04 março 2024

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO PATRIMONIAL - O CASO DA ADDPCTV


Chamamos a atenção para um trabalho que acompanhámos enquanto estava a ser elaborado e que foi concluído em Janeiro p. passado: a dissertação de Mestrado de Ana Rita Santos Pereira intitulada: "Educação e Comunicação Patrimonial - o caso da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras".





Trata-se de um trabalho académico que aborda "a importância das boas práticas de educação e comunicação patrimonial para o desenvolvimento da consciência histórica, patrimonial e cívica de uma comunidade, utilizando como caso de estudo a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras" (citação do resumo, inserto na abertura deste estudo).

É gratificante para a Direcção da ADDPCTV que esta associação, que completa este ano 45 anos de existência, tenha sido objecto de estudo de uma jovem torriense que se interessa pelo Património histórico-cultural.
Pelo índice podemos confirmar a excelente organização do trabalho, que parte do conceito geral de "Educação Patrimonial" para o caso particular da associação torriense, procurando caracterizar a actuação desta em relação às boas práticas anteriormente definidas.
Uma reflexão que é de grande utilidade para os membros da ADDPCTV, pois que os interroga, critica e propõe melhoria de procedimentos.

Entretanto, damos as boas vindas à Ana Rita, que se inscreveu como associada da ADDPCTV. Contamos com ela para ajudar a cumprir a missão da nossa associação.

Ana Rita dos Santos Pereira

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O MUSEU MUNICIPAL - I / Jornal BADALADAS, 23 Fevereiro 2024

 

PATRIMÓNIOS

NOTAS PARA UMA REFLEXÃO 

SOBRE O MUSEU MUNICIPAL – I

Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação

do Património Cultural de Torres Vedras

 

Publicaremos, ao longo deste ano de 2024, um conjunto de artigos dedicados ao Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras. É nossa intenção contribuir construtivamente para um debate necessário sobre este importante equipamento cultural.

 

Foi em 1929 – há 95 anos! – que a Câmara Municipal de Torres Vedras aprovou o primeiro regulamento para o futuro Museu Municipal, o qual viria a ser inaugurado em 28 de Julho desse ano, na sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, junto à igreja de S. Pedro. Concretizava-se, assim, o repto lançado por Júlio Vieira, em 1925, nas páginas do semanário A Nossa Terra, com o artigo intitulado “Um alvitre”, no qual propunha “a criação de um Museu Regional e Arte e Arqueologia”. Para a sua localização, sugeria “a portaria do antigo Convento da Graça, onde estão os azulejos do Padroeiro de Torres Vedras” ou o local onde, quatro anos depois, viria a ser instalado. Recorde-se que Júlio Vieira foi uma notável figura da Cultura torriense, da primeira metade do século XX, autor do celebrado e, ainda hoje precioso livro Torres Vedras Antiga e Moderna, publicado em 1926. Infelizmente, já não assistiu à inauguração do Museu, pois estava muito doente e veio a falecer alguns meses depois, em Janeiro de 1930. Foi o seu amigo Rafael Salinas Calado, outra figura de grande dinamismo na área cultural, que veio a ser o concretizador da ideia, aglutinando vontades e contributos de diversa proveniência, com o apoio da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, de que era presidente o Tenente Vitorino França Borges. Foi essa Comissão que deliberou entregar a Direcção do Museu ao Dr. Salinas Calado. A notícia da Gazeta de Torres, de 4 de Agosto de 1928, enumerava algumas das peças que faziam parte do acervo museológico: o bufete, oferecido pelos morgados da Maceira, onde foi assinado o pacto de capitulação de Junot, após a batalha do Vimeiro em 1808; o livro do foral de Torres Vedras, concedido por D. Manuel I em 1501; vários e valiosos artigos de arte sacra; um colecção de numismática romana, visigótica e árabe; várias peças de louça das antigas fábricas do Juncal, Bica do Sapato e Vista Alegre; e oito quadros / tábuas pintadas, do século XVI, da escola de Gregório Lopes e Grão Vasco. As várias peças de pedra, epigrafadas ou de cantarias antigas, guardavam-se, até aí, nas dependências ou no exterior da Igreja de S. Pedro.

Diga-se, a propósito, que aquela sala onde se inaugurou o Museu há 95 anos, foi objecto de uma das mais notáveis obras de engenharia feitas em Torres Vedras, nos anos 40 do século passado: como era um edifício autónomo da Igreja de S. Pedro, e estava a impedir a construção da Av. Tenente Luís de Moura, necessária para o acesso ao Mercado Municipal e à Estação da CP, a então Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais decidiu desmontá-lo  e adossá-lo à Igreja, deslocando-o cerca de vinte metros. De facto, aquela é uma pequena jóia do nosso Património que bem merecia a custosa obra.


À esquerda, sala da Irmandade dos Clérigos Pobres,

antes de ser deslocalizada (SIPA FOTO 00526126)


Salinas Calado, num texto posterior em que relatou o início do Museu, faz referência à organização de um Grupo dos Amigos do Museu, cujas cotas mensais, aliadas a um subsídio camarário, «permitiram bastantes aquisições», o que, «com as ofertas de particulares foi aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do Grande Museu que Torres um dia pode realizar». Esta interacção entre a população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do século passado, pode ser encarada como expressão pioneira do que, muitos anos depois – em 2004 -  a Lei Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto) veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica»: a participação dos cidadãos na «salvaguarda, enriquecimento e divulgação» dos museus.

Em 1944, por exiguidade do espaço, o Museu foi transferido para o antigo Hospital da Misericórdia, na R. Serpa Pinto. O constante aumento do seu espólio implicou a progressiva ampliação que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos, onde os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra Peninsular – criada em 1955, um ano depois da construção do obelisco no Jardim da Graça –  e outras em que se observavam as peças que vinham da fundação e muitas outras entretanto adquiridas ou doadas – caso de uma importante colecção de numismática, ou emprestadas, como a de malacologia.





