25 junho 2025

O ABISMO DO ESQUECIMENTO | Jornal BADALADAS - 9 MAIO 2025

 

O ABISMO DO ESQUECIMENTO

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

 

[ NOTA: O culto e a evocação da Memória colectiva são instrumentos fundamentais para a construção da História. Fazem parte do Património identitário de qualquer comunidade humana. Eis como um livro de Banda Desenhada pode ser um veículo poderoso desta mensagem].

 

I

UMA PROMESSA

 

Imaginem uma filha e um pai que estiveram separados, durante setenta e dois anos, não só pela vida e pela morte mas também por alguns palmos de terra anónimos que cobriam o corpo de um deles num dos cemitérios de uma qualquer povoação espanhola.

Visionem a filha desse homem - na sequência de uma nova legislação que lhe permitia a ela, como a todos os demais que estivessem nas mesmas circunstâncias, formular, quanto a tal separação forçada,  um preciso pedido ao Estado -, fazê-lo por escrito e, depois, nele insistir, persistir, sempre e teimosamente, numa luta demorada, dolorosa, cansativa, contra burocracias reais e inventadas, más consciências várias,  desculpas esfarrapadas e hipocrisias múltiplas, murmuradas em jeito de conselho ou ameaça disfarçada, até ao deferimento final.

Muitos outros talvez tivessem desistido logo nos primeiros degraus ou já a meio da escadaria dos pequenos poderes instalados, mas ela não, cara de pau, sem vergonha, agitadora de passados já calados e quase ignorados pelas novas gerações, a querer, sem necessidade ou justificação, reacender esse pulsar histórico que cada vez menos se fazia sentir à superfície da realidade social e política do nosso vizinho de fronteira.

E o que queria, afinal, essa mulher já velha, ao fim de tão prolongada espera e demora, da administração pública de Espanha?

Que, num cumprimento de uma promessa feita à mãe dela e mulher do falecido, a deixassem recuperar o corpo do seu pai, sepultado numa concreta vala comum existente num concreto cemitério e, com essa transladação, arrancada a ferros, se assistisse, de alguma forma, ao seu regresso ao mundo normal dos vivos e dos mortos e, em certa medida, através da recuperação do seu nome, da sua história pessoal, da sua identidade, dos seus  restos mortais e do seu lugar ao lado dos seus, já idos,  a uma espécie de ressuscitação simbólica, no plano individual e comunitário, do mesmo.                

 

II

UMA BANDA DESENHADA

                  

Quem me conhece sabe que a Banda Desenhada, desde muito cedo, sempre fez parte da minha vida. Também é verdade que as chamadas histórias aos quadradinhos, quer em Portugal, como por esse mundo fora, deixaram de ser destinadas apenas aos miúdos e jovens, em mero jeito de entretenimento sem rasgo ou risco, para serem também e cada vez mais pensadas também ou apenas para os adultos, tendo ganho uma dinâmica e dimensão cada vez maiores e enverado por uma multiplicidade de caminhos formais e temáticos que justificaram plenamente a denominação de tal expressão artística como a 9.ª Arte. 

Não constitui, por isso, espanto nenhum se vos venho falar, nesta página, dessa obra-prima de 2023, que é «O ABISMO DO ESQUECIMENTO», da autoria de Paco Roca [argumento e desenhos] e de Rodrigo Terrasa [argumento] publicada em outubro do ano passado pela Editora ALA DOS LIVROS.

Interessa frisar aqui que os autores desta Banda Desenhada não ignoram nem escamoteiam os crimes cometidos, por qualquer uma das forças envolvidas na Guerra Civil Espanhola, conflito sangrento que varreu a sociedade hispânica entre 1936 e 1939, não se podendo, nessa medida, qualificá-lo como um livro parcial, tendencioso, acantonado fundo nas trincheiras impolutas da esquerda e virado todo ele apenas contra todos os demais que combateram  os republicanos.  

