04 março 2024

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO PATRIMONIAL - O CASO DA ADDPCTV


Chamamos a atenção para um trabalho que acompanhámos enquanto estava a ser elaborado e que foi concluído em Janeiro p. passado: a dissertação de Mestrado de Ana Rita Santos Pereira intitulada: "Educação e Comunicação Patrimonial - o caso da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras".





Trata-se de um trabalho académico que aborda "a importância das boas práticas de educação e comunicação patrimonial para o desenvolvimento da consciência histórica, patrimonial e cívica de uma comunidade, utilizando como caso de estudo a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras" (citação do resumo, inserto na abertura deste estudo).

É gratificante para a Direcção da ADDPCTV que esta associação, que completa este ano 45 anos de existência, tenha sido objecto de estudo de uma jovem torriense que se interessa pelo Património histórico-cultural.
Pelo índice podemos confirmar a excelente organização do trabalho, que parte do conceito geral de "Educação Patrimonial" para o caso particular da associação torriense, procurando caracterizar a actuação desta em relação às boas práticas anteriormente definidas.
Uma reflexão que é de grande utilidade para os membros da ADDPCTV, pois que os interroga, critica e propõe melhoria de procedimentos.

Entretanto, damos as boas vindas à Ana Rita, que se inscreveu como associada da ADDPCTV. Contamos com ela para ajudar a cumprir a missão da nossa associação.

Ana Rita dos Santos Pereira

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O MUSEU MUNICIPAL - I / Jornal BADALADAS, 23 Fevereiro 2024

 

PATRIMÓNIOS

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO 

SOBRE O MUSEU MUNICIPAL – I

Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação

do Património Cultural de Torres Vedras

 

Publicaremos, ao longo deste ano de 2024, um conjunto de artigos dedicados ao Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras. É nossa intenção contribuir construtivamente para um debate necessário sobre este importante equipamento cultural.

 

Foi em 1929 – há 95 anos! – que a Câmara Municipal de Torres Vedras aprovou o primeiro regulamento para o futuro Museu Municipal, o qual viria a ser inaugurado em 28 de Julho desse ano, na sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, junto à igreja de S. Pedro. Concretizava-se, assim, o repto lançado por Júlio Vieira, em 1925, nas páginas do semanário A Nossa Terra, com o artigo intitulado “Um alvitre”, no qual propunha “a criação de um Museu Regional e Arte e Arqueologia”. Para a sua localização, sugeria “a portaria do antigo Convento da Graça, onde estão os azulejos do Padroeiro de Torres Vedras” ou o local onde, quatro anos depois, viria a ser instalado. Recorde-se que Júlio Vieira foi uma notável figura da Cultura torriense, da primeira metade do século XX, autor do celebrado e, ainda hoje precioso livro Torres Vedras Antiga e Moderna, publicado em 1926. Infelizmente, já não assistiu à inauguração do Museu, pois estava muito doente e veio a falecer alguns meses depois, em Janeiro de 1930. Foi o seu amigo Rafael Salinas Calado, outra figura de grande dinamismo na área cultural, que veio a ser o concretizador da ideia, aglutinando vontades e contributos de diversa proveniência, com o apoio da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, de que era presidente o Tenente Vitorino França Borges. Foi essa Comissão que deliberou entregar a Direcção do Museu ao Dr. Salinas Calado. A notícia da Gazeta de Torres, de 4 de Agosto de 1928, enumerava algumas das peças que faziam parte do acervo museológico: o bufete, oferecido pelos morgados da Maceira, onde foi assinado o pacto de capitulação de Junot, após a batalha do Vimeiro em 1808; o livro do foral de Torres Vedras, concedido por D. Manuel I em 1501; vários e valiosos artigos de arte sacra; um colecção de numismática romana, visigótica e árabe; várias peças de louça das antigas fábricas do Juncal, Bica do Sapato e Vista Alegre; e oito quadros / tábuas pintadas, do século XVI, da escola de Gregório Lopes e Grão Vasco. As várias peças de pedra, epigrafadas ou de cantarias antigas, guardavam-se, até aí, nas dependências ou no exterior da Igreja de S. Pedro.