                                         Museu nas instalações da Misericórdia, R. Serpa Pinto

Em 1989, o Museu passou para o piso térreo do Convento da Graça, após um período de alguma espectativa alimentada por personalidades e entidades interessadas no desenvolvimento cultural da jovem cidade. Chegou-se a pensar instalar ali um Centro Cultural – expressão da época.  Recorde-se que o vetusto edifício do convento foi ocupado, desde a extinção das ordens religiosas, em 1834, e depois com a República, por múltiplas funções administrativas, algumas das quais desde finais do século XIX: Tribunal, prisão, Conservatória do Registo Civil, Tesouraria das Finanças, GNR..

Durante os primeiros anos do regime democrático, iniciado em 1974, alguns grupos e associações ali se instalaram – Cooperativa Comunicação e Cultura, Espeleo Clube, grupo de escuteiros, grupo de Cinema de Animação – que conviveram com os últimos serviços a deixar o edifício – a Junta de Freguesia de S. Pedro, alguns armazéns e serviços camarários e o aquartelamento da GNR na parte sul.

Finalmente desocupado, pôde então a Câmara Municipal realizar obras de reabilitação com a demolição de paredes e pisos que tinham sido acrescentados para os ditos serviços e assim redescobrir os interiores originais, recuperando alguns elementos arquitectónicos tapados (colunas) e devolvendo a dignidade e amplitude de algumas salas – designadamente as grandes salas do celeiro e da copa, para aí instalar o “novo” Museu Municipal.  Foi ainda desta época o derrube do muro que separava as propriedades da Paróquia e do Município, devolvendo ao claustro a sua inteireza espacial.  Mas este esforço financeiro só foi possível porque a Camara aproveitou um financiamento disponível da Administração Central para instalar o GAT – Gabinete de Apoio Técnico aos municípios no piso superior do Convento da Graça.                                             

Pôde então o Museu ser re-inaugurado em 1992, ganhando-se com isso uma maior clareza e dignidade na exposição do notável espólio museográfico torriense, com destaque para os grandes núcleos – Pré-História, Linhas de Torres e Pintura Quinhentista, a par de outras peças eloquentes do património e da história local, como o Foral Manuelino. A concepção espacial e a montagem, desafio tão difícil como estimulante, ficou a dever-se à dedicação da Dra. Isabel Luna e de Leonel Trindade Jr. A relocalização do Museu Municipal – que em 1997 passou a designar-se Museu Municipal Leonel Trindade, em homenagem ao dedicado arqueólogo torriense – constituiu um marco importante para a cultura local, numa solução plena de significado, que sintetizou num mesmo projecto dois objectivos cruciais para uma maior afirmação da identidade torriense: a reabilitação da histórica construção e a visibilidade de um espólio que constitui inalienável testemunho desta comunidade. 

 

O Mosteiro de São Vicente de Fora e sua ligação a Torres Vedras - Jornal BADALADAS, 26 de Janeiro 2024



O Mosteiro de São Vicente de Fora e sua ligação a Torres Vedras

 Joana Santos Coelho

 

Com um volume colossal e simultaneamente elegante, ergue-se numa das colinas da capital e dele encontramos frequentemente imagens panorâmicas nos telejornais e telenovelas. Trata-se do primeiro mosteiro onde viveu Santo António: o Mosteiro de São Vicente de Fora. A sua história é quase tão antiga como a da nação portuguesa (1). Foi mandado erguer por D. Afonso Henriques em 1147, após a conquista de Lisboa aos mouros, num local muito especial para o rei: precisamente onde estava assente um dos acampamentos dos Cruzados que o auxiliaram nesta batalha, e cujas sepulturas, antropomórficas, ainda podem ser observadas no Mosteiro. Isto significa que o edifício foi construído do lado de fora da cidade e é daí que deriva o seu nome. Passou a estar oficialmente dentro da cidade quando no século XIV foi erguida a muralha fernandina, mas o nome do monumento manteve-se. O Mosteiro foi dedicado ao santo que viria a ser padroeiro de Lisboa, o mártir São Vicente, que é celebrado a 22 de Janeiro. Foi exatamente há 850 que os restos mortais do santo foram levados do Cabo de Sagres para a cidade das sete colinas, mais concretamente para a Sé, onde se encontram atualmente. São Vicente de Fora foi entregue à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. À semelhança do que tinham feito a partir do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, também em Lisboa os agostinianos contribuíram para a pacificação e ordenação do território. Os priores do Mosteiro, desde a sua fundação, adotaram uma política de aquisição intensa, o que levou à criação de um extenso e valioso património. Paralelamente recebia ricas doações, inclusive da Coroa. Desta forma, foi constituindo um conjunto de propriedades, sobretudo no termo de Lisboa, mas também nos termos vizinhos, como é o caso de Torres Vedras, onde o Mosteiro veio a exercer a sua influência e procurou rentabilidade.

Os cónegos interessavam-se por territórios férteis, próximos de linhas de água e de vias de comunicação, de fácil acesso a Lisboa, que era o mercado preferencial para os produtos excedentários. Estes territórios eram constituídos sobretudo por vinhas e herdades, que garantiam a abundância de vinho e de pão. No caso específico do trigo, intensamente cultivado na Estremadura, para além de ser um recurso fundamental na alimentação portuguesa, serviu também como moeda de troca como no exemplo que se segue: “Temos uma referência indireta à sua produção [de trigo] através de uma carta de doação de uma herdade no lugar da várzea, termo de Torres Vedras, com a condição de ser dado ao seu doador, em vida, 5 alqueires de trigo” (2). É possivelmente sob a influência dos agostinianos e também dos moçárabes que D. Afonso Henriques manda erguer, num morro junto a Torres Vedras, uma capela que teve este santo como orago: a Ermida de São Vicente, que acolhe atualmente o Centro Interpretativo das Linhas de Torres e que pertence ao Forte de São Vicente. A imagem do santo, venerada neste espaço, foi transferida para a Capela da Nossa Senhora do Ameal, para o altar-mor (3). De madeira repintada incontáveis vezes, encontra-se resguardada no Museu da Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, tendo sido colocada uma réplica no altar-mor na referida anterior capela.