Trata-se de uma edição muito cuidada e num formato que não é habitual [encontramo-lo também na última aventura de BLAKE e MORTIMER, ainda que em paralelo com o álbum tradicional] e que, num registo visual que nos reconduz quer à fotografia, como ao cinema, nos narra, lentamente, por vezes gesto a gesto, em contracorrente com a história da perseverante irmã antes contada, uma outra história terrível.

III

UM COVEIRO

Falemos então de um republicano que escapa por um triz, graças à intervenção de um padre amigo, à morte certa e que, como único trabalho disponível, em jeito de castigo cruel, é encarregue de ser o coveiro de todos os demais republicanos que depois de presos, sumariamente julgados e condenados à morte pelo regime franquista vencedor, são transportados, em datas incertas e no segredo da noite, em camionetas civis, até diversos locais previamente preparados para o imediato cumprimento da dita pena, encostados aos muros ou paredes aí existentes, passados pelas balas das espingardas dos pelotões de fuzilamento e, depois de recarregados e levados para um dos muitos cemitérios municipais existentes, lançados, como lixo, em valas já abertas e anónimas para todo o sempre.

Este bom homem, coveiro à força, acaba por arriscar a vida, não só mediante o contacto fortuito que vai estabelecendo, a pouco e pouco, com os familiares próximos das mulheres e homens ali sepultados, como pela forma cada vez mais cuidada e digna como procede, também pela calada noturna e com a progressiva ajuda daqueles, ao enterro dos seres humanos fuzilados [chegando a fazê-lo, numa segunda fase, em simples e toscos caixões de madeira trazidos pelos ditos familiares], dos quais recolhe, aliás, algo pessoal e identificativo, assim como deixa escondido nas roupas dos seus cadáveres a sua identificação [com frequência, dentro de pequenos frascos], para que, num futuro incerto, se venha a conseguir voltar dar publicamente um nome aquele corpo expurgado do mesmo.

Tal coveiro que, durante meses e contra a sua vontade, tem de esconder e calar esse trágico e triste trabalho de eliminação indiscriminada dos potenciais adversários políticos do regime vigente, por parte das forças fascistas no poder, acaba por ser despedido, sem, contudo, nunca deixar de, quando contatado por alguém, dar as informações necessárias e entregar as pequenas recordações que conservou aos familiares das pessoas que sepultou, o melhor que conseguiu, mas sempre com respeito e amor, no dito cemitério.   

IV

UM AUTOR



Há que então falar aqui de PACO ROCA, que é um dos autores modernos de Banda Desenhada com uma das obras mais sólidas e interessantes que tem sido publicada nestes últimos 25 anos, pela qual recebeu, aliás, vários prémios e que tem um mais que justo reconhecimento internacional, estando quase toda ela disponível no nosso idioma, por iniciativa da Editora LEVOIR. De nome, FRANCISCO MARTÍNEZ ROCA, nasceu em Valência, no ano de 1969 e é responsável, entre muito outros, por livros como «Rugas», de 2007, [que deu também origem a um filme de animação com o mesmo nome, de 2011, que já passou nos cinemas portugueses], «A Casa», de 2005 ou «O Farol», de 2004 e «Os trilhos do acaso», de 2013, ambos também relacionados com a Guerra Civil Espanhola, sendo que, no que respeita ao último, através do relato do papel relevante que os republicanos, que lograram  fugir aos franquistas, tiveram na Segunda Guerra Mundial, no combate aos exércitos nazis e fascistas.

 

V

UMA SÓ HISTÓRIA 

Não apaguem a História. Ainda que inconveniente. Cobarde. Vergonhosa. Não amputem, desvirtuem, branqueiem a memória coletiva de um povo, quando o porvir psicológico, sociológico, afetivo, emocional desse povo foi edificado desde então até ao seu viver atual, também sobre esse lado negro, desvairado, obscuro. Que, no que concerne à particular história narrada por PACO ROCA, é o lado dos perdedores e das suas famílias e amigos e do quanto sofreram, de uma forma direta ou indireta, às mãos dos ganhadores, já após o fim da Guerra Civil Espanhola. 

