08 janeiro 2023

O ESPLENDOR DO BARROCO EM TORRES VEDRAS - Jornal BADALADAS de 23 de Dezembro de 2022


O Esplendor do Barroco em Torres Vedras

Joana Santos Coelho

Joaquim Moedas Duarte

 

Em 16 de Outubro passado acompanhámos cerca de 25 pessoas num passeio cultural na cidade de Torres Vedras, integrado no ciclo “Passos em Volta”, iniciativa do sector de Cultura da Câmara Municipal. O tema foi “O esplendor do Barroco”. O texto desta página é o complemento dessa visita.

 

ESTILO ARTÍSTICO

O Barroco foi um estilo artístico que primou pelo esplendor, luxo, dinamismo, drama e exuberância, e foi transversal a diversas áreas como a arquitectura, a pintura, a escultura, a literatura, a música ou o teatro. Surgiu em Itália no final do século XVI e esteve em vigor aproximadamente até meados do século XVIII. Três circunstâncias impeliram o florescimento deste novo estilo: o surgimento de novas potências europeias (devido às novas rotas comerciais com o Novo Mundo), os regimes absolutistas (cujo poder estava concentrado na figura do rei) e sobretudo a Contrarreforma da Igreja Católica, que ganhou forma através do Concílio de Trento (1545-1563). Esta reforma foi uma reacção ao Protestantismo, que veio criar uma cisão na Igreja Cristã, e que foi um manifesto contra o luxo e a corrupção da mesma. Em contrapartida, a Igreja Católica apela à renovação da vivência religiosa, a partir da sistematização doutrinária realizada naquele Concílio. É neste contexto que nasce o Barroco, expressão artística da veemência religiosa e da opulência material.

O termo significa “pérola irregular” e, segundo Wolffin, este estilo “é a primazia da cor e da mancha sobre a linha, da profundidade sobre o plano, das formas abertas sobre as fechadas, da imprecisão sobre a clareza, e da unidade sobre a multiplicidade”. Está esteticamente associado ao ornamento complexo e imperfeições naturais, diagonais e assimetrias, curvas e espirais, liberdade e emoção, drama e movimento. As construções barrocas integram várias linguagens artísticas, têm tendência para a planta centralizada e são caracterizadas pela grandiosidade, opulência e exuberância.

A Escultura, que pode ser um mediador entre o Homem e Deus, passou a ser identitária da Igreja Católica, enquanto o Protestantismo avançava com movimentos iconoclastas (abominação de imagens religiosas). No período barroco ganharam destaque as composições grupais e as imagens de roca.

Na Pintura destacou-se a Escola Tenebrista que se caracterizava sobretudo pelos fortes contrastes claro-escuro e pelo aspeto teatral. Neste período surge também o trompe l’oeil, que era uma técnica de pintar tetos com truques de perspetiva, criando ilusão de ótica de que as formas 2D possuem 3 dimensões. E para a burguesia protestante, passam a ser pintadas mais cenas do quotidiano e de natureza-morta.

No caso português, o Barroco esteve em voga entre 1580 e 1756, mas ganhou maior expressão no reinado de D. João V (1705-1750). No governo filipino Portugal esteve de certa forma isolado do que se passava no resto da Europa, nos reinados de D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II houve tribulações dada a guerra da independência e a crise de sucessão, e finalmente no reinado de D. João V atravessou-se um período de paz e prosperidade. D. João V foi um rei amante das Artes. Para além do contexto político, beneficiou também das remessas de ouro vindas do Brasil. Revestiu o seu país com talha e azulejo e foi no seu tempo que foram realizados alguns excelentes exemplos do Barroco que também podemos ver nas igrejas de Torres Vedras.