Diga-se, a propósito, que aquela sala onde se inaugurou o Museu há 95 anos, foi objecto de uma das mais notáveis obras de engenharia feitas em Torres Vedras, nos anos 40 do século passado: como era um edifício autónomo da Igreja de S. Pedro, e estava a impedir a construção da Av. Tenente Luís de Moura, necessária para o acesso ao Mercado Municipal e à Estação da CP, a então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais decidiu desmontá-lo  e adossá-lo à Igreja, deslocando-o cerca de vinte metros. De facto, aquela é uma pequena jóia do nosso Património que bem merecia a custosa obra.


À esquerda, sala da Irmandade dos Clérigos Pobres,

antes de ser deslocalizada (SIPA FOTO 00526126)


Salinas Calado, num texto posterior em que relatou o início do Museu, faz referência à organização de um Grupo dos Amigos do Museu, cujas cotas mensais, aliadas a um subsídio camarário, «permitiram bastantes aquisições», o que, «com as ofertas de particulares foi aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do Grande Museu que Torres um dia pode realizar». Esta interacção entre a população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do século passado, pode ser encarada como expressão pioneira do que, muitos anos depois – em 2004 -  a Lei Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto) veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica»: a participação dos cidadãos na «salvaguarda, enriquecimento e divulgação» dos museus.

Em 1944, por exiguidade do espaço, o Museu foi transferido para o antigo Hospital da Misericórdia, na R. Serpa Pinto. O constante aumento do seu espólio implicou a progressiva ampliação que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos, onde os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra Peninsular – criada em 1955, um ano depois da construção do obelisco no Jardim da Graça –  e outras em que se observavam as peças que vinham da fundação e muitas outras entretanto adquiridas ou doadas – caso de uma importante colecção de numismática, ou emprestadas, como a de malacologia.





                                         Museu nas instalações da Misericórdia, R. Serpa Pinto

Em 1989, o Museu passou para o piso térreo do Convento da Graça, após um período de alguma espectativa alimentada por personalidades e entidades interessadas no desenvolvimento cultural da jovem cidade. Chegou-se a pensar instalar ali um Centro Cultural – expressão da época.  Recorde-se que o vetusto edifício do convento foi ocupado, desde a extinção das ordens religiosas, em 1834, e depois com a República, por múltiplas funções administrativas, algumas das quais desde finais do século XIX: Tribunal, prisão, Conservatória do Registo Civil, Tesouraria das Finanças, GNR..

Durante os primeiros anos do regime democrático, iniciado em 1974, alguns grupos e associações ali se instalaram – Cooperativa Comunicação e Cultura, Espeleo Clube, grupo de escuteiros, grupo de Cinema de Animação – que conviveram com os últimos serviços a deixar o edifício – a Junta de Freguesia de S. Pedro, alguns armazéns e serviços camarários e o aquartelamento da GNR na parte sul.

Finalmente desocupado, pôde então a Câmara Municipal realizar obras de reabilitação com a demolição de paredes e pisos que tinham sido acrescentados para os ditos serviços e assim redescobrir os interiores originais, recuperando alguns elementos arquitectónicos tapados (colunas) e devolvendo a dignidade e amplitude de algumas salas – designadamente as grandes salas do celeiro e da copa, para aí instalar o “novo” Museu Municipal.  Foi ainda desta época o derrube do muro que separava as propriedades da Paróquia e do Município, devolvendo ao claustro a sua inteireza espacial.  Mas este esforço financeiro só foi possível porque a Camara aproveitou um financiamento disponível da Administração Central para instalar o GAT – Gabinete de Apoio Técnico aos municípios no piso superior do Convento da Graça.                                             

Pôde então o Museu ser re-inaugurado em 1992, ganhando-se com isso uma maior clareza e dignidade na exposição do notável espólio museográfico torriense, com destaque para os grandes núcleos – Pré-História, Linhas de Torres e Pintura Quinhentista, a par de outras peças eloquentes do património e da história local, como o Foral Manuelino. A concepção espacial e a montagem, desafio tão difícil como estimulante, ficou a dever-se à dedicação da Dra. Isabel Luna e de Leonel Trindade Jr. A relocalização do Museu Municipal – que em 1997 passou a designar-se Museu Municipal Leonel Trindade, em homenagem ao dedicado arqueólogo torriense – constituiu um marco importante para a cultura local, numa solução plena de significado, que sintetizou num mesmo projecto dois objectivos cruciais para uma maior afirmação da identidade torriense: a reabilitação da histórica construção e a visibilidade de um espólio que constitui inalienável testemunho desta comunidade. 