Este livro pede-nos para que não se enterrem as memórias, individuais, particulares, de tantas pessoas que, depois de vencidas na guerra, foram derrotadas, de uma forma definitiva, em tempo de uma aparente paz. Não deixem ficar debaixo da terra, silenciosas, silenciadas, esquecidas, as estórias pessoais ou familiares que também a controem, a alimentam e a conservam. Não há uma genuína História quando só os vencedores a escrevem e a compõem a seu belo jeito e prazer. E, nesse movimento de embelezamento e branqueamento da mesma, descartam-se, ignoram-se e calam-se os factos relativos aos vencidos e aos que estão entre uns e outros.    

A História integral, verdadeira, é, ao fim e cabo, informada, alimentada, recriada e compreendida quer mediante a descrição e análise dos gestos heróicos, benevolentes, tolerantes e generosos praticados por todos os fazedores da pequena e grande história, mas também [e principalmente?] pelos atos violentos, injustificados, vis, indesculpáveis por eles também levados a cabo, que revoltam, necessária e inevitavelmente, a consciência de qualquer cidadão que tenha a sua escala de princípios e valores assente no humanismo, compaixão e justiça.

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O CENTRO HISTÓRICO | Jornal BADALADAS | 28 MARÇO 2025

 


A PROPÓSITO DO DIA NACIONAL DOS CENTROS HISTÓRICOS

O CENTRO HISTÓRICO

1ªparte

por J. Pedro Sobreiro e J. Moedas Duarte

Em 1988 constituiu-se uma Associação dos Municípios Portugueses com Centro Histórico (APMCH) de que Torres Vedras foi um dos 16 municípios fundadores. Este núcleo foi-se alargando até aos actuais 100 concelhos. Em 1993 esta associação decidiu criar o Dia Nacional dos Centros Históricos. Escolheu-se o dia 28 de Março como forma de homenagear o grande historiador e escritor Alexandre Herculano, nascido nesta data, mas em 1810, e que foi um dos grandes defensores do Património Histórico e Cultural nacional.

Este dia comemora-se anualmente com actividades que promovem o conhecimento dos monumentos sediados nos CH, bem como os espaços públicos ou privados neles incluídos, escolhendo-se para cada ano um município onde se realizarão as comemorações oficiais. Este ano será em S. Brás de Alportel.

Das comemorações faz parte a atribuição de prémios para entidades que se distingam na salvaguarda dos valores defendidos pela APMCH. Caso do Prémio Memória e Identidade, que visa distinguir as personalidades que mais se destacaram nas áreas da salvaguarda e da valorização do património cultural, sob o lema “Transformar sem destruir, crescer sem devorar as raízes”. Pretende enaltecer a carreira de quem se destacou ao longo da vida nas áreas da arquitetura, da engenharia, da história e das artes, pugnando sempre pela defesa e pela divulgação dos centros históricos, enquanto conjuntos representativos de valores culturais e artísticos, cuja memória importa preservar e cuja vida se impõe dinamizar. (cf. Site da APMCH)

Este ano, as personalidades escolhidas são João Barroso Soares (que foi presidente da Câmara de Lisboa de 1995 a 2002) e Vítor Manuel Veríssimo Serrão (professor jubilado de História da Arte e autor de obra notável nessa área da historiografia).

Conjunto histórico ou tradicional

Entende-se por “conjunto histórico ou tradicional” todo o grupo de construções e de espaços, incluindo sítios, ruínas arqueológicas ou paleontológicas constituindo um estabelecimento humano no meio urbano e rural, cuja coesão e valor são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitectónico, histórico, pré-histórico, estético ou sócio-cultural (…)   1)

Este conceito de centro histórico foi definido pela primeira vez na Conferência Geral da Unesco - A Salvaguarda dos conjuntos Históricos ou Tradicionais, realizada em Nairobi, em 26 de Outubro a 30 de Novembro de 1976, constituindo uma das áreas que então vieram a ampliar a ideia de Património Cultural, tal como o artesanato, a arqueologia industrial, o mobiliário urbano, as tradições orais e a paisagem.