 

O BARROCO EM TORRES VEDRAS

Se pensarmos nas manifestações esplendorosas do barroco espalhadas pelo nosso país, –o Convento de Mafra, por exemplo, ou os interiores de igrejas “forradas a ouro” como S. Francisco no Porto ou St. António em Lagos – temos de convir que no nosso concelho os exemplos de arte barroca são mais discretos. Ainda assim, o que temos é de valor e relevância indiscutíveis, com realce para as artes decorativas dos interiores das igrejas. Se no aspecto arquitectónico os alçados exteriores são geralmente austeros, nos interiores encontramos soluções expressivas do barroco que integram, de modo harmonioso, a talha dourada dos retábulos de altar, a azulejaria, a pintura e a escultura sacras, e os embrechados de mármore – uma gramática decorativa a que alguns historiadores de Arte chamam “arte total” ou “totalidade decorativa”. Os exemplos multiplicam-se por todo o território concelhio: as capelas-mores das igrejas da Carvoeira, de A-dos-Cunhados, de Dois Portos, de Runa, de Matacães, da Ponte do Rol, de S. Pedro da Cadeira; as capelas do Sirol, da Srª dos Milagres, da Madre de Deus, da Ribaldeira.
Na cidade, destacam-se as Igrejas da Graça – com o claustro conventual, a portaria, a antessacristia e sacristia, onde avultam  notabilíssimos conjuntos de painéis de azulejos figurativos –;  S. Pedro, Santiago, Misericórdia e a capela de Nª Srª do Amial.

 

Capela-mor do convento do Varatojo, Torres Vedras

O Convento do Varatojo merece menção especial. À entrada, encontramos a pequena capela de Nª Srª do Sobreiro, com a talha do altar dialogando com as coberturas parietais de azulejo e o estuque marmoreado, numa surpreendente unidade de estilo, sublinhada pela coerência formal da concepção arquitectónica.
A capela- mor da igreja do convento é um exemplo brilhante da “arte total” barroca do séc. XVIII. O retábulo é de talha a branco e ouro, em que as quatro colunas salomónicas enquadram um trono eucarístico, por vezes velado por uma tela de Bacarelli. Na parte inferior do retábulo, há belos exemplares de embrechados de mármore e mármores embutidos. As paredes são forradas de silhares de azulejos figurativos, com cenas da vida de Santo António, sobrepujadas por quatro telas dos finais do séc. XVI, com cenas do Natal cristão atribuídas por Vitor Serrão ao pintor Gaspar Dias. A enquadrarem o altar, dois jarrões em mármore preto.

No corpo da igreja, do lado da epístola, sobressai a capela de Nª Srª das Dores, já dos finais do séc. XVIII, em que também se conjugam o retábulo, os silhares de azulejos figurativos e as telas, todos de temática mariana – novo exemplo do conceito “arte total”.

 

Altares da Igreja da Misericórdia, Torres Vedras

No périplo urbano destes “passos em volta”, foi proporcionado aos passeantes um olhar mais atento e informado sobre o esplendor do barroco. No Convento da Graça, as capelas com seus retábulos e os núcleos azulejares atribuídos a um dos grandes criativos do ciclo joanino, o Mestre PMP – que também deixou obra nas igrejas e capelas de Santiago, Matacães, Mugideira, convento do Barro e Serra da Vila; os azulejos de Nicolau de Freitas e a talha dos três altares na Misericórdia; as telas tenebristas de Santiago e de S. Pedro…

 É bem verdade que, de tanto serem familiares, muitas vezes nos passa despercebida a riqueza artística destes espaços.

 

Referências

Serrão, Vítor (2003) O Barroco. História da Arte em Portugal. Editorial Presença: Lisboa

Janson, H. W. (2005) História da Arte. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa

Toman, Rolf (dir.) (2004) O Barroco. Konemann: Koningswinter, Alemanha

Pereia, José Fernandes e Silva, Nuno Vassallo (2007) Da Estética Barroca ao Fim do Classicismo, Vol VII da História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira)

Créditos fotográficos: Vitor Oliveira (capela-mor do Varatojo); Joaquim Moedas Duarte (altares da Misericórdia de Torres Vedras)

 

 


.S. GONÇALO, PADROEIRO DE TORRES VEDRAS - Jornal BADALADAS de 25 NOVEMBRO 2022

 

S. Gonçalo, Padroeiro de Torres Vedras

Luís Filipe Rodrigues (texto)
J. P. Sobreiro (selecção de imagens)



