vedras ainda se perpetua. Por elas lhe percebemos a antiguidade, remontando ao século XIII, contemporânea das outras três paroquiais da antiga vila. Entendemos a sua localização, próxima do rio, fonte de problemas incessantes pela devastação que as cheias produziam, tendo os poderes religiosos equacionado a transferência para lugar mais seguro, o que nunca se efectivou. Compreendemos a sua organização de igreja paroquial e da Colegiada que lhe era inerente, com o colégio constituído pelo seu prior, raçoeiros e outros clérigos necessários à organização interna que asseguravam o seu funcionamento.

Pelos testemunhos escritos perpassam igualmente notas de incúria que os olhos dos paroquianos detectaram, a que nem as admoestações dos visitadores eclesiásticos sempre garantiram atempadas reparações. São da primeira metade do século XVI essas notícias onde respigamos a menção a problemas no edificado:  a chuva entrava na igreja já que o madeiramento do tecto estava podre e com goteiras; o campanário, destelhado, sujeito a infiltrações faziam perigar as porcas dos sinos; também falta de objectos de culto: inexistência de paramentos e de cortinas de altares adequados aos ofícios religiosos, cálices em mau estado assim como a penúria de cera;  e inexistência de livros para as devidas anotações da comunidade religiosa. Queixas que se foram repetindo sem remédio, a que acrescia a ausência dos beneficiados a quem cumpria a cura das almas dos fregueses e que a desleixavam de forma reiterada.

A Igreja teve cinco altares: o altar-mor, dedicado ao orago Arcanjo S. Miguel, celebrado a vinte e nove de Setembro. Dois dedicados ao Menino Jesus e a Santo Anastácio, do lado do Evangelho. Do lado da Epístola, outros dois, sendo um para o evangelista S. Marcos e o restante para S. Bento. Com o terramoto de 1755, viria a sofrer danos consideráveis, à semelhança das congéneres torrienses, tendo caído o tecto em abóbada, o campanário com os sinos e sofrido estragos o coro da Igreja.

Perante a necessidade de obras de reconstrução, a Colegiada teve de arcar com as despesas. Nessa sequência, foram feitas algumas modificações ainda visíveis no século XIX: o corpo da igreja, de uma só nave, passou a ser coberto por um tecto de madeira, todo pintado, com as armas reais no meio; o coro passou a situar-se no piso inferior, na capela-mor; quanto à torre sineira, na parte norte da Igreja, só seria refeita em 1822.

A Igreja Matriz de S. Miguel parecia ganhar nova vida. São as fontes escritas que, mais uma vez, nos dão a conhecer essa realidade: a igreja, com a porta principal virada a poente, tinha de fundo 150 palmos, de largo 36, e a capela mor, 26 de largo. Os arcos e mesas dos altares eram de “variados marmores”, havendo na Sacristia uma mesa igualmente de mármore destinada aos cálices. Continuavam a existir cinco altares, mantendo o altar-mor a dedicação a S. Miguel, cuja imagem estava “do lado do Evangelho em sua peanha na parede, e do lado da Epístola a de S. Bernardo”, nas paredes do coro “seis painéis dos Passos do Senhor em madeira “. Do lado do Evangelho, o segundo altar, “dedicado ao Menino Jesus, e Privilegiado, é a Capella do SS. Sacramento”. Seguia-se, nesse lado, o terceiro altar, de S. Bento com a respectiva imagem. Do lado da Epístola, o quarto altar, de Nossa Senhora dos Remédios enquanto que o quinto era de Jesus Cristo crucificado.

Não foi tão duradoura a existência da reconstruída matriz de S. Miguel. Logo em 1859, por decreto de 4 de Novembro, do cardeal patriarca D. Manuel Bento Rodrigues se extinguia a sua freguesia, sendo anexada à de Santa Maria do Castelo. Sucederam as inundações do Sizandro e os consecutivos estragos do imóvel. O abandono tornou-se inevitável. Em 1877, pela Lei de 9 de Abril, era concedido à Camara Municipal de Torres Vedras o edifício em ruínas da “antiga igreja de S. Miguel da mesma vila, a fim de ser demolido, e empregados nas obras da ponte de S. Miguel e outras obras municipaes indispensáveis os materiaes que poderem ser aproveitados.”

O sol da tarde vai declinando nos outeiros e surgem as primeiras sombras. O Sizandro a nossos pés alonga-se entre as reestruturadas margens. O trânsito de pessoas e viaturas intensifica-se na área envolvente. Repegamos no mapa de 1882.  Fixamos o olhar nas linhas desenhadas e nos sinais convencionais. Por instantes, a memória da antiga matriz de S. Miguel identifica-se no espaço físico a que pertenceu. Voltará a pertencer-lhe algum dia?


Pormenor de mapa da Vila de Torres Vedras, 1882- assinalada a lo


Localização da igreja de S. Miguel de Torres Vedras (AMTVD, Obras Municipais: Melhoramentos no rio Sizandro perto de Torres Vedras, 1882-1938, Cx.62, nº720)


 Leituras de base

Pereira, Isaías da Rosa – “Visitações da Igreja de S. Miguel de Torres Vedras (1462-1524)”, Separata de Lusitania Sacra, 2ª série (7), 1995.

Rodrigues, Ana Maria Seabra de Almeida - Torres Vedras. A Vila e o Termo nos finais da Idade Média, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica,1995.

Torres, Manuel Agostinho Madeira - Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, reprodução do fac-simile da 2ª edição de 1862, Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, 1988.

Vieira, Júlio - Torres Vedras Antiga e Moderna, 2ª edição, LIVRODODIA Editores, 2011.


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