A sua emergência decorreu da simples constatação de que a envolvente espacial dos chamados “monumentos notáveis” constitui o quadro natural ou construído que lhes está imediatamente associado através de relações estéticas e laços sociais, económicos ou culturais.

Ora, foi nestes anos setenta que se desenvolveu entre nós o incremento da defesa do património, na sequência da revolução democrática de 74, com a criação de um movimento protagonizado por dezenas de associações locais e regionais, entre as quais a nossa.

Não será, pois, de admirar que uma das emergências mais sentidas pela ADDPCTV no seu início se tenha concentrado na salvaguarda e na valorização do nosso Centro Histórico, a braços com os naturais sintomas de envelhecimento, com uma crescente voracidade construtiva e com os desafios do tráfego automóvel, características do ímpeto de modernização e do crescimento urbano, que esses tempos também anunciavam.

O PLANO DE SALVAGUARDA

Assim, perante as ameaças de descaraterização dos espaços e das construções tradicionais, iniciámos uma acção de sensibilização do poder autárquico para a necessidade de criar um instrumento de planeamento que pudesse defender o nosso casco histórico.                                                                                                                             Para além de artigos e de chamadas de atenção na imprensa local, foi importante a realização de uma exposição intitulada “CASTELO - conjunto histórico tradicional, origem de Torres Vedras”, apresentada na antiga sede da Física, em 1980, em que se fez a caracterização do património construído, confrontando os torrienses com as suas memórias, e se apelava à sua salvaguarda. Foi o início de um processo que visou a apresentação de uma proposta-base para a elaboração de um plano de salvaguarda em 1985. A partir deste documento foi criado, pela Câmara Municipal, o Gabinete Técnico Local, em 1987, que procedeu a um rigoroso levantamento dos edifícios, ruas e largos da área definida – com base no suposto perímetro da muralha medieval - e estabeleceu um regulamento de protecção para as diferentes zonas. Este Gabinete, dirigido pelo Arq.  António J. Bastos, contou com a estreita colaboração da direcção desta Associação do Património tendo o Plano de Salvaguarda do Centro Histórico sido aprovado em 1989.

De registar ainda a apresentação conjunta de outra exposição dedicada ao Castelo – montada no torreão, que, entretanto, fora requalificado - aquando da realização do primeiro festival “Castelo de Música”, que decorreu no interior do Paço dos Alcaides, em 1988.

De algumas dissidências entretanto registadas não cabe aqui fazer menção, importando, sim, referir a relevância deste primeiro instrumento de planeamento na contenção de uma escalada de descaracterização do equilíbrio urbano tradicional, valor fundamental na construção de uma identidade que a jovem cidade de Torres Vedras (1979) então se arrogava.

Alguns anos após a sua entrada em vigor, a Câmara Municipal procedeu à pedonização e ao arranjo de alguns arruamentos e mais tarde à reabilitação da praça Machado dos Santos, agora liberta do posto de transformação eléctrica que ocupava o seu centro. Mas o facto mais assinalável foi a demolição da “monstruosa” Fábrica A da Casa Hipólito, que durante anos esteve encostada à igreja de Santiago.

Outra menção interessante é a substituição da iluminação pública, por iniciativa do Vereador Dr. António Carneiro, com a colocação de lanternas de desenho tradicional. Mais tarde proceder-se-ia à iluminação monumental do castelo, pela EDP, por diligência do Engº Manuel Silvestre. Ambas as iniciativas contaram com forte colaboração desta associação.

Outras acções se seguiram ao longo destes anos, nem sempre merecedoras da nossa concordância. O Plano haveria de ser revisto em 2006, registando algumas alterações e aliviando algumas cláusulas restritivas – o termo Salvaguarda deu lugar à Reabilitação, assinalando uma outra forma de ver e de organizar.

Em próximo artigo retomaremos o assunto.

 

1)       Conferência Geral da Unesco- A Salvaguarda dos conjuntos Históricos ou Tradicionais, capítulo 1, alíneas a) e b), Nairobi, 26 de Outubro a 30 de Novembro de 1976.