Pintura Quinhentista de autor e proveniência desconhecidos, representando S. Gonçalo encimado por uma cartela com partitura musical. Patente na exposição do Museu Municipal (Nov. 2022 a Maio 2023) 


Tudo ou quase tudo é incerto na vida de S. Gonçalo. Incerto e inverosímil. Desconhece-se o apelido, o nome dos pais e da sua ascendência, como a data exacta do nascimento e da morte. Tudo parece ter ficado no domínio da lenda – tal ocorrendo a grandes mestres da humanidade, como Confúcio ou Sócrates ou Buda.  O que se regista, então é uma tentativa de percurso biográfico, sabendo-se que as informações recolhidas pelos seus principais biógrafos, duzentos anos depois, – Frei Aleixo de Menezes e Frei António da Purificação – tiveram como principal referência e ponto de apoio a transmissão oral.

É verdade. Tudo permanece na penumbra. Por exemplo, o próprio ano do nascimento, pois só no século XVIII foi referida a data de 1360, devido a nesse final de século começar a ser instruído o processo de beatificação, requisito para a construção de uma biografia. Ou na penumbra permanece o ano exacto da morte, havendo biógrafos que apontam a era de 1445. E também sobre os seus ascendentes, sendo certo que Gonçalo nasceu em Lagos no seio de uma família de pescadores, honesta e temente a Deus. E educado segundo os princípios cristãos.

Nascido em Lagos, muito cedo sentiu dentro de si um chamamento. Atraído por essa voz interior partiu para Lisboa na companhia de parentes. Depois de bater à porta de alguns conventos apresentou-se ao prior da Graça por quem foi recebido e aceite. O convento e a igreja da Graça foram fundados em finais do século XIII, para os frades da Ordem dos Agostinianos Eremitas, conhecida por Ordem dos Gracianos, no largo da Graça, em Lisboa.

Depois de frequentar a universidade ao tempo instalada no actual bairro das Escolas Gerais, em Alfama recusa o título de doutor em Teologia, preferindo ficar apenas com o grau de pregador, com o qual dá início à sua vida apostólica. Pregador eloquente e virtuoso, frade muito zeloso e atento aos problemas da Ordem mendicante, os seus superiores encontraram nele alguém talhado para missões de maior responsabilidade.

Deste modo, é enviado para a Estremadura, como prior do Convento de São Lourenço, actual freguesia de Miragaia, concelho da Lourinhã, aí permanecendo dois anos.  Por ser um dos mais pobres da Ordem foi extinto e abandonado em meados do século XVI. Embora não restando dele quaisquer vestígios, no mesmo local terá sido erguida a igreja de S. Lourenço dos Francos ou igreja do Convento dos Agostinhos, um templo rural com características da arquitectura do renascimento estremenho, objecto de sucessivos restauros até aos dias de hoje.

Depois da Estremadura regressa a Lisboa. Neste período, em que preside aos destinos do Convento, é elevado a Vigário Geral, e nessa função apresentado como Reformador da Província. Quatro anos depois ruma para longe, com a missão de dar seguimento às grandes obras do Convento da Graça, em Santarém, que fariam dele uma das joias da Ordem e onde foi sepultado o descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral.

Cumprida a tarefa, e findo o priorado, é enviado para Torres Vedras onde permanece 10 anos, até à sua morte, em 1422. O Convento, contruído por volta de 1380, ocupava o lugar fronteiro à igreja de Santiago, na mais movimentada rua medieval. Era aí, à porta do mosteiro, que tantas vezes frei Gonçalo exercia o seu múnus pastoral e apostólico ao cruzar-se com as gentes que vinham da faina dos campos, deixando uma imagem de paciência, bondade, humildade e sabedoria. Ou catequizando com desvelo os mais novos. Ou de alforge às costas, por caminhos e lugares da região, onde se deslocava a pedir esmola, a dar bons conselhos, a espalhar a Palavra de Deus.  

No interior do convento  unum inter pares, um frade entre os outros, prestando as tarefas mais humildes e serventuárias, como lavar os pés aos hóspedes e peregrinos,  varrer o chão, arrumar as oficinas – Frei Gonçalo tinha a missão de governar, de tratar de assuntos de organização e provedoria. Conta-se que um dia se deslocou a Lisboa, a pé,  implorando apoio junto do arcebispo, seu velho amigo. Estamos em 1413. Foi bem sucedido em tal demanda, pois na despensa rareavam os mantimentos necessários para satisfazer as exigências do Capítulo Provincial ali reunido. Para além de no refúgio da sua cela se dedicar à meditação, a copiar livros de cantochão, a compor música sacra, a fazer iluminuras que serviam para decorar os livros.

Sua fama de milagreiro vem de longe, pois já em vida é tido como taumaturgo, dotado de um poder admirável, fruto da fé e da confiança que o povo depositava na sua palavra, tomando-o, assim, como intermediário de Deus. Mas é depois da sua morte que cresce essa aura de santidade testemunhada por inúmeros episódios miraculosos, devidamente autenticados.

(S. Gonçalo salva o sobrinho num naufrágio - Painel na sala da Portaria do Convento da Graça, Torres Vedras)

Um dos mais relevantes – documentado num dos oito painéis de azulejo expostos na antiga portaria do convento, hoje designada sala de S. Gonçalo – destaca o Santo, já glorioso, a salvar um sobrinho, naufragado no mar, e a mandá-lo visitar e orar na sua sepultura em Torres Vedras. A notícia de tal milagre espalhou-se velozmente pela região, a ponto de os pescadores de Lagos o invocarem por seu padroeiro.

D. João II, seu grande devoto, conhecedor dos feitos extraordinários obtidos por intercessão do Santo, enviou do Algarve uma carta datada de 26 de Setembro de 1495, e endereçada à Câmara Municipal de Torres Vedras, «exaltando esta vila e chamando-lhe povo abençoado, pela glória de possuir os ossos do santo taumaturgo». Em consequência desta missiva a Câmara proclamou a 13 de Outubro desse ano S.  Gonçalo «Defensor e Padroeiro da Vila e seu termo», com o voto de assistir, no dia da comemoração do seu falecimento, à Missa anual. Existe cópia do documento, em que se exprime tal voto, no arquivo da câmara municipal, retirado de uma certidão da época, pois que o livro original ardeu num incêndio.

A partir daquela data, S. Gonçalo passou a ser venerado como padroeiro de Torres Vedras. O culto foi-se propagando e o principal gesto impulsionador deste culto foram as sucessivas transladações dos seus restos mortais. E houve cinco, sendo a segunda a mais expressiva com a transladação do cofre contendo os ossos do santo, percorrendo as ruas da vila no ano em que o edifício velho começou a ser demolido e transferido para o local de hoje, devido às permanentes cheias do rio Sizandro. A quinta e derradeira transladação acontece em 15 de Novembro de 1784 para o primeiro altar à esquerda de quem entra na igreja da Graça, em cumprimento de um voto de acção de graças pela cura de uma chaga que D. Pedro III, o príncipe consorte da rainha Dona Maria I, teve num joelho.

Ao celebrarmos – em articulação com a cidade de Lagos os 600 anos da morte de S. Gonçalo, cumpre evocar a memória de alguém que marcou gerações de crentes pelo seu amor entranhado à Igreja, deixando como legado um olhar iluminante e misericordioso, um braço forte e solidário velando sempre pelos mais pobres e desprotegidos.

(Por opção do autor, texto não segue as normas do novo Acordo Ortográfico)

 


 

 Arco de S. Gonçalo, em Lagos

 

 

 


 

 

 

 Nicho com a arca tumular quinhentista (hoje vazia), na capela-mor da Igreja do convento da Graça, em Torres Vedras

 

 

 

para um roteirO da vida de S. gonçalo

– Nasce em Lagos, em 1360, no local onde, segundo a tradição, agora se encontra o seu nicho e imagem.

– Em 1380 ingressa na Ordem dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, convento de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa. Frequenta os ‘Estudos Gerais’. Professa votos perpétuos de pobreza, de castidade e de obediência.

– Em 1394, é colocado como prior do Convento de São Lourenço dos Francos, num local ermo, próximo da Lourinhã.

– Em 1404 é prior do convento de Nossa Senhora da Graça em Lisboa. Nesse período é elevado a Vigário Geral da Ordem.

– De 1408 a 1412, prior no convento da Graça em Santarém

– A partir de 1412 prior do Convento da Graça em Torres Vedras

– 1422, data da fixação da sua morte. Morre no mosteiro velho, situado na várzea grande, com fama de santidade.

– Entre 1489 e 1510 foram autenticados catorze milagres. Tal autenticação foi realizada a partir da descrição feita pelo frade Leonel, então prior do convento novo de Torres Vedras, interessado em compulsar tais actos miraculosos para endossar ao Vaticano.

Em 1559, ano em que os restos mortais são transladados para a capela do Hospital de Santo André ou da Gafaria, situado na entrada sul da vila.

– Em 1580, após a conclusão do convento novo, deu-se uma outra transladação, da capela de Santo André para a nova igreja.

Em 1778 é beatificado. O Papa Pio VI autoriza o culto de Beato a Frei Gonçalo, com honras de Santo em Portugal.

 

 

(Um dos oito painéis sobre a vida de S. Gonçalo, Portaria do Convento da Graça de Torres Vedras)




PERDIGUEIRO PORTUGUÊS - Jornal BADALADAS de 28 OUTUBRO 2022

 

Médico radiologista, natural de Torres Vedras, onde reside, Jorge Rodrigues dedica-se entusiasticamente à criação do Perdigueiro Português na sua quintinha perto de Dois Portos. É uma paixão que herdou de seu pai, Américo Rodrigues e que tem aprofundado através do estudo e da investigação sobre temática cinófila. Reconhecido internacionalmente, é chamado frequentemente a desempenhar funções de Juiz de provas, seja em exposições caninas, seja em provas mais especializadas de Cães de Parar. A nosso convite, colabora hoje nesta página Patrimónios, ciente de que a cinofilia faz parte do nosso património histórico – tal como o seu texto expressivamente demonstra. | J. Moedas Duarte


PERDIGUEIRO PORTUGUÊS

Joia viva milenar do nosso património histórico e sócio-cultural 

Jorge Rodrigues

O perdigueiro português é um cão de caça (cão de parar) que integra o 7ºGrupo da Federação Cinológica Internacional (FCI) e é um dos mais populares e comuns cães entre nós. Para além disso em face do seu tamanho médio, de pêlo curto, carácter meigo e rústico, é utilizado também como cão de companhia entre nós e sobretudo no norte da Europa onde a caça está interdita

Com raízes remotas nos milenares cães de busca ibéricos que paravam apontando a caça, é uma das raças definidas e estáveis mais antigas do Mundo, com características morfológicas e funcionais idênticas às actuais pelo menos há 1000 anos, de acordo com a representação pictórica e iconográfica disponível. É o único representante actualmente reconhecido pela FCI do antigo perdigueiro ibérico de pêlo curto que existia no oeste peninsular.

Ao longo dos séculos foi criado nos canis reais, da nobreza e do clero e utilizado na busca de caça ferida em montarias, na caça de altanaria e na caça com rede a lanço. Com a utilização das armas de fogo na caça, passou a ser usado como cão de parar e de cobro.

Sendo um “produto” do povo português que o vem criando, seleccionando e moldando há séculos, deste povo herdou muitas das características sociológicas como a rusticidade, a adaptabilidade ao clima, à orografia, à maneira de ser do povo português, com um espírito sofredor e de missão, destacando-se a meiguice, os brandos costumes, em suma um verdadeiro todo-o-terreno nacional de parcas exigências… De resto em todas as raças caninas portuguesas não há uma que seja agressiva…

 

Perdigueiro em paragem

Longa História

Desde o rei Afonso III (1248-1279) que aos cães destinados a caçar aves, era dado o nome de podengos de mostra, designação que permanece hoje em Espanha onde o cão de parar é conhecido por "perro de muestra" [in Ordenações, 1261 - "...e os açoreiros que levem os podengos..."]. No Livro de Montaria de D. João I (1357-1433) é mencionado igualmente como podengo de mostra, ou seja, um cão “humilde e adulador” de "pés pequenos e rápidos" (sufixo engo), que evidenciava capacidade de parar perante a caça e gozando de grande prestígio entre os seus utilizadores, sendo penalizado fortemente quem os molestasse.

Sendo originariamente ibérico ocidental / português, acompanhou o percurso histórico, sociológico e cultural do nosso povo. Andou pelo mundo na diáspora, onde originou outras raças de cães hoje bem mais conhecidas…

Na investigação histórico/pictórica/iconográfica que temos realizado, encontramos as suas representações mais antigas numa lápide sepulcral visigótico-moçárabe da Igreja de S. João Baptista de Tomar (Séc. X), no Testamento Veteres de Sª Cruz de Coimbra (Séc.XII), no Génesis de uma Bíblia portátil do Séc.XIII (Biblioteca Nacional de Lisboa) no Livro da Caça do Conde de Foix (séc.XIV).

Nos nossos barcos, provavelmente e junto com o cão de água português (ajudante na faina da pesca) com o cão de gado transmontano e o cão de Castro Laboreiro (cães protectores do gado embarcado) o perdigueiro (auxiliar na caça em terras a desbravar) terá chegado à terra do Labrador (de João Fernandes Lavrador, açoreano donatário da terra a que deu o nome – onde provavelmente terá contribuído para a génese do retriever do Labrador (estudos genéticos a decorrer…), cães que os ingleses trouxeram quando lá chegaram. Surge representado num quadro do Museu do Prado em Madrid acompanhando o imperador Carlos V e Isabel de Portugal (séc.XVI) passou pelo Brasil (expedição de caça do Coronel Sampaio e Sousa) e pela Índia (algodão bordado - Bengala - Séc.XVII-Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa) e chegou ao Japão (está representado nos biombos NamBan e no rol dos bens desembarcados em Nagasáqui na primeira nau que aí aportou no séc. XVI consta um casal de perdigueiros). No séc. XVII chegou a Inglaterra levado pelo séquito da rainha Catarina de Bragança (figura num quadro de caça acompanhando o rei Carlos II, seu marido).

É curioso que no reinado de D. Sebastião (Séc. XVI) era comum (ainda que proibido) o seu uso pelas classes populares que a estes perdigueiros recorriam para mitigar as fomes que em tempo de descobertas grassavam entre nós. O povo invadia pela calada  da noite as coutadas reais onde causava grandes danos cinegéticos. No «Regimento das Coutadas de Lisboa e seu termo» (1557-1578) aparece pela primeira vez o termo perdigueiro, designando um cão para a caça à perdiz. Neste Regimento eram penalizados gravemente os seus possuidores não autorizados e que fossem reincidentes, com uma pena de dois anos de degredo nas galés...

A partir do século XVIII tornou-se conhecido e apreciado pela colónia mercantil inglesa do norte de Portugal ligada ao vinho do Porto e muitos exemplares foram enviados para Inglaterra, onde constituíram a base do Pointer inglês. Sydenham Edwards (in Cinographia Britannica de 1800) afirmava ter esse pointer “espanhol” (leia-se ibérico, já que há muito tempo a Península Ibérica tinha dois Estados distintos) sido introduzido no seu país por um negociante português do Porto, numa época assaz recente...

Hoje os estudos genéticos mais recentes e fiáveis a decorrer admitem fortemente o contributo genético do perdigueiro português na formação do pointer inglês, dos setters inglês e irlandês (provavelmente através da variedade de pêlo comprido do perdigueiro ibérico, hoje muito rara no perdigueiro português e nunca reconhecida oficialmente, embora existam ainda alguns exemplares…)

Mas continua a estar representado em objectos de arte (jarra pintada à mão por D.Fernando II de Saxe-Coburgo, Palácio da Pena - Sintra), no quadro do Rei D.Luis e dos príncipes trajando de caça no Palácio da Ajuda, Lisboa), numa pintura de uma jornada de caça de um inglês no Douro (Quinta de Gatão, Douro) ou em cerâmica artística da Real Fábrica do Rato (Palácio Pimenta, Lisboa).