Desde o período medieval o Mosteiro foi um importante centro espiritual e cultural. Sabe-se que no século XIII na sua biblioteca havia 60 obras em 116 volumes, predominantemente sobre tema religiosos, mas também de Astronomia, Filosofia, Aritmética, História, entre outros. A produção de livros no scriptorium, e posteriormente (séc. XVI) na tipografia própria, engrandeceu a biblioteca do mosteiro que, em 1824, contava com mais de 6 mil volumes. A fama de notável centro de estudos contribuiu para que Fernando Martins de Bulhões, ou seja, Santo António, escolhesse este mosteiro para ingressar como noviço. Entrou nesta casa religiosa quando tinha cerca de 15 anos e aqui viveu 2 anos em recolhimento, meditação e estudo. Reza a lenda que neste período foi tentado pelo diabo 5 vezes e, para lhe resistir, o santo desenhou com o próprio dedo, e muita fé, cruzes nas paredes do mosteiro. Estas resistiram até aos dias de hoje e encontram-se na igreja, na capela de Santo António, que está situada no local onde se pensa ter sido a cela dele quando ali viveu. Diz-se que o jovem era constantemente visitado por familiares e amigos, e portanto decidiu mudar-se para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Independente dos seus motivos, o que é certo é que a sua passagem por estes mosteiros agostinianos foi crucial para a sua formação. Destacou-se pelo dom da palavra, o que contribuiu fortemente para que lhe fosse conferido o título de Doutor da Igreja.

 

RECONSTRUÇÃO NO SÉCULO XVI

Do mosteiro medieval de São Vicente de Fora, onde viveu o santo, pouco resta. A parte que ficou melhor conservada foi a cisterna que, curiosamente, ainda está em funcionamento, captando as águas pluviais do edifício. A grande transformação do monumento deu-se a partir de 1582. Neste ano é lançada a primeira pedra da reconstrução do Mosteiro. Filipe I, um amante da arquitetura e um católico fervoroso, estava no trono de Portugal há cerca de 2 anos. Queria deixar uma grande marca na cidade natal da sua querida mãe (D. Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I) e daí resultou esta empreitada. Para além disso, a escolha recaiu sobre este edifício precisamente por estar diretamente associado a D. Afonso Henriques. Desta forma, é como se estivesse a repetir a ação do primeiro rei de Portugal, do qual ele sentia necessidade de afirmar que era descendente. Filipe I delegou este grande projeto aos arquitetos reais de Espanha e Portugal, Juan Herrera e Filipe Terzi, respetivamente.

 Após o falecimento de ambos, os mestres de obras desta empreitada foram também dos mais afamados no reino, como Baltazar Álvares, os Nunes Tinoco e Frederico Ludovice. Herrera e Terzi fizeram deste Mosteiro uma das construções pioneiras do Maneirismo em Portugal. Uma das novidades, deveras irreverente, foi a elevação de uma segunda torre. Até então apenas as catedrais, ou seja, as igrejas dos bispos, é que podiam ter 2 torres. A partir de então passou a ser prática comum na arquitetura eclesiástica em Portugal. Foram necessários mais de 200 anos para se concluir a sua construção, em ritmos irregulares de trabalho. Mas porque será que os Bragança quiseram dar continuidade à construção filipina? Precisamente para lhe tirar esse rótulo. Inteligentemente, D. João IV (o 1º rei da Dinastia Brigantina) escolheu o Mosteiro para acolher o panteão da sua família. Entre reis, rainhas, príncipes e princesas, é aqui que se encontram sepultadas mais de 50 pessoas desta dinastia. Na continuidade da missão de desassociar os Filipes a São Vicente de Fora, D. Pedro II e D. João V desenvolvem ricas campanhas de decoração neste espaço, como por exemplo com mármores embutidos, talha dourada e azulejos barrocos, numa quantidade nunca antes vista. São mais de 100 azulejos in situ, feitos nos séculos XVII e XVIII. Outro facto curioso sobre o Mosteiro é que entre, 1772 e 1792, acolheu a Patriarcal (igreja do Sr. Patriarca de Lisboa) e foi por esse motivo que foi dada a permissão para a construção de um baldaquino no altar mor, onde ainda hoje pode ser contemplado. Nesse período os cónegos foram transferidos para o Convento de Mafra, e é também deste período a encomenda da famosa coleção de painéis de azulejo com a Fábulas de La Fontaine, que faz as delícias de miúdos e graúdos.

O Mosteiro foi reabilitado para acolher a Cúria Patriarcal, onde se encontra instalada desde 1998, e também para se proceder à musealização do espaço. É no seu terraço que existe uma das melhores vistas sobre Lisboa. O Mosteiro está de portas abertas de 2ª a Domingo, entre as 10h e as 18h, e merece a visita de todos.

Referências bibliográficas

1- SALDANHA, Sandra Costa (coor.) (2010) O Mosteiro de São Vicente de Fora - Arte e História. Lisboa: Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa. 2- SILVA, Carlos Guardado da (2017) Património Rural do Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa): séculos XII-XIII. Maranhão: Universidade Estadual do Maranhão. 3- VIEIRA, Júlio (2011) Torres Vedras Antiga e Moderna. 2ª edição. Torres Vedras: Livro do Dia.



 

O PRESÉPIO - 800 ANOS DE ENCANTAMENTO / Jornal BADALADAS - 29 DEZEMBRO 2023

 

O PRESÉPIO

800 ANOS DE ENCANTAMENTO

 

José Pedro Sobreiro

 

Neste Natal passaram 800 anos sobre um acontecimento memorável, determinante para difusão do culto do nascimento de Cristo.