 

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23 janeiro 2025

A HOMENAGEM A JÚLIO VIEIRA - A PALESTRA

 Muitas pessoas se associaram à homenagem a Júlio Vieira 
no dia 21 de Janeiro deste ano de 2025. Entre elas, 
os quatro netos, os três bisnetos e os dois trinetos.

Presente, também, uma turma da Universidade Senior de Torres Vedras.

















Transcrevemos a parte final da comunicação da autoria do prof. Joaquim Moedas Duarte:


O FINAL

No dia 21 de Janeiro de 1930, cerrou-se o pano sobre uma vida que não chegara a completar 50 anos.

A Gazeta de Torres de 26 de Janeiro de 1930 noticiou: “Júlio Vieira – Faleceu este nosso querido colaborador e bom torreense. (…) Antigo propagandista da República contribuiu para que as ideias da Democracia se espalhassem neste concelho que nesse tempo lhe era bastante contrário”.

De Júlio Vieira ficou um rasto profundo que não se apagou até hoje. Meses após o seu falecimento, pôs-se a questão de saber o que fazer com a grande biblioteca que ele possuía. A família não podia mantê-la. O Jornal de Torres Vedras, de 29 de Novembro de 1930, sugeriu a criação de uma Biblioteca pública que ainda não existia em Torres Vedras, e a compra dos livros de Júlio Vieira poderia ser o seu começo. A ideia foi bem acolhida e a verdade é que em 1934 viria a ser inaugurada a Biblioteca de Torres Vedras, com aqueles livros, adquiridos pelo Município. Júlio Vieira, lá do assento etéreo onde subira, não deixaria de se congratular.

Pela minha parte, concluo esta evocação. Foi uma breve viagem pela vida tão intensamente vivida por este homem cuja memória hoje homenageamos.

Mas Júlio Vieira merece mais.  Por isso, desde há algum tempo que venho coligindo dados para a elaboração de uma biografia, que terá o título “JÚLIO VIEIRA – O HOMEM E O SEU TEMPO, a publicar também no próximo ano.

Recordar, recontar, registar, rememorar – é a tarefa que me proponho, ao abeirar-me dos vestígios da passagem de Júlio Vieira pela comunidade em que me integrei e onde vivo há mais de meio século. Faço-o movido por profundo sentimento de gratidão para com este homem. Dele bebi o humanismo que se desprende de cada intervenção sua, o amor solidário pelos semelhantes que labutavam ao seu lado, a necessidade de reflectir sobre a vida comum e, até, quando necessário, denunciar erros e desacertos. Ele é uma inspiração e não me conformo em guardar só para mim esse sentimento pessoal.

Vieira merece um trabalho circunstanciado que nos ajude a conhecer e entender melhor o seu notabilíssimo labor de cidadania política e cultural – que o tornou numa das personalidades mais destacadas da sociedade torriense das primeiras décadas do séc. XX.

 

Torres Vedras, 21 de Janeiro de 2025

Joaquim Moedas Duarte


22 janeiro 2025

HOMENAGEM A JÚLIO VIEIRA - BADALADAS, 17 Janeiro 2025

 



 Natural de Torres Vedras, onde nasceu em 1880, onde sempre viveu e onde morreu em 21 de Janeiro de 1930, deixou um rasto de cidadania activa que chegou até aos nossos dias.

 Júlio Vieira, que tão cedo foi roubado à vida – morreu aos 49 anos, vítima de tuberculose óssea – tem permanecido vivo na memória dos familiares e dos leitores do seu livro Torres Vedras Antiga e Moderna, livro de leitura obrigatória para quem quiser conhecer o nosso passado. No entanto, a sua obra não se resume à História. Foi jornalista – redactor, editor e proprietário de jornais torrienses e nacionais –, intrépido paladino da República ainda em tempo de monarquia, dirigente associativo e cultural, fundador de instituições públicas que chegaram até hoje e defensor de soluções para o desenvolvimento local que ainda perduram. Esteve presente em todos os grandes momentos da vida torriense enquanto a saúde lho permitiu, deixando marca indelével da sua acção.