 

O Mosteiro de São Vicente de Fora e sua ligação a Torres Vedras - Jornal BADALADAS, 26 de Janeiro 2024



O Mosteiro de São Vicente de Fora e sua ligação a Torres Vedras

 Joana Santos Coelho

 

Com um volume colossal e simultaneamente elegante, ergue-se numa das colinas da capital e dele encontramos frequentemente imagens panorâmicas nos telejornais e telenovelas. Trata-se do primeiro mosteiro onde viveu Santo António: o Mosteiro de São Vicente de Fora. A sua história é quase tão antiga como a da nação portuguesa (1). Foi mandado erguer por D. Afonso Henriques em 1147, após a conquista de Lisboa aos mouros, num local muito especial para o rei: precisamente onde estava assente um dos acampamentos dos Cruzados que o auxiliaram nesta batalha, e cujas sepulturas, antropomórficas, ainda podem ser observadas no Mosteiro. Isto significa que o edifício foi construído do lado de fora da cidade e é daí que deriva o seu nome. Passou a estar oficialmente dentro da cidade quando no século XIV foi erguida a muralha fernandina, mas o nome do monumento manteve-se. O Mosteiro foi dedicado ao santo que viria a ser padroeiro de Lisboa, o mártir São Vicente, que é celebrado a 22 de Janeiro. Foi exatamente há 850 que os restos mortais do santo foram levados do Cabo de Sagres para a cidade das sete colinas, mais concretamente para a Sé, onde se encontram atualmente. São Vicente de Fora foi entregue à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. À semelhança do que tinham feito a partir do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, também em Lisboa os agostinianos contribuíram para a pacificação e ordenação do território. Os priores do Mosteiro, desde a sua fundação, adotaram uma política de aquisição intensa, o que levou à criação de um extenso e valioso património. Paralelamente recebia ricas doações, inclusive da Coroa. Desta forma, foi constituindo um conjunto de propriedades, sobretudo no termo de Lisboa, mas também nos termos vizinhos, como é o caso de Torres Vedras, onde o Mosteiro veio a exercer a sua influência e procurou rentabilidade.

Os cónegos interessavam-se por territórios férteis, próximos de linhas de água e de vias de comunicação, de fácil acesso a Lisboa, que era o mercado preferencial para os produtos excedentários. Estes territórios eram constituídos sobretudo por vinhas e herdades, que garantiam a abundância de vinho e de pão. No caso específico do trigo, intensamente cultivado na Estremadura, para além de ser um recurso fundamental na alimentação portuguesa, serviu também como moeda de troca como no exemplo que se segue: “Temos uma referência indireta à sua produção [de trigo] através de uma carta de doação de uma herdade no lugar da várzea, termo de Torres Vedras, com a condição de ser dado ao seu doador, em vida, 5 alqueires de trigo” (2). É possivelmente sob a influência dos agostinianos e também dos moçárabes que D. Afonso Henriques manda erguer, num morro junto a Torres Vedras, uma capela que teve este santo como orago: a Ermida de São Vicente, que acolhe atualmente o Centro Interpretativo das Linhas de Torres e que pertence ao Forte de São Vicente. A imagem do santo, venerada neste espaço, foi transferida para a Capela da Nossa Senhora do Ameal, para o altar-mor (3). De madeira repintada incontáveis vezes, encontra-se resguardada no Museu da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, tendo sido colocada uma réplica no altar-mor na referida anterior capela.