Nos fins do Séc. XIX coincidindo com os conflitos sociais e políticos do fim da monarquia-primeira república, sofreu algum declínio, mercê de convulsões sociais graves e de novos gostos e contactos com o exterior, com a ascensão de uma burguesia endinheirada que dava projeção a raças estrangeiras então em moda.

No primeiro quartel do Século XX imbuídos de um espírito nacionalista em vigor na época, ilustres portugueses ligados ao património português vivo (equinos, bovinos, ovinos, caprinos, suínos e caninos) e com algum apoio dos serviços estatais preocupados com a recuperação e salvaguarda do nosso património vivo, percorreram o continente e ilhas de lés a lés, procedendo à inventariação, registo, preservação e reconhecimento de todas as raças autóctones que existem na actualidade. No caso dos cães apenas o sabujo português, o galgo lusitano e o “rabo-torto” da Terceira não puderam ser preservados.

No caso do perdigueiro alguns criadores deram início a esse esforço a partir dos núcleos conservados puros sobretudo no norte, tendo sido fundado o Livro Português de Origens em 1932, elaborado o primeiro Estalão da Raça (Standard) em 1931 e reconhecido internacionalmente como Standard Oficial da raça em 1938 (autor Prof. Manuel Fernandes Marques), estalão que sofreu ligeiras actualizações em 1962 (redução de todas as cores então autorizadas para o amarelo em três tonalidades e o castanho) e em 2004 (apenas o amarelo nas tonalidades claro, comum e escuro).

Com a revolução de Abril de 1974 e as alterações sócio políticas decorrentes, o perdigueiro, a exemplo das restantes raças autóctones, sofreu novo declínio encontrando-se então muito abastardado e “esquecido” por esses tempos…

Sendo uma raça autóctone multisecular e geneticamente dominante, foi de novo possível com o contributo de criadores, caçadores e serviços oficiais a partir do início dos anos oitenta do século XX voltar à velha forma e proceder à sua recuperação e a uma forte divulgação nacional e internacional da raça, hoje presente nos cinco continentes e com inúmeros criadores na Europa, nos Estados Unidos da América e no Brasil, que mantêm o padrão definido pelo Standard da raça. Estará, pois, salvo da extinção, quanto mais não seja pelo contributo dos criadores estrangeiros…

Estátua no Choupal de Torres Vedras (Foto JMD)

Dada a ligação por várias décadas de Torres Vedras à recuperação, preservação, divulgação e investigação desta raça canina através de um criador (afixo FCI “de Torres”) e porque esta milenar joia viva integra o nosso património genético, cultural e histórico, foi em boa hora que a Câmara Municipal de Torres Vedras aceitou a oferta de uma estátua do Perdigueiro Português (última obra de Mestre Augusto Cid) que desde 11 de Novembro de 2016 integra o património cultural da cidade, no renovado Parque do Choupal.

 


FORUM DO PATRIMÓNIO 2022 - Jornal BADALADAS de 30 SETEMBRO 2022

 




FORUM DO PATRIMÓNIO 2022

PATRIMÓNIO E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

 

A Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV) vai participar, mais uma vez, na reunião anual de associações de defesa do património, que este ano se realiza em Estremoz, no dia 1 de Outubro. É o Forum do Património 2022. O tema deste ano é “Património e participação democrática”.

Este fórum é uma iniciativa de um conjunto de associações ligadas à defesa e divulgação do Património, com representação de âmbito nacional, que se vem reunindo anualmente desde 2017, com o objetivo de pensar e agir em termos locais e nacionais, de modo articulado e de acordo com uma linha de ação comum.

Como objectivo principal do Forum deste ano, a Comissão Organizadora sublinha a necessidade de “fazer o ponto da situação no que diz respeito à apropriação, pelos cidadãos e pelos organismos que tutelam o património local e nacional, do conteúdo dos normativos que têm em vista a defesa, salvaguarda e valorização de bens culturais, seja do património material seja do imaterial. Será um espaço de diálogo, de debate, de cooperação e de intervenção, pautado pelo exercício de cidadania”.

Ao longo do dia, suceder-se-ão quatro painéis de abordagem às questões do Património:

1– Lei de bases do Património Cultural: balanço de 21 anos da sua aplicação (Lei no 107/2001, de 8 de Setembro); 2 – Políticas de defesa do Património; 3 – Apresentação de casos de defesa do Património; 4 – Património e Educação.

A realização do Forum do Património 2022 inclui, ainda, uma exposição de material produzido pelas associações, no âmbito das vertentes em debate: ações em defesa do património local, material considerado importante em termos de divulgação do património ou no âmbito da educação patrimonial.

O Fórum terminará com uma sessão pública, para apresentação de conclusões e projeção de ações futuras.

O PATRIMÓNIO TORRIENSE NO FORUM 2021


Joaquim Moedas Duarte, em representação da Associação do Património de Torres Vedras, de cuja Direcção faz parte,  apresentou uma comunicação intitulada  Património: na rua ou no jornal, é tema sempre actual, aqui resumido:

«Fundada em Março de 1979, a Associação do Património de Torres Vedras nasceu no âmbito do movimento iniciado em Alcobaça, em 1978, do qual sempre foi participante activa. De tal modo que o III Encontro Nacional de ADP’s foi por ela organizado em Torres Vedras, em 1982. Até hoje, esta associação teve actividade ininterrupta, pelo que ela própria já faz parte do Património Cultural de Torres Vedras. Os primeiros anos foram marcados pela oposição aos interesses imobiliários e a um Poder Autárquico permissivo, mais sensibilizado para o desenvolvimento urbanístico. É uma luta sempre actual mas, entretanto, outras linhas de acção se definiram, nomeadamente o estudo e a divulgação. São exemplos, a publicação regular da página PATRIMÓNIOS no semanário local BADALADAS, a participação no programa ANDAR NA RUA e a parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras no projecto ISA – PATRIMÓNIO».

No Forum deste ano de 2022 não deixaremos de intervir na discussão das comunicações em presença.

Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras

 

 


TORRES VEDRAS PRESENTE NA HISTÓRIA NACIONAL DA DEFESA DO PATRIMÓNIO

Em Portugal, o movimento associativo dedicado à defesa do Património expandiu-se rapidamente a partir de 1975, e, em janeiro de 1980, teve lugar o 1º Encontro das Associações de Defesa do Património (ADP), em Santarém. No ano seguinte foi ratificada por Portugal a Convenção para a Proteção do Património Cultural, Natural e Mundial, realizada em Paris, em 1972, por iniciativa da UNESCO. Em 1981, foi criado o Instituto Português do Património Cultural (IPPC), antecessor da atual Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). Foi também esse o ano em que teve lugar a "Campanha Nacional para a Defesa do Património", dinamizada por Pedro Canavarro, Jorge Custódio e Rui Rasquilho, três personalidades marcantes na promoção do Património.

Em 1981 o 2º Encontro das ADP decorreu em Braga.

Em 1982 realizou-se o 3º Encontro das Associações de Defesa do Património, em Torres Vedras, de 1 a 4 de Abril, com a presença de 91 associações, cerca de 400 participantes e 100 comunicações escritas. Os trabalhos tiveram lugar no CAC – Clube Artístico e Comercial. O tema desse memorável Encontro foi: «Tal como o homem sem memória se degrada, também a sociedade que despreza a sua herança cultural não evolui».


VOZ ACTIVA PELO PATRIMÓNIO CULTURAL

Reunir as ONG do Património para melhor defender a nossa herança comum.

O processo de "descentralização" que está a decorrer parece vir a subalternizar ainda mais a cultura em relação a outros factores de desenvolvimento. Corremos o risco de, a este nível, ficar ainda mais pobres! Mas isto não é uma fatalidade!

Como cidadãos, temos a responsabilidade de tomar a palavra e ter voz ativa. Neste sentido, as organizações não governamentais, como aquelas que representamos, têm uma responsabilidade acrescida, desde logo unindo esforços, divulgando e trocando experiências, refletindo sobre o que foi feito e como podemos ser mais eficazes.

(Página inicial do sítio do Forum Património: https://www.forumdopatrimonio.org/ )