 Na noite de 24 de dezembro de 1223 S. Francisco de Assis, “o pobrezinho de Deus” como era chamado, convocou as gentes da aldeia de Greccio, na região da Úmbria, Itália, para uma maravilhosa performance - a celebração de um acto litúrgico com a representação ao vivo do nascimento de Jesus numa gruta das imediações. Aí, na noite fria daquela região montanhosa, o poverello falou ao povo com tal emoção, que, num arrobo místico, sentiu que segurando nos braços a imagem do menino-Deus este lhe sorria.                                                                                                                       

Estava criado um culto que os seus fratelli continuariam nos anos seguintes, na quietude de igrejas e mosteiros, dando origem a uma das mais enternecedoras tradições do cristianismo – o Presépio de Belém.

 

Embora já existissem anteriores representações do tema, em pinturas e baixos relevos dos primórdios da cristandade,  foi a singularidade daquele momento, a intensidade da emoção vivida por quem a ele assistiu, que fixou para sempre a evocação daquela história no coração dos fiéis.                                   Assim, assistimos nos séculos seguintes ao aparecimento de conjuntos escultóricos, com figuras de grandes dimensões em pedra, terracota ou madeira, assim como em retábulos de altar em pintura ou em baixo relevo, nas grandes catedrais, abadias e mosteiros da europa central.                             

 Logo em meados deste século XIII, Nicola Pisano esculpiu em mármore uma das mais belas cenas da natividade, no púlpito do Baptistério de Pisa. Mas crê-se que a primeira representação em vulto perfeito se deve Arnolfo di Cambio, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma.

Com o tempo, a construção de presépios vai-se difundindo por palácios e casas nobres procurando adaptar-se aos espaços da intimidade familiar, assumindo a forma de maquinetas, caixas-oratórios, ou peças de ourivesaria para no século XVIII atingir o esplendor das grandes composições barrocas.                                                                                                                                       

 Com efeito, é na centúria de setecentos que o presépio atinge a sua feição mais espectacular, com os grandes e feéricos conjuntos de multidões de figuras campestres, grupos profissionais e imponentes séquitos reais deambulando por cenários de uma natureza exuberante, com afloramentos rochosos, cascatas e densa vegetação, pontuada por apontamentos de ruínas romanas, numa coreografia plena de movimento. São autênticas romarias, tão distantes já da quietude misteriosa da noite primordial, que relevam mais da exibição do notável talento dos escultores barristas da época, mas que, afinal, são outra forma de expressar o sentimento de profunda alegria e exaltação pelo transcendente acontecimento.

Os presépios barrocos portugueses, na esteira do estilo Napolitano, são um eloquente exemplo desta atitude, destacando-se entre nós os conhecidos os casos de excelentes barristas como António Ferreira e Machado de Castro e os magníficos conjuntos da igreja da Estrela, da Madre de Deus e da Sé de Lisboa, entre outros.

É também nesta época que se desenvolvem os presépios mecânicos que imprimem algum movimento a figuras e elementos cenográficos, contribuindo para um maior deslumbramento das produções artísticas.                                                                                                                  

No século dezanove alarga-se a expansão da montagem do presépio nos lares cristãos e, sob a inspiração do romantismo, desenvolve-se o gosto de apresentar novidades cenográficas de tipo orientalizante e a exploração de novos materiais, procurando por vezes soluções mais económicas, como os presépios de papel, com figuras recortadas.                                       

Daqui se chega naturalmente ao aparecimento dos presépios populares, de inspiração ruralista, na esteira do presépio barroco, mas agora com uma feição naïf, produto das habilidades artesanais, que são pretexto para representar os hábitos, costumes, actividades laborais e o ambiente do mundo rural, por vezes com uma ingenuidade desarmante. No fundo, são a expressão de um desejo de participar no mistério da noite santa, através do anacronismo da representação trazendo para a actualidade e para o local a evocação do acontecimento festivo, que assim se torna intemporal e universal.

Mas o evento de Greccio, para além da divulgação da representação tridimensional – também se repercutiu na história da pintura ocidental, estabelecendo definitivamente o tema em conjuntos de frescos e em retábulos de altar, a partir de finais do séc. XIII, desde logo com Giotto e outros pintores do final da arte gótica, para se afirmar na plena renascença.   Abordada em dois subtemas – Adoração dos Pastores e Adoração dos Magos - a construção da cena vai conhecendo várias formas. Da singela cabana de barrotes e cobertura de colmo até à tosca gruta ou à ruína da antiguidade (alusão cheia de simbolismo) a disposição das figuras sacras evolui de uma visão mais naturalista – inicialmente a Virgem Maria encontra-se ainda deitada – até à encenação mais canónica, com Maria e José ajoelhados em adoração ao Menino deitado na manjedoura, passando pela Virgem com o Menino ao colo, com José em plano mais recuado. No enquadramento, não falta a presença dos ternos animais- o boi e o jumento – conforme a tradição de antigos escritos, os pastores com as suas humildes ofertas, assim como grupos de anjos esvoaçantes que anunciam a boa nova.                                                                                                                                


No caso da Adoração dos Magos (mais tarde designados por Reis Magos) a centralidade da sagrada família mantém-se e a cena presta-se à exibição de grandes e exuberantes séquitos de figuras nobres e de pajens, cavalos e camelos, numa clara apropriação pelos poderosos encomendadores que por vezes se fazem retratar, como no caso das grandes composições de Fabriano e Botticelli.

Também em Torres Vedras possuímos dois conjuntos desta época renascentista– ambos em pintura a óleo sobre madeira e confiados á guarda do Museu Municipal Leonel Trindade :         

O Retábulo de Santa Maria do Castelo, conjunto de 5 painéis atribuídos durante algum tempo a Gregório Lopes e hoje a um dos seus discípulos, pintura da terceira década de quinhentos que está ao nível do melhor da melhor produção manuelina ;                                                               

e o  Retábulo do Convento da Graça, conjunto de 6 painéis, oriundo do primitivo mosteiro, onde viveu S. Gonçalo, de autor desconhecido de origem flamenga, onde perpassa ainda um sabor tardo gótico, quer na modelação das figuras quer na espacialidade do cenário.                                                                                                                                             

Embora não se conheça o autor, foi atribuída, pelo Dr. Fernando António B. Pereira, a fonte de inspiração desta composição numa gravura do pintor alemão Martin Schongauer (1450-1491), pois esta prática de circulação de gravuras já existia nessa época.