Em 21 de Janeiro de 2025 completam-se noventa e cinco anos sobre o seu falecimento e em 2026 será o centenário da publicação do seu livro sobre a História torriense. Assinalando estas datas, o Arquivo Municipal e a Associação do Património, de Torres Vedras, realizam algumas iniciativas que se desdobram em dois momentos. O primeiro será no próximo dia 21 de Janeiro, conforme o CONVITE que abaixo se publica. O segundo será a publicação, em 2026, da biografia Júlio Vieira, o Homem e o seu Tempo e a reedição da sua obra Torres Vedras Antiga e Moderna, há muito esgotada, além de outras iniciativas em estudo.



08 dezembro 2024

JORNAL BADALADAS EM PERIGO - CARTA ABERTA AO PADRE JOAQUIM MARIA DE SOUSA


CARTA ABERTA AO PADRE JOAQUIM MARIA DE SOUSA,
FUNDADOR DO BADALADAS


O jornal Badaladas faz parte do Património Cultural de Torres Vedras. Por isso, publiquei, em 6 de Dezembro, este texto:

Saudoso P. Joaquim, atrevo-me a este gesto simbólico porque me sobra desalento onde devia prevalecer combatividade. E dirijo-me à sua memória porque dela guardo grata recordação do tempo que ainda partilhei consigo, na década de 70 do passado século. Imagino-o meu interlocutor sobre o Badaladas, criação sua e da sua paróquia, porque este jornal foi a minha chave de entrada na sociedade torriense, em 1971, quando me habituei a frequentar a Gráfica Torriana, onde o jornal era composto e lá o encontrava muitas vezes, na porfia de garantir a publicação semanal. Como tudo isso já vai tão longe!
O P. Joaquim faleceu em Novembro de 1987, mas o jornal sobreviveu-lhe até hoje. Se foi seu o impulso inicial, muitos outros lhe deram continuidade, ao longo de todos estes anos. O seu jornal, nunca perdendo a matriz católica, foi alargando as fronteiras da comunicação para territórios diversificados, tornando-se espaço de diálogo de toda a comunidade torriense, a local, a regional e a que se dispersou pelo mundo. Diversidade de assuntos e de leitores, como o P. Joaquim preconizava.
Falei-lhe em desalento, explico-lhe porquê. O seu, o nosso Badaladas está em coma e os médicos que poderiam valer-lhe nada fazem para o reanimar. Já falam no enterro, sugerem vender o jornal porque, dizem eles, não é missão de uma paróquia cuidar dele. Nunca pensei ouvir isto da boca de um dos principais responsáveis. Senti que era uma afronta à sua memória, caro P. Joaquim. Eu já suspeitava do desinteresse e, até, desleixo, com que eles tratavam o jornal. Não os vi em nenhuma das palestras comemorativas dos 75 anos do Badaladas. Como nunca li qualquer texto deles a tratar do grave problema do jornal. Nem uma palavra, até agora. Desconfio, até, que nem o leem, pois caso contrário, já teriam sentido necessidade de vir a público, esclarecer os muitos que aqui têm alertado para a crise gravíssima do Badaladas. Comparo este modo de agir com a solicitude que sempre lhe vi, P. Joaquim, a sua preocupação e empenho na manutenção do jornal que tinha como principal missão fazer soar os sinos das suas páginas aos ouvidos de quem as lesse.