Desde o período medieval o Mosteiro foi um importante centro espiritual e cultural. Sabe-se que no século XIII na sua biblioteca havia 60 obras em 116 volumes, predominantemente sobre tema religiosos, mas também de Astronomia, Filosofia, Aritmética, História, entre outros. A produção de livros no scriptorium, e posteriormente (séc. XVI) na tipografia própria, engrandeceu a biblioteca do mosteiro que, em 1824, contava com mais de 6 mil volumes. A fama de notável centro de estudos contribuiu para que Fernando Martins de Bulhões, ou seja, Santo António, escolhesse este mosteiro para ingressar como noviço. Entrou nesta casa religiosa quando tinha cerca de 15 anos e aqui viveu 2 anos em recolhimento, meditação e estudo. Reza a lenda que neste período foi tentado pelo diabo 5 vezes e, para lhe resistir, o santo desenhou com o próprio dedo, e muita fé, cruzes nas paredes do mosteiro. Estas resistiram até aos dias de hoje e encontram-se na igreja, na capela de Santo António, que está situada no local onde se pensa ter sido a cela dele quando ali viveu. Diz-se que o jovem era constantemente visitado por familiares e amigos, e portanto decidiu mudar-se para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Independente dos seus motivos, o que é certo é que a sua passagem por estes mosteiros agostinianos foi crucial para a sua formação. Destacou-se pelo dom da palavra, o que contribuiu fortemente para que lhe fosse conferido o título de Doutor da Igreja.

 

RECONSTRUÇÃO NO SÉCULO XVI

Do mosteiro medieval de São Vicente de Fora, onde viveu o santo, pouco resta. A parte que ficou melhor conservada foi a cisterna que, curiosamente, ainda está em funcionamento, captando as águas pluviais do edifício. A grande transformação do monumento deu-se a partir de 1582. Neste ano é lançada a primeira pedra da reconstrução do Mosteiro. Filipe I, um amante da arquitetura e um católico fervoroso, estava no trono de Portugal há cerca de 2 anos. Queria deixar uma grande marca na cidade natal da sua querida mãe (D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I) e daí resultou esta empreitada. Para além disso, a escolha recaiu sobre este edifício precisamente por estar diretamente associado a D. Afonso Henriques. Desta forma, é como se estivesse a repetir a ação do primeiro rei de Portugal, do qual ele sentia necessidade de afirmar que era descendente. Filipe I delegou este grande projeto aos arquitetos reais de Espanha e Portugal, Juan Herrera e Filipe Terzi, respetivamente.

 Após o falecimento de ambos, os mestres de obras desta empreitada foram também dos mais afamados no reino, como Baltazar Álvares, os Nunes Tinoco e Frederico Ludovice. Herrera e Terzi fizeram deste Mosteiro uma das construções pioneiras do Maneirismo em Portugal. Uma das novidades, deveras irreverente, foi a elevação de uma segunda torre. Até então apenas as catedrais, ou seja, as igrejas dos bispos, é que podiam ter 2 torres. A partir de então passou a ser prática comum na arquitetura eclesiástica em Portugal. Foram necessários mais de 200 anos para se concluir a sua construção, em ritmos irregulares de trabalho. Mas porque será que os Bragança quiseram dar continuidade à construção filipina? Precisamente para lhe tirar esse rótulo. Inteligentemente, D. João IV (o 1º rei da Dinastia Brigantina) escolheu o Mosteiro para acolher o panteão da sua família. Entre reis, rainhas, príncipes e princesas, é aqui que se encontram sepultadas mais de 50 pessoas desta dinastia. Na continuidade da missão de desassociar os Filipes a São Vicente de Fora, D. Pedro II e D. João V desenvolvem ricas campanhas de decoração neste espaço, como por exemplo com mármores embutidos, talha dourada e azulejos barrocos, numa quantidade nunca antes vista. São mais de 100 azulejos in situ, feitos nos séculos XVII e XVIII. Outro facto curioso sobre o Mosteiro é que entre, 1772 e 1792, acolheu a Patriarcal (igreja do Sr. Patriarca de Lisboa) e foi por esse motivo que foi dada a permissão para a construção de um baldaquino no altar mor, onde ainda hoje pode ser contemplado. Nesse período os cónegos foram transferidos para o Convento de Mafra, e é também deste período a encomenda da famosa coleção de painéis de azulejo com a Fábulas de La Fontaine, que faz as delícias de miúdos e graúdos.

O Mosteiro foi reabilitado para acolher a Cúria Patriarcal, onde se encontra instalada desde 1998, e também para se proceder à musealização do espaço. É no seu terraço que existe uma das melhores vistas sobre Lisboa. O Mosteiro está de portas abertas de 2ª a Domingo, entre as 10h e as 18h, e merece a visita de todos.

Referências bibliográficas

1- SALDANHA, Sandra Costa (coor.) (2010) O Mosteiro de São Vicente de Fora - Arte e História. Lisboa: Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa. 2- SILVA, Carlos Guardado da (2017) Património Rural do Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa): séculos XII-XIII. Maranhão: Universidade Estadual do Maranhão. 3- VIEIRA, Júlio (2011) Torres Vedras Antiga e Moderna. 2ª edição. Torres Vedras: Livro do Dia.



 

O PRESÉPIO - 800 ANOS DE ENCANTAMENTO / Jornal BADALADAS - 29 DEZEMBRO 2023

 

O PRESÉPIO

800 ANOS DE ENCANTAMENTO

 

José Pedro Sobreiro

 

Neste Natal passaram 800 anos sobre um acontecimento memorável, determinante para difusão do culto do nascimento de Cristo.

 Na noite de 24 de dezembro de 1223 S. Francisco de Assis, “o pobrezinho de Deus” como era chamado, convocou as gentes da aldeia de Greccio, na região da Úmbria, Itália, para uma maravilhosa performance - a celebração de um acto litúrgico com a representação ao vivo do nascimento de Jesus numa gruta das imediações. Aí, na noite fria daquela região montanhosa, o poverello falou ao povo com tal emoção, que, num arrobo místico, sentiu que segurando nos braços a imagem do menino-Deus este lhe sorria.                                                                                                                       

Estava criado um culto que os seus fratelli continuariam nos anos seguintes, na quietude de igrejas e mosteiros, dando origem a uma das mais enternecedoras tradições do cristianismo – o Presépio de Belém.

 

Embora já existissem anteriores representações do tema, em pinturas e baixos relevos dos primórdios da cristandade,  foi a singularidade daquele momento, a intensidade da emoção vivida por quem a ele assistiu, que fixou para sempre a evocação daquela história no coração dos fiéis.                                   Assim, assistimos nos séculos seguintes ao aparecimento de conjuntos escultóricos, com figuras de grandes dimensões em pedra, terracota ou madeira, assim como em retábulos de altar em pintura ou em baixo relevo, nas grandes catedrais, abadias e mosteiros da europa central.                             

 Logo em meados deste século XIII, Nicola Pisano esculpiu em mármore uma das mais belas cenas da natividade, no púlpito do Baptistério de Pisa. Mas crê-se que a primeira representação em vulto perfeito se deve Arnolfo di Cambio, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma.

Com o tempo, a construção de presépios vai-se difundindo por palácios e casas nobres procurando adaptar-se aos espaços da intimidade familiar, assumindo a forma de maquinetas, caixas-oratórios, ou peças de ourivesaria para no século XVIII atingir o esplendor das grandes composições barrocas.                                                                                                                                       

 Com efeito, é na centúria de setecentos que o presépio atinge a sua feição mais espectacular, com os grandes e feéricos conjuntos de multidões de figuras campestres, grupos profissionais e imponentes séquitos reais deambulando por cenários de uma natureza exuberante, com afloramentos rochosos, cascatas e densa vegetação, pontuada por apontamentos de ruínas romanas, numa coreografia plena de movimento. São autênticas romarias, tão distantes já da quietude misteriosa da noite primordial, que relevam mais da exibição do notável talento dos escultores barristas da época, mas que, afinal, são outra forma de expressar o sentimento de profunda alegria e exaltação pelo transcendente acontecimento.

Os presépios barrocos portugueses, na esteira do estilo Napolitano, são um eloquente exemplo desta atitude, destacando-se entre nós os conhecidos os casos de excelentes barristas como António Ferreira e Machado de Castro e os magníficos conjuntos da igreja da Estrela, da Madre de Deus e da Sé de Lisboa, entre outros.

É também nesta época que se desenvolvem os presépios mecânicos que imprimem algum movimento a figuras e elementos cenográficos, contribuindo para um maior deslumbramento das produções artísticas.                                                                                                                  

No século dezanove alarga-se a expansão da montagem do presépio nos lares cristãos e, sob a inspiração do romantismo, desenvolve-se o gosto de apresentar novidades cenográficas de tipo orientalizante e a exploração de novos materiais, procurando por vezes soluções mais económicas, como os presépios de papel, com figuras recortadas.                                       

Daqui se chega naturalmente ao aparecimento dos presépios populares, de inspiração ruralista, na esteira do presépio barroco, mas agora com uma feição naïf, produto das habilidades artesanais, que são pretexto para representar os hábitos, costumes, actividades laborais e o ambiente do mundo rural, por vezes com uma ingenuidade desarmante. No fundo, são a expressão de um desejo de participar no mistério da noite santa, através do anacronismo da representação trazendo para a actualidade e para o local a evocação do acontecimento festivo, que assim se torna intemporal e universal.

Mas o evento de Greccio, para além da divulgação da representação tridimensional – também se repercutiu na história da pintura ocidental, estabelecendo definitivamente o tema em conjuntos de frescos e em retábulos de altar, a partir de finais do séc. XIII, desde logo com Giotto e outros pintores do final da arte gótica, para se afirmar na plena renascença.   Abordada em dois subtemas – Adoração dos Pastores e Adoração dos Magos - a construção da cena vai conhecendo várias formas. Da singela cabana de barrotes e cobertura de colmo até à tosca gruta ou à ruína da antiguidade (alusão cheia de simbolismo) a disposição das figuras sacras evolui de uma visão mais naturalista – inicialmente a Virgem Maria encontra-se ainda deitada – até à encenação mais canónica, com Maria e José ajoelhados em adoração ao Menino deitado na manjedoura, passando pela Virgem com o Menino ao colo, com José em plano mais recuado. No enquadramento, não falta a presença dos ternos animais- o boi e o jumento – conforme a tradição de antigos escritos, os pastores com as suas humildes ofertas, assim como grupos de anjos esvoaçantes que anunciam a boa nova.                                                                                                                                


No caso da Adoração dos Magos (mais tarde designados por Reis Magos) a centralidade da sagrada família mantém-se e a cena presta-se à exibição de grandes e exuberantes séquitos de figuras nobres e de pajens, cavalos e camelos, numa clara apropriação pelos poderosos encomendadores que por vezes se fazem retratar, como no caso das grandes composições de Fabriano e Botticelli.

Também em Torres Vedras possuímos dois conjuntos desta época renascentista– ambos em pintura a óleo sobre madeira e confiados á guarda do Museu Municipal Leonel Trindade :         

O Retábulo de Santa Maria do Castelo, conjunto de 5 painéis atribuídos durante algum tempo a Gregório Lopes e hoje a um dos seus discípulos, pintura da terceira década de quinhentos que está ao nível do melhor da melhor produção manuelina ;                                                               

e o  Retábulo do Convento da Graça, conjunto de 6 painéis, oriundo do primitivo mosteiro, onde viveu S. Gonçalo, de autor desconhecido de origem flamenga, onde perpassa ainda um sabor tardo gótico, quer na modelação das figuras quer na espacialidade do cenário.                                                                                                                                             

Embora não se conheça o autor, foi atribuída, pelo Dr. Fernando António B. Pereira, a fonte de inspiração desta composição numa gravura do pintor alemão Martin Schongauer (1450-1491), pois esta prática de circulação de gravuras já existia nessa época.

E é com um destes quadros do segundo conjunto – Adoração dos Pastores - que constitui a mais antiga representação da natividade, entre nós, que evocamos a efeméride dos oitocentos anos do presépio.                                                                                                                                               

Pena é que não esteja visível ao público, devido a ter sido retirada temporariamente por falta de condições do nosso Museu.       


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