E é com um destes quadros do segundo conjunto – Adoração dos Pastores - que constitui a mais antiga representação da natividade, entre nós, que evocamos a efeméride dos oitocentos anos do presépio.                                                                                                                                               

Pena é que não esteja visível ao público, devido a ter sido retirada temporariamente por falta de condições do nosso Museu.       


Página no jornal BADALADAS


                                         

28 novembro 2023

SOBRE SÃO GONÇALO | Jornal BADALADAS 24 NOVEMBRO 2023

 

SOBRE SÃO GONÇALO

SOBRE NÓS COM ELE

       Manuel Clemente, Patriarca Emérito de Lisboa          

 

Estas linhas resumem o que disse na apresentação do belo livro de José Pedro Sobreiro (ilustração) e Luís Filipe Rodrigues (texto), São Gonçalo de Lagos a Torres Vedras, no passado dia 21 de outubro.

Em tempo de comemorações gonçalinas, foi um excelente contributo para a divulgação duma figura que bem merece ser recordada, do passado para o futuro.

Da época em que viveu entre nós, até 1422 ou mesmo 1445, o que nos resta em Torres Vedras? Antes de mais nós mesmos, os que ainda descendemos de quem cá vivia então, ou dos muitos que chegaram depois. Ouvimos histórias familiares ou mais largas, ganhámos hábitos locais, reconhecemo-nos em monumentos e sítios.

Dessa altura, “falam-nos” as igrejas – ainda que todas restauradas depois - as muralhas do castelo, o Chafariz dos Canos, alguma nomenclatura… Referências paroquiais, militares e civis do que era a vida de então.

Será bom conhecer a terra a partir daqui, do que resta do que foi. Ir a cada uma das igrejas e perceber que era nelas e ao seu redor que a vida social começava e terminava, do batistério à sepultura. Não esquecer a ida à igreja de Nossa Senhora do Amial, ao Choupal, onde provavelmente se reuniam os cristãos no período árabe e em que no tempo de São Gonçalo persistia o culto.

Na antiga Rua dos Mercadores, passar onde era o seu desaparecido convento. Subir depois ao castelo e alargar a vista, como ele o fez certamente. Descer ao Chafariz dos Canos e admirar, como ele também admiraria, uma obra civil que juntava beleza e utilidade.

Depois, com tempo e atenção, visitar a antiga portaria do convento novo, na igreja da Graça, onde magníficos painéis de azulejos nos “falam” da vida e dos milagres de São Gonçalo. Admire-se o excelente desenho, mas leiam-se com atenção as legendas, para compreender bem a figuração. Obra de setecentos, apresenta o que a tradição gonçalina foi somando, do século XV em diante, de episódios e milagres, como é próprio das memórias vivas.

Tradição que nos apresenta São Gonçalo como homem de Culto, Caridade e Cultura. De Culto, “em espírito e verdade”, como o jovem Gonçalo o encontrou e celebrou entre os Eremitas de Santo Agostinho – em Lisboa, São Lourenço dos Francos, Santarém e Torres Vedras. De Caridade, partilhando o muito que sabia com os trabalhadores que voltavam do campo e com as crianças que brincavam nas praças; e o pouco de que dispunha, com quem o procurasse ou ele mesmo buscasse. E de Cultura, pois cultivava a palavra e copiava livros de coro, para que o louvor divino se entoasse com verdade e beleza. Uma pintura quinhentista ou de pouco depois retrata-nos S. Gonçalo orlado com notas musicais, aludindo a este seu ofício.





Assim ficou Gonçalo na memória do povo. Sepultado no chão do convento, logo começou a romagem dos que pediam a sua ajuda celestial. Tocavam a terra onde jazera, mesmo quando os seus confrades lhe puseram os ossos num cofre mais resguardado. A terra foi depois conservada num sepulcro de pedra.

Sumariemos as trasladações: A primeira essa mesma, em 1492, no convento velho, quando as ossadas foram guardadas num cofre; em 1518 fez-se o referido sepulcro de pedra, com a sua imagem, guardando terra do primeiro sepultamento, que se podia tocar por uma abertura.

É neste sepulcro que encontraremos a mais sólida comprovação da memória certa que logo deixou. Se faleceu em meados do século XV, não passou muito tempo para lhe reconhecerem a santidade, assim gravada em pedra: «Esta sepultura é do bem-aventurado frei gº de lagos feita no mês de Janº de 1518». Entretanto, já em 1495 a Câmara de Torres Vedras o tomara por como padroeiro da vila e termo.

Em 1559 começou a demolição do convento velho, repetidamente alagado pelas cheias. O cofre com os ossos veio para a gafaria de Santo André, para onde os frades se transferiram e onde começou a construção do convento novo. Depois veio também o sepulcro de pedra.

Em 1580 já se puderam colocar o cofre das ossadas e o sepulcro de pedra na nova igreja da Graça, num nicho mandado fazer pela Câmara, ao lado do altar do Crucifixo. Uma inscrição em tábua referia «o corpo do Beato Gonçalo de Lagos por muitos conhecido de grandes milagres».

Em 1640 o cofre e ao sepulcro foram transferidos para outro nicho, na capela-mor, com a legenda em azulejos que continuamos a ver: S. DO SANTO PADRE FREI GONÇALO DE LAGOS PRIOR QUE FOI DESTE CONVENTO Q[UE] EM VIDA FLORECEO EM VIRTUDES E NA MORTE RESPLANDECE EM MILAGRES.

Finalmente, em 1784, as ossadas, colocadas em novo cofre, são mudadas para o altar de São Gonçalo, ficando o sepulcro de pedra no local anterior.

É neste que podemos encontrar a mais certa imagem do que ele foi e da memória da sua figura, mesmo que toscamente esculpida. Dali sobressai um frade agostinho, com o seu próprio hábito e correia à cintura, com um capuz que já é uma auréola, com tonsura e barba, olhos expressivos e boca a falar, mãos que lhe acompanham pregação e um livro ao de cima, de Evangelho anunciado. 

Guardemos-lhe esta imagem, tão verosímil que é. Não temos outra de alguém desse tempo, convivente aqui. Traz-nos o melhor de então, para o sermos hoje.

 






FANZINE TORRIENSE IMPULSO | Jornal BADALADAS - 27 OUTUBRO 2023

 

Os 50 anos do Fanzine Torriense IMPULSO

Venerando Aspra de Matos

     

O conceito “patrimónios” inclui actualmente um conjunto diversificado de manifestações culturais que, com o passar do Tempo, se incrustaram na memória colectiva das comunidades humanas. É o caso da publicação Impulso, um exemplo de acção cultural pioneira, que deixou marcas indeléveis na vida cultural torriense | JMD

 

A designação de “Fanzine” é uma referência a publicações amadoras, impressas de forma rudimentar, que se expandiram muito nas décadas de 60 e 70 do século XX graças ao aparecimento de novas técnicas da impressão, como o stencil electrónico, permitindo edições baratas e rápidas. O termo fanzine é uma combinação de “fã” (ou “fanático”) com “magazine” (publicação em “revista”).

Os “fanzines” dedicam-se à divulgação de textos e obras de “Fãs” da cultura alternativa, a banda desenhada, a ficção científica, o policial ou a música popular, e muitas vezes o interdito, como o erotismo.

Na Europa o movimento dos “fanzines” está muito ligado à afirmação da Banda Desenhada como arte, combatendo preconceitos sobre a 9ª arte e permitindo divulgar novos autores à margem do circuito comercial, dominado pelas grandes editoras e revistas tradicionais. Foi o que aconteceu com a aparecimento de Giff-Wiff em França, em 1962, ligado ao “Le Club de Bande Dessinée”, criado nesse ano, para defender as qualidades artísticas dessa arte, tendo publicado vários números até 1967. Giff-Wiff é considerado o primeiro “fanzine” de BD, pelo menos no espaço “franco-belga”.

Deve-se à  revista Tintin, cuja edição portuguesa se iniciou em 1968, a divulgação, em Portugal, do movimento de fanzines de Banda Desenhada. Vasco Granja foi um dos responsáveis pela divulgação dessas edições de tipo “underground”, quer na secção de notícias daquela revista, quer na sua colaboração com colunas de informação sobre BD, que começavam a surgir regularmente em páginas da imprensa nacional, com destaque para o jornal A Capital e o seu suplemento Quadradinhos.

Foi assim que muitos entusiastas pela Banda Desenhada, muitos deles jovens à procura de um espaço para divulgarem os seus trabalhos e outros interessados em escrever textos de divulgação sobre o seu passatempo preferido, a leitura de Banda Desenhada, se decidiram a começar a editar os primeiros fanzines portugueses. Um conjunto de factores que se cruzaram nesse período facilitaram o nascimento dos primeiros fanzines em Portugal, o que aconteceu em 1972. Para além do já referido efeito da edição portuguesa da revista TinTin, esse foi o período da chamada “Primavera marcelista”, que levou a algum abrandamento da censura, o da massificação das escolas secundárias, os antigos Liceus, que tiveram de aumentar os seus recursos tipográficos, para a feitura dos testes e de materiais de apoio, incluindo as “modernas” máquinas de impressão a stencil, principalmente o chamado stencil electrónico, que tornavam muito mais fácil produzir matrizes com ilustrações.

Embora alguns apontem como  primeiro “fanzine” português a edição de  O Melro em 1944, da autoria de José Garcês, um único exemplar que o autor alugava a quem o quisesse ler, o primeiro fanzine português, integrado nos novos tempos dos anos 70,  foi o Argon, editado em Janeiro de 1972 por alunos do liceu Gil Vicente, em Lisboa, com a publicação de BD original.

 

Em Torres Vedras




Um dos fanzines editado em Portugal por essa altura e o primeiro de 1973, publicado no dia 6 de Janeiro, foi o Impulso, “fabricado” no Liceu de Torres Vedras, com originais da autoria de jovens autores, textos informativos e teóricos. A qualidade da impressão a stencil não era muito famosa. O grupo que esteve na origem da edição do Impulso tinha em comum, para além da amizade pessoal, escolar e de vizinhança, de longa data entre alguns deles, o gosto pela leitura de Banda Desenhada e o desejo de editar aquilo que, de forma por vezes muito naif, cada um ia fazendo.

A edição do Impulso contou com o apoio do então reitor do liceu, o Dr. Semedo Touco, homem liberal e compreensivo, e que nos garantiu, não só o suporte técnico, mas também o suporte financeiro para a edição desse fanzine, sem nunca ter intervindo nos conteúdos deste.

O fanzine tinha uma tiragem média de 150 exemplares e um custo de cerca de mil escudos (cinco euros) por edição, dois terços dos quais eram suportados pela escola e o restante pelas vendas. Inicialmente o Impulso vendia-se ao preço unitário de dois escudos e meio (pouco mais de …um cêntimo), mas o seu preço foi subindo ao longo do ano.

Fizeram parte da equipa do Impulso o Vaam (Venerando), o seu irmão Mário Luís, o Carlos Ferreira, o João Nogueira (Janeca), o Mário Rui Hipólito, o Manuel Vilhena, o Calisto, o José Eduardo Miranda Santos (Zico), este exterior à escola mas amigo dos restantes, e que possuia uma das mais variadas e extensas colecções de álbuns  e revistas de BD que todos liam avidamente. Ao grupo de vizinhos e amigos de longa data, juntaram-se dois prometedores autores de BD, o Joaquim Esteves e o Antero Valério, sem dúvida os que, de todos nós, possuíam melhores qualidade artísticas. Mais tarde juntaram-se à equipa o Jorge Barata e o António Trindade. O Carlos Caetano, o Primor e o Carillho também andaram com o grupo, mas não integraram o grupo de colaboradores na edição do Impulso.Em Janeiro de 1973, o mais velho do grupo tinha 16 anos e os mais novos tinham cerca de 11 anos. Foram editados cinco números ao longo de 1973, feitos com a revolucionária tecnologia de então, o stencil electrónico, existente no liceu para a feitura dos testes escolares, contando então com a preciosa colaboração do Emílio Gomes que dominava essa tecnologia e ensinou a todos o seu uso.

Foi nas suas páginas que surgiu a primeira entrevista conhecida com Vasco Granja, feita pelo “Zico”, e que gerou alguma polémica com o fanzine Aleph. Como todos se envolveram na vida associativa e política em 1974 e 1975, só voltaram, e pela última vez, a editar o Impulso em Abril de 1976, agora financiado pelo Cine-clube de Torres Vedras.

Para esta edição juntou-se o núcleo duro da 1ª série, número que reflecte muito do ambiente politico ainda vivido e imbuído dos mitos revolucionários dos dois anos anteriores, propondo-nos “desmascarar a rede comercial montada pelos agentes editoriais com um fim unicamente lucrativo” e “desmistificar a BD alienante e reaccionária que se publica na quase totalidade dos jornais e revistas” (do editorial).

Ainda houve fôlego para realizar uma exposição de Banda Desenhada no “Grémio”, entre 17 de Outubro e 20 de Novembro de 1976, integrada nas comemorações do 20º aniversário do Cineclube de Torres Vedras, exposição que foi depois emprestada para ser mostrada em Coimbra e Espinho. Para integrar essa exposição publicou-se um último número do Impulso, em formato reduzido, um “fora-de-série”, que funcionou como uma espécie de catálogo da exposição.

Mais tarde alguns dos fundadores do Impulso, com outros amigos, editaram um novo fanzine, o BêDêZine, editado pela Cooperativa de Comunicação e Cultura em Novembro de 1985, na sequência da realização do primeiro, e também único, Salão de Banda Desenhada de Torres Vedras. A capa desse número zero foi da autoria do consagrado autor nacional Arlindo Fagundes e contou ainda com a colaboração de um histórico da BD nacional, o José Ruy, este com um texto sobre a condição de autor de BD em Portugal e um desenho original do capitão Batávias, personagem da sua obra Porto Bomvento.

Alguns dos autores do Impulso e do BêDêzine voltaram-se a encontrar na revista humorística O Barrete, publicada por ocasião do Carnaval de Torres de 1996 e que durou até 2017, editada pela Associação de Defesa do Património e pelo Espeleo Clube de Torres Vedras e financiada pela RadioOeste.

Exposição comemorativa

Para comemorar o cinquentenário desse projecto pioneiro, foi inaugurada, no passado dia 14 de Outubro, na Biblioteca Municipal de Torres Vedras, uma EXPOSIÇÃO COMEMORATIVA DOS 50 ANOS DA FANZINE IMPULSO, que pode ser visitada até 30 de Novembro, e onde se documenta a história que aqui contámos. Na mesma ocasião foi editado um número especial comemorativo do fanzine Impulso, com o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras.

Espera-se, com esta iniciativa, que vai tentar correr as escolas do concelho, fazer renascer, em termos locais, o espirito do movimento dos fanzines, contribuindo, quem sabe, para a revelação de novos talentos na Banda Desenhada.

 

    


PRAÇA MACHADO DOS SANTOS | Jornal BADALADAS 29 SETEMBRO 2023

 

Praça Machado Santos

COMPREENDER, REABILITAR E FRUIR

 

José Pedro Sobreiro

Pedro Fiéis

 

Aspecto da Praça, anos 80

Vulgarmente conhecemo-la como a Praça da Batata, nome que lhe ficou dos anos 50, quando se enchia de gente dos campos que vinha à vila vender esse produto tão essencial na dieta popular. Era feira mensal e decorria às segundas-feiras.                                                              

Atualmente passamos sem nos determos grandemente, sequer refletindo nas potencialidades daquele que é um dos espaços mais interessantes da urbe por ser, no Centro Histórico (CH), um lugar ameno a pedir aposta na convivência.                                                                                                                                            

Sabia-se que aquele espaço tivera uma ocupação diferente em tempos idos, tendo em conta a observação da Planta do Campo Militar de Torres Vedras, um dos mais antigos mapas conhecidos da vila, desenhado por alturas das guerras liberais em 1846. Esse documento mostra-nos alguns arruamentos que convergem para esse local, com uma orientação diferente da atual - designadamente a partir da Rua das Olarias (atual Paiva de Andrade). Assim, parece que a Travessa do Furtado teria continuidade para a praça e desta partiria um arruamento para o largo do Terreirinho, por detrás da igreja. Independentemente do rigor de tal registo, torna-se claro que foi zona muito alterada. Isso terá acontecido em finais do séc. XIX, ou talvez no início do séc. XX.

UM SÍTIO COM VIDA

Naturalmente com o tempo, o uso da praça foi acompanhando as mudanças sociais. Ali se chegou a ver cinema, projetado nas paredes da igreja. Nas décadas de 50 e 60 o local tinha uma vitalidade social intensa, não apenas pelo burburinho nos dias de mercado, mas igualmente no dia a dia, pelos que o habitavam e os muitos que ali trabalhavam – na Moagem Clemente, na Serração do Pio, e, sobretudo, na Fábrica A da Casa Hipólito, com a movimentação de centenas de operários, às horas de entrada e saída.          

E não esquecendo o pequeno comércio, como a loja do Ti Gregório, que vendia de tudo ou as inúmeras tabernas que pontuavam a rua que vinha da Porta da Várzea até ao Terreirinho. O que nos leva a 1954, ano em que o centro do terreiro foi ocupado por um Posto de Transformação de alta tensão para abastecimento da contundente (e intrusiva) unidade fabril da Hipólito, deixando o espaço em redor para o estacionamento dos automóveis, que a pouco e pouco iam ocupando o espaço público.  

O POÇO

Quando em setembro de 1996, ano em que a EDP resolve demolir o posto de transformação (PT) que servira a já extinta fábrica, um facto surpreendente veio revelar-se aos olhos de todos – mesmo no centro da praça, sob o chão do PT encontrava-se um poço!

 Esta Associação, alertada para o facto e atendendo às circunstâncias, iniciou escavações de emergência no local, que vieram a revelar a existência de um poço de razoáveis dimensões (indiciando o seu caráter público) de planta circular e de cúpula. E em torno dele uma série de estruturas de construções antigas, sobretudo para o lado sul, comprovando-se como seria diferente a ocupação daquele espaço, denominado, em séculos anteriores, como Largo de São Thiago. Alguns cidadãos mais idosos revelaram, de resto, a memória desse poço de abastecimento público, com bomba hidráulica, e o mesmo vem referido num registo de 1907.

No entanto, perante a urgência da Câmara em renovar o piso, prosseguindo o revestimento em calçada portuguesa que havia iniciado em algumas ruas do CH, a escavação foi liminarmente suspensa ao fim de poucos dias, não sem grande relutância da nossa parte, sempre desejosos de aumentar o conhecimento sobre o passado da urbe. Foi, então, o poço atulhado e realizada a repavimentação projetada. Dos breves trabalhos realizados foram elaborados relatórios, quer pela ADDPCTV, quer por técnicos do museu municipal.

A intervenção então levada a cabo consistiu apenas no nivelamento e renovação do piso, com supressão da placa central alteada. Assim, nos anos seguintes, o espaço ficou reservado ao estacionamento automóvel. Permaneceram as velhas árvores, envolvidas que foram por inestéticos bancos circulares em cimento (depois pintadas de vermelho!) pistas de dança para os foliões, únicos fruidores daquele espaço. Até que, talvez por desgosto, foram definhando e depois abatidas. Com o desaparecimento do PT criava-se a oportunidade única para repensar o futuro daquele espaço.

Sempre questionamos diversos executivos sobre uma requalificação, aposta consecutivamente adiada, somente com a certeza da tal ocupação pontual, chegando-se a 2023 com uma praça feiosa, triste, desinteressante, um autêntico deserto urbano.

ENTÃO, E A ARQUEOLOGIA?

Em 2019 propôs a Câmara, finalmente, uma nova intervenção para requalificar o espaço, obra que decorre neste momento. Recordemos então que, na conclusão dos trabalhos de 1996, ficou expresso de forma liminar o propósito de, em ocasião futura, se tal fosse proporcionado, os trabalhos arqueológicos seriam concluídos com tempo e método, incluindo uma prospeção mais rigorosa do fundo do poço, sabendo como são sítios passíveis de conter objetos de valor arqueológico                                                       

Ora, a ocasião seria esta! A praça e a sua envolvente permanecem expectantes, desocupadas de funções que impeçam ou dificultem o seu encerramento ao público, abrindo uma janela de oportunidade rara. E, estando agora as obras a decorrer, eis que nas escavações feitas para remodelar infraestruturas (saneamento e energia) apareceu uma cabeceira de sepultura medieval, assim como ossadas de enterramentos junto à igreja.

Também foi posta a descoberto um troço de calçada no interior de uma das casas - pressupondo a anterior existência de via pública. Com efeito, estes achados deveriam reforçar a pertinência de se proceder a um plano de escavações mais profundo, incluindo a exploração do interior do poço, e não o simples  “acompanhamento de obra”, tal como é preconizado pela tutela da DGPC. Mas para tal seria necessário um maior empenhamento da edilidade na investigação da história urbana da vila de Torres Vedras.

UM NOVO ESPAÇO

Apesar disso há um novo projeto, valha-nos isso!  Um projeto muito suave, pouco intrusivo, que visa requalificar antigas infraestruturas e devolver o espaço à população, sem grandes intromissões. Com ele concordámos nas suas linhas gerais, cujos principais tópicos relembramos: 

A não inclusão de qualquer estrutura fixa de mobiliário urbano, que condicione a utilização diversificada do espaço, sendo imperativo retirar os bancos circulares;                                            

 A valorização da imagem degradada da banda sul, reabilitando ou reconstruindo os edifícios, dentro de uma tipologia tradicional;     

A vocação para aceitar esplanadas (em vez de as situar nos arruamentos, como hoje se pode ver nas suas imediações);                                                                                                                                     

A rearborização, fundamental para a valorização daquele espaço, tornando-o aprazível e convidativo para o lazer.                                                                                                                

Este ponto é aquele que nos parece menos conseguido, atendendo à sua importância no quadro das atuais alterações climáticas, com as altas temperaturas que tornam insuportável a estadia em locais revestidos de pedra.

Concluindo, a Praça Machado dos Santos é um dos espaços mais interessantes do CH, aberto e ao mesmo tempo recatado, um lugar ameno a pedir aposta na convivência. E essa é uma palavra crucial – a convivência. Afinal o que pretendemos que seja o nosso CH? Um espaço de continuidade intergeracional, onde a memória é preservada (nem que seja só pelo registo e pelo estudo) e não apenas uma relíquia do passado, sim um local com vida. Importava por isso conhecer bem para explorar toda a sua potencialidade.           



Evolução negativa






Projecto da Câmara Municipal de Torres Vedras para a reabilitação da Praça Machado dos Santos:

https://www.cm-tvedras.pt/artigos/detalhes/camara-municipal-aprovou-projeto-de-requalificacao-da-praca-machado-dos-santos