AMOR À COMUNIDADE
Recordo-me de uma conversa que tive consigo, P. Joaquim, a propósito de uma polémica na qual eu me envolvera nas páginas do jornal, já depois do 25 de Abril: “Escreva! Escreva! O jornal é um espaço de opinião livre, para todos!”
Foi esta orientação sua, entusiasta e pluralista, que fez deste jornal um aglutinador identitário, ajudando a cimentar a consciência cívica da comunidade torriense e, para os novos habitantes, um poderoso veículo de conhecimento histórico e de integração sociológica, na esteira da orientação por si traçada desde o primeiro número, em Maio de 1948. E bem sabemos como os leitores torrienses da diáspora, espalhados pelos cinco continentes, procuram ansiosos as novidades que a distância torna mais apetecíveis.
O Badaladas, como empresa, é viável. Está inserido numa comunidade dinâmica, maioritariamente próspera do ponto de vista económico, com fortes tradições associativas. Onde o jornal criou raízes e tem uma história brilhante. Basta ser bem gerido, com um bom agente comercial e ter uma liderança capaz de aglutinar vontades e competências, movida por um forte e genuíno amor à causa.
Imaginando, caro P. Joaquim, o que pensaria das ameaças que pairam sobre o futuro do seu Badaladas, interrogo-me se os seus continuadores nas responsabilidades paroquiais sabem merecer o precioso legado que lhes deixou. Pudesse ainda a sua memória, P. Joaquim, desinquietar-lhes a consciência e incitá-los à acção! – e transformar em combatividade o meu desalento!
Com a estima de sempre,
Joaquim Moedas Duarte




PASSOS EM VOLTA - UM LEGADO SILENCIOSO

 CEMITÉRIO DE S. JOÃO, em TORRES VEDRAS


Ontem, 7 de Dezembro, a Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV), em parceria com o sector de Turismo da Câmara Municipal de Torres Vedras - dinamizado pela Ângela Vitória - orientou mais uma visita guiada. Manhã chuvosa, que não amedrontou os 20 interessados participantes.

A introdução, à entrada do cemitério, foi feita pela Ana Rita Pereira, da Direcção da Associação, seguindo de perto o artigo que publicara, uma semana antes, no jornal Badaladas.

Já dentro do recinto, Joaquim Moedas Duarte, também da Direcção, guiou os participantes até junto das campas e jazigos de torrienses ilustres que deixaram um rasto indelével nas nossas memórias:

Fernando Vicente, resistente anti-fascista; Maria da Conceição Barreto Bastos, benemérita fundadora do Lar de S. José; António Hipólito, Francisco António da Silva e Francisco Xavier Damião, os três "latoeiros prodigiosos", fundadores das três maiores empresas torrienses do séc. XX; Vasco Parreira, Gerente da Casa Hipólito; Leonel Trindade, arqueólogo e director do Museu Municipal; Júlio Vieira, autor de celebrado livro "Torres Vedras Antiga e Moderna".
Visitámos também os talhões dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras e dos Franciscanos do Convento do Varatojo.
As fotos ilustram um pouco da actividade. O mau tempo impediu a tradicional foto do grupo.





UM OLHAR SOBRE O CEMITÉRIO DE S. JOÃO - PAPEL NA HISTÓRIA LOCAL E PARTICULARIDADES - Jornal BADALADAS 29 NOVEMBRO 2024

 

 

Um olhar sobre o cemitério de São João – papel na história local e particularidades

Ana Rita Pereira

(Membro da Direcção da ADDPCTV)

 

Vamos abordar um pouco da história daquele que foi, durante mais de um século, o “Cemitério da Vila”, o cemitério de São João, e mostrar como este pode ser olhado, para além de um sítio de dor, como uma representação da história da localidade.

Nas palavras de Fernando Catroga, «todo e qualquer cemitério (…) deve ser visto como um lugar (…) de reprodução simbólica do universo social». Quer através da sua disposição e dos materiais utilizados nos jazigos, quer dos próprios regulamentos, é possível entender a hierarquia, as dinâmicas e as normas sociais e políticas de cada época, constituindo desta forma uma memória da comunidade e da sua história com a qual podemos aprender muito.

A criação do cemitério de S. João veio na sequência das Leis de Saúde Pública do século XIX. O governo de Costa Cabral, iniciado em 1842, ficou marcado por medidas transformadoras ao nível administrativo, da instrução e da saúde públicas. No âmbito da saúde pública, destaque para o Decreto de 18 de setembro de 1844 que proibiu definitivamente os enterramentos dentro de igrejas ou capelas, nos povoamentos onde existisse cemitério público e requeria a aprovação de um delegado de saúde para a realização dos mesmos. Esta alteração, mais do que uma inovadora medida administrativa, representava grