Os 50 anos do Fanzine Torriense IMPULSO
Venerando Aspra de Matos
O conceito “patrimónios” inclui actualmente um
conjunto diversificado de manifestações culturais que, com o passar do Tempo,
se incrustaram na memória colectiva das comunidades humanas. É o caso da
publicação Impulso, um exemplo de acção cultural pioneira, que
deixou marcas indeléveis na vida cultural torriense | JMD
A designação de “Fanzine” é uma referência
a publicações amadoras, impressas de forma rudimentar, que se expandiram muito
nas décadas de 60 e 70 do século XX graças ao aparecimento de novas técnicas da
impressão, como o stencil electrónico, permitindo edições baratas e rápidas. O
termo fanzine é uma combinação de “fã” (ou “fanático”) com “magazine”
(publicação em “revista”).
Os “fanzines” dedicam-se à divulgação de
textos e obras de “Fãs” da cultura alternativa, a banda desenhada, a ficção
científica, o policial ou a música popular, e muitas vezes o interdito, como o
erotismo.
Na Europa o movimento dos “fanzines” está
muito ligado à afirmação da Banda Desenhada como arte, combatendo preconceitos
sobre a 9ª arte e permitindo divulgar novos autores à margem do circuito
comercial, dominado pelas grandes editoras e revistas tradicionais. Foi o que
aconteceu com a aparecimento de Giff-Wiff
em França, em 1962, ligado ao “Le Club de Bande Dessinée”, criado nesse ano,
para defender as qualidades artísticas dessa arte, tendo publicado vários
números até 1967. Giff-Wiff é
considerado o primeiro “fanzine” de BD, pelo menos no espaço “franco-belga”.
Deve-se à
revista Tintin, cuja edição
portuguesa se iniciou em 1968, a divulgação, em Portugal, do movimento de
fanzines de Banda Desenhada. Vasco Granja foi um dos responsáveis pela
divulgação dessas edições de tipo “underground”, quer na secção de notícias
daquela revista, quer na sua colaboração com colunas de informação sobre BD,
que começavam a surgir regularmente em páginas da imprensa nacional, com
destaque para o jornal A Capital e o
seu suplemento Quadradinhos.
Foi assim que muitos entusiastas pela
Banda Desenhada, muitos deles jovens à procura de um espaço para divulgarem os
seus trabalhos e outros interessados em escrever textos de divulgação sobre o
seu passatempo preferido, a leitura de Banda Desenhada, se decidiram a começar
a editar os primeiros fanzines portugueses. Um conjunto de factores que se
cruzaram nesse período facilitaram o nascimento dos primeiros fanzines em
Portugal, o que aconteceu em 1972. Para além do já referido efeito da edição
portuguesa da revista TinTin, esse
foi o período da chamada “Primavera marcelista”, que levou a algum abrandamento
da censura, o da massificação das escolas secundárias, os antigos Liceus, que
tiveram de aumentar os seus recursos tipográficos, para a feitura dos testes e
de materiais de apoio, incluindo as “modernas” máquinas de impressão a stencil,
principalmente o chamado stencil electrónico, que tornavam muito mais fácil
produzir matrizes com ilustrações.
Embora alguns apontem como primeiro “fanzine” português a edição de O Melro
em 1944, da autoria de José Garcês, um único exemplar que o autor alugava a
quem o quisesse ler, o primeiro fanzine português, integrado nos novos tempos
dos anos 70, foi o Argon, editado em Janeiro de 1972 por alunos do liceu Gil Vicente,
em Lisboa, com a publicação de BD original.
Em
Torres Vedras
Um dos fanzines editado em Portugal por
essa altura e o primeiro de 1973, publicado no dia 6 de Janeiro, foi o Impulso, “fabricado” no Liceu de Torres
Vedras, com originais da autoria de jovens autores, textos informativos e
teóricos. A qualidade da impressão a stencil não era muito famosa. O grupo que
esteve na origem da edição do Impulso
tinha em comum, para além da amizade pessoal, escolar e de vizinhança, de longa
data entre alguns deles, o gosto pela leitura de Banda Desenhada e o desejo de
editar aquilo que, de forma por vezes muito naif, cada um ia fazendo.
A edição do Impulso contou com o apoio do então reitor do liceu, o Dr. Semedo
Touco, homem liberal e compreensivo, e que nos garantiu, não só o suporte
técnico, mas também o suporte financeiro para a edição desse fanzine, sem nunca
ter intervindo nos conteúdos deste.
O fanzine tinha uma tiragem média de 150
exemplares e um custo de cerca de mil escudos (cinco euros) por edição, dois
terços dos quais eram suportados pela escola e o restante pelas vendas. Inicialmente
o Impulso vendia-se ao preço unitário
de dois escudos e meio (pouco mais de …um cêntimo), mas o seu preço foi subindo
ao longo do ano.
Fizeram parte da equipa do Impulso o Vaam (Venerando), o seu irmão
Mário Luís, o Carlos Ferreira, o João Nogueira (Janeca), o Mário Rui Hipólito,
o Manuel Vilhena, o Calisto, o José Eduardo Miranda Santos (Zico), este
exterior à escola mas amigo dos restantes, e que possuia uma das mais variadas
e extensas colecções de álbuns e
revistas de BD que todos liam avidamente. Ao grupo de vizinhos e amigos de
longa data, juntaram-se dois prometedores autores de BD, o Joaquim Esteves e o
Antero Valério, sem dúvida os que, de todos nós, possuíam melhores qualidade
artísticas. Mais tarde juntaram-se à equipa o Jorge Barata e o António
Trindade. O Carlos Caetano, o Primor e o Carillho também andaram com o grupo, mas
não integraram o grupo de colaboradores na edição do Impulso.Em Janeiro de 1973, o mais velho do grupo tinha 16 anos e
os mais novos tinham cerca de 11 anos. Foram editados cinco números ao longo de
1973, feitos com a revolucionária tecnologia de então, o stencil electrónico,
existente no liceu para a feitura dos testes escolares, contando então com a
preciosa colaboração do Emílio Gomes que dominava essa tecnologia e ensinou a
todos o seu uso.
Foi nas suas páginas que surgiu a primeira
entrevista conhecida com Vasco Granja, feita pelo “Zico”, e que gerou alguma
polémica com o fanzine Aleph. Como
todos se envolveram na vida associativa e política em 1974 e 1975, só voltaram,
e pela última vez, a editar o Impulso
em Abril de 1976, agora financiado pelo Cine-clube de Torres Vedras.
Para esta edição juntou-se o núcleo duro
da 1ª série, número que reflecte muito do ambiente politico ainda vivido e
imbuído dos mitos revolucionários dos dois anos anteriores, propondo-nos “desmascarar
a rede comercial montada pelos agentes editoriais com um fim unicamente
lucrativo” e “desmistificar a BD alienante e reaccionária que se publica na
quase totalidade dos jornais e revistas” (do editorial).
Ainda houve fôlego para realizar uma
exposição de Banda Desenhada no “Grémio”, entre 17 de Outubro e 20 de Novembro
de 1976, integrada nas comemorações do 20º aniversário do Cineclube de Torres
Vedras, exposição que foi depois emprestada para ser mostrada em Coimbra e
Espinho. Para integrar essa exposição publicou-se um último número do Impulso, em formato reduzido, um
“fora-de-série”, que funcionou como uma espécie de catálogo da exposição.
Mais tarde alguns dos fundadores do Impulso, com outros amigos, editaram um
novo fanzine, o BêDêZine, editado
pela Cooperativa de Comunicação e Cultura em Novembro de 1985, na sequência da
realização do primeiro, e também único, Salão de Banda Desenhada de Torres
Vedras. A capa desse número zero foi da autoria do consagrado autor nacional
Arlindo Fagundes e contou ainda com a colaboração de um histórico da BD
nacional, o José Ruy, este com um texto sobre a condição de autor de BD em
Portugal e um desenho original do capitão Batávias, personagem da sua obra Porto Bomvento.
Alguns dos autores do Impulso e do BêDêzine
voltaram-se a encontrar na revista humorística O Barrete, publicada por ocasião do Carnaval de Torres de 1996 e
que durou até 2017, editada pela Associação de Defesa do Património e pelo
Espeleo Clube de Torres Vedras e financiada pela RadioOeste.
Exposição
comemorativa
Para comemorar o cinquentenário desse
projecto pioneiro, foi inaugurada, no passado dia 14 de Outubro, na Biblioteca
Municipal de Torres Vedras, uma EXPOSIÇÃO COMEMORATIVA DOS 50 ANOS DA FANZINE
IMPULSO, que pode ser visitada até 30 de Novembro, e onde se documenta a
história que aqui contámos. Na mesma ocasião foi editado um número especial
comemorativo do fanzine Impulso, com
o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras.
Espera-se, com esta iniciativa, que vai
tentar correr as escolas do concelho, fazer renascer, em termos locais, o
espirito do movimento dos fanzines, contribuindo, quem sabe, para a revelação
de novos talentos na Banda Desenhada.