PATRIMÓNIOS
NOTAS PARA UMA REFLEXÃO
SOBRE O MUSEU MUNICIPAL – I
Direcção
da Associação para a Defesa e Divulgação
do
Património Cultural de Torres Vedras
Publicaremos, ao longo deste ano de
2024, um conjunto de artigos dedicados ao Museu Municipal Leonel Trindade de
Torres Vedras. É nossa intenção contribuir construtivamente para um debate
necessário sobre este importante equipamento cultural.
Foi em 1929 – há 95 anos!
– que a Câmara Municipal de Torres Vedras aprovou o primeiro regulamento para o
futuro Museu Municipal, o qual viria a ser inaugurado em 28 de Julho desse ano,
na sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, junto à igreja de S. Pedro. Concretizava-se,
assim, o repto lançado por Júlio Vieira, em 1925, nas páginas do semanário A Nossa Terra, com o artigo intitulado
“Um alvitre”, no qual propunha “a criação de um Museu Regional e Arte e
Arqueologia”. Para a sua localização, sugeria “a portaria do antigo Convento da
Graça, onde estão os azulejos do Padroeiro de Torres Vedras” ou o local onde, quatro
anos depois, viria a ser instalado. Recorde-se que Júlio Vieira foi uma notável
figura da Cultura torriense, da primeira metade do século XX, autor do
celebrado e, ainda hoje precioso livro Torres
Vedras Antiga e Moderna, publicado em 1926. Infelizmente, já não assistiu à
inauguração do Museu, pois estava muito doente e veio a falecer alguns meses
depois, em Janeiro de 1930. Foi o seu amigo Rafael Salinas Calado, outra figura
de grande dinamismo na área cultural, que veio a ser o concretizador da ideia,
aglutinando vontades e contributos de diversa proveniência, com o apoio da
Comissão Administrativa da Câmara Municipal, de que era presidente o Tenente
Vitorino França Borges. Foi essa Comissão que deliberou entregar a Direcção do
Museu ao Dr. Salinas Calado. A notícia da Gazeta
de Torres, de 4 de Agosto de 1928, enumerava algumas das peças que faziam
parte do acervo museológico: o bufete, oferecido pelos morgados da Maceira,
onde foi assinado o pacto de capitulação de Junot, após a batalha do Vimeiro em
1808; o livro do foral de Torres Vedras, concedido por D. Manuel I em 1501;
vários e valiosos artigos de arte sacra; um colecção de numismática romana,
visigótica e árabe; várias peças de louça das antigas fábricas do Juncal, Bica
do Sapato e Vista Alegre; e oito quadros / tábuas pintadas, do século XVI, da
escola de Gregório Lopes e Grão Vasco. As várias peças de pedra, epigrafadas ou
de cantarias antigas, guardavam-se, até aí, nas dependências ou no exterior da
Igreja de S. Pedro.
Diga-se, a propósito, que
aquela sala onde se inaugurou o Museu há 95 anos, foi objecto de uma das mais notáveis
obras de engenharia feitas em Torres Vedras, nos anos 40 do século passado:
como era um edifício autónomo da Igreja de S. Pedro, e estava a impedir a
construção da Av. Tenente Luís de Moura, necessária para o acesso ao Mercado
Municipal e à Estação da CP, a então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais decidiu desmontá-lo e
adossá-lo à Igreja, deslocando-o cerca de vinte metros. De facto, aquela é uma
pequena jóia do nosso Património que bem merecia a custosa obra.
À esquerda, sala da Irmandade dos Clérigos Pobres,
antes de ser deslocalizada (SIPA FOTO 00526126)
Salinas Calado, num texto
posterior em que relatou o início do Museu, faz referência à organização de um Grupo dos Amigos do Museu, cujas cotas
mensais, aliadas a um subsídio camarário, «permitiram
bastantes aquisições», o que, «com as
ofertas de particulares foi aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do
Grande Museu que Torres um dia pode realizar». Esta interacção entre a
população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do século passado, pode ser
encarada como expressão pioneira do que, muitos anos depois – em 2004 - a Lei Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº
47/2004, de 19 de Agosto) veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica»: a participação dos cidadãos na
«salvaguarda, enriquecimento e divulgação»
dos museus.
Em 1944, por exiguidade
do espaço, o Museu foi transferido para o antigo Hospital da Misericórdia, na
R. Serpa Pinto. O constante aumento do seu espólio implicou a progressiva
ampliação que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos,
onde os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma
prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor
investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o
referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra
Peninsular – criada em 1955, um ano depois da construção do obelisco no Jardim
da Graça – e outras em que se observavam
as peças que vinham da fundação e muitas outras entretanto adquiridas ou doadas
– caso de uma importante colecção de numismática, ou emprestadas, como a de
malacologia.
Em 1989, o Museu passou
para o piso térreo do Convento da Graça, após um período de alguma espectativa
alimentada por personalidades e entidades interessadas no desenvolvimento
cultural da jovem cidade. Chegou-se a pensar instalar ali um Centro Cultural – expressão da época. Recorde-se que o vetusto edifício do convento
foi ocupado, desde a extinção das ordens religiosas, em 1834, e depois com a
República, por múltiplas funções administrativas, algumas das quais desde
finais do século XIX: Tribunal, prisão, Conservatória do Registo Civil,
Tesouraria das Finanças, GNR..
Durante os primeiros anos
do regime democrático, iniciado em 1974, alguns grupos e associações ali se
instalaram – Cooperativa Comunicação e Cultura, Espeleo Clube, grupo de
escuteiros, grupo de Cinema de Animação – que conviveram com os últimos
serviços a deixar o edifício – a Junta de Freguesia de S. Pedro, alguns
armazéns e serviços camarários e o aquartelamento da GNR na parte sul.
Finalmente desocupado,
pôde então a Câmara Municipal realizar obras de reabilitação com a demolição de
paredes e pisos que tinham sido acrescentados para os ditos serviços e assim
redescobrir os interiores originais, recuperando alguns elementos
arquitectónicos tapados (colunas) e devolvendo a dignidade e amplitude de
algumas salas – designadamente as grandes salas do celeiro e da copa, para aí
instalar o “novo” Museu Municipal. Foi
ainda desta época o derrube do muro que separava as propriedades da Paróquia e
do Município, devolvendo ao claustro a sua inteireza espacial. Mas este esforço financeiro só foi possível
porque a Camara aproveitou um financiamento disponível da Administração Central
para instalar o GAT – Gabinete de Apoio Técnico aos municípios no piso superior
do Convento da Graça.
Pôde então o Museu ser re-inaugurado em 1992, ganhando-se com isso uma maior clareza e dignidade na exposição do notável espólio museográfico torriense, com destaque para os grandes núcleos – Pré-História, Linhas de Torres e Pintura Quinhentista, a par de outras peças eloquentes do património e da história local, como o Foral Manuelino. A concepção espacial e a montagem, desafio tão difícil como estimulante, ficou a dever-se à dedicação da Dra. Isabel Luna e de Leonel Trindade Jr. A relocalização do Museu Municipal – que em 1997 passou a designar-se Museu Municipal Leonel Trindade, em homenagem ao dedicado arqueólogo torriense – constituiu um marco importante para a cultura local, numa solução plena de significado, que sintetizou num mesmo projecto dois objectivos cruciais para uma maior afirmação da identidade torriense: a reabilitação da histórica construção e a visibilidade de um espólio que constitui inalienável testemunho desta comunidade.
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