O Mosteiro de São
Vicente de Fora e sua ligação a Torres Vedras
Joana Santos Coelho
Com um volume colossal e simultaneamente elegante, ergue-se numa das
colinas da capital e dele encontramos frequentemente imagens panorâmicas nos
telejornais e telenovelas. Trata-se do primeiro mosteiro onde viveu Santo
António: o Mosteiro de São Vicente de Fora. A sua história é quase tão antiga
como a da nação portuguesa (1). Foi mandado erguer por D. Afonso Henriques em
1147, após a conquista de Lisboa aos mouros, num local muito especial para o
rei: precisamente onde estava assente um dos acampamentos dos Cruzados que o
auxiliaram nesta batalha, e cujas sepulturas, antropomórficas, ainda podem ser
observadas no Mosteiro. Isto significa que o edifício foi construído do lado de
fora da cidade e é daí que deriva o seu nome. Passou a estar oficialmente dentro
da cidade quando no século XIV foi erguida a muralha fernandina, mas o nome do
monumento manteve-se. O Mosteiro foi dedicado ao santo que viria a ser
padroeiro de Lisboa, o mártir São Vicente, que é celebrado a 22 de Janeiro. Foi
exatamente há 850 que os restos mortais do santo foram levados do Cabo de
Sagres para a cidade das sete colinas, mais concretamente para a Sé, onde se
encontram atualmente. São Vicente de Fora foi entregue à Ordem dos Cónegos
Regrantes de Santo Agostinho. À semelhança do que tinham feito a partir do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, também em Lisboa os agostinianos
contribuíram para a pacificação e ordenação do território. Os priores do
Mosteiro, desde a sua fundação, adotaram uma política de aquisição intensa, o
que levou à criação de um extenso e valioso património. Paralelamente recebia
ricas doações, inclusive da Coroa. Desta forma, foi constituindo um conjunto de
propriedades, sobretudo no termo de Lisboa, mas também nos termos vizinhos,
como é o caso de Torres Vedras, onde o Mosteiro veio a exercer a sua influência
e procurou rentabilidade.
Os cónegos interessavam-se por territórios férteis, próximos de linhas
de água e de vias de comunicação, de fácil acesso a Lisboa, que era o mercado
preferencial para os produtos excedentários. Estes territórios eram
constituídos sobretudo por vinhas e herdades, que garantiam a abundância de
vinho e de pão. No caso específico do trigo, intensamente cultivado na
Estremadura, para além de ser um recurso fundamental na alimentação portuguesa,
serviu também como moeda de troca como no exemplo que se segue: “Temos uma
referência indireta à sua produção [de trigo] através de uma carta de doação de
uma herdade no lugar da várzea, termo de Torres Vedras, com a condição de ser
dado ao seu doador, em vida, 5 alqueires de trigo” (2). É possivelmente sob a
influência dos agostinianos e também dos moçárabes que D. Afonso Henriques
manda erguer, num morro junto a Torres Vedras, uma capela que teve este santo
como orago: a Ermida de São Vicente, que acolhe atualmente o Centro
Interpretativo das Linhas de Torres e que pertence ao Forte de São Vicente. A
imagem do santo, venerada neste espaço, foi transferida para a Capela da Nossa
Senhora do Ameal, para o altar-mor (3). De madeira repintada incontáveis vezes,
encontra-se resguardada no Museu da Santa Casa da Misericórdia de Torres
Vedras, tendo sido colocada uma réplica no altar-mor na referida anterior
capela.
Desde o período medieval o Mosteiro foi um importante centro
espiritual e cultural. Sabe-se que no século XIII na sua biblioteca havia 60
obras em 116 volumes, predominantemente sobre tema religiosos, mas também de
Astronomia, Filosofia, Aritmética, História, entre outros. A produção de livros
no scriptorium, e posteriormente (séc. XVI) na tipografia própria, engrandeceu
a biblioteca do mosteiro que, em 1824, contava com mais de 6 mil volumes. A
fama de notável centro de estudos contribuiu para que Fernando Martins de
Bulhões, ou seja, Santo António, escolhesse este mosteiro para ingressar como
noviço. Entrou nesta casa religiosa quando tinha cerca de 15 anos e aqui viveu
2 anos em recolhimento, meditação e estudo. Reza a lenda que neste período foi
tentado pelo diabo 5 vezes e, para lhe resistir, o santo desenhou com o próprio
dedo, e muita fé, cruzes nas paredes do mosteiro. Estas resistiram até aos dias
de hoje e encontram-se na igreja, na capela de Santo António, que está situada
no local onde se pensa ter sido a cela dele quando ali viveu. Diz-se que o
jovem era constantemente visitado por familiares e amigos, e portanto decidiu
mudar-se para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Independente dos seus
motivos, o que é certo é que a sua passagem por estes mosteiros agostinianos
foi crucial para a sua formação. Destacou-se pelo dom da palavra, o que contribuiu
fortemente para que lhe fosse conferido o título de Doutor da Igreja.
RECONSTRUÇÃO NO SÉCULO XVI
Do mosteiro medieval de São Vicente de Fora, onde viveu o santo, pouco
resta. A parte que ficou melhor conservada foi a cisterna que, curiosamente,
ainda está em funcionamento, captando as águas pluviais do edifício. A grande
transformação do monumento deu-se a partir de 1582. Neste ano é lançada a
primeira pedra da reconstrução do Mosteiro. Filipe I, um amante da arquitetura
e um católico fervoroso, estava no trono de Portugal há cerca de 2 anos. Queria
deixar uma grande marca na cidade natal da sua querida mãe (D. Isabel de
Portugal, filha de D. Manuel I) e daí resultou esta empreitada. Para além
disso, a escolha recaiu sobre este edifício precisamente por estar diretamente
associado a D. Afonso Henriques. Desta forma, é como se estivesse a repetir a
ação do primeiro rei de Portugal, do qual ele sentia necessidade de afirmar que
era descendente. Filipe I delegou este grande projeto aos arquitetos reais de
Espanha e Portugal, Juan Herrera e Filipe Terzi, respetivamente.
Após o falecimento de ambos, os
mestres de obras desta empreitada foram também dos mais afamados no reino, como
Baltazar Álvares, os Nunes Tinoco e Frederico Ludovice. Herrera e Terzi fizeram
deste Mosteiro uma das construções pioneiras do Maneirismo em Portugal. Uma das
novidades, deveras irreverente, foi a elevação de uma segunda torre. Até então
apenas as catedrais, ou seja, as igrejas dos bispos, é que podiam ter 2 torres.
A partir de então passou a ser prática comum na arquitetura eclesiástica em
Portugal. Foram necessários mais de 200 anos para se concluir a sua construção,
em ritmos irregulares de trabalho. Mas porque será que os Bragança quiseram dar
continuidade à construção filipina? Precisamente para lhe tirar esse rótulo.
Inteligentemente, D. João IV (o 1º rei da Dinastia Brigantina) escolheu o
Mosteiro para acolher o panteão da sua família. Entre reis, rainhas, príncipes
e princesas, é aqui que se encontram sepultadas mais de 50 pessoas desta
dinastia. Na continuidade da missão de desassociar os Filipes a São Vicente de
Fora, D. Pedro II e D. João V desenvolvem ricas campanhas de decoração neste
espaço, como por exemplo com mármores embutidos, talha dourada e azulejos
barrocos, numa quantidade nunca antes vista. São mais de 100 azulejos in situ,
feitos nos séculos XVII e XVIII. Outro facto curioso sobre o Mosteiro é que
entre, 1772 e 1792, acolheu a Patriarcal (igreja do Sr. Patriarca de Lisboa) e
foi por esse motivo que foi dada a permissão para a construção de um baldaquino
no altar mor, onde ainda hoje pode ser contemplado. Nesse período os cónegos
foram transferidos para o Convento de Mafra, e é também deste período a
encomenda da famosa coleção de painéis de azulejo com a Fábulas de La Fontaine,
que faz as delícias de miúdos e graúdos.
O Mosteiro foi reabilitado para acolher a Cúria Patriarcal, onde se encontra instalada desde 1998, e também para se proceder à musealização do espaço. É no seu terraço que existe uma das melhores vistas sobre Lisboa. O Mosteiro está de portas abertas de 2ª a Domingo, entre as 10h e as 18h, e merece a visita de todos.
Referências
bibliográficas
1- SALDANHA, Sandra Costa (coor.) (2010) O Mosteiro de São Vicente de Fora - Arte e História. Lisboa: Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa. 2- SILVA, Carlos Guardado da (2017) Património Rural do Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa): séculos XII-XIII. Maranhão: Universidade Estadual do Maranhão. 3- VIEIRA, Júlio (2011) Torres Vedras Antiga e Moderna. 2ª edição. Torres Vedras: Livro do Dia.
Sem comentários:
Enviar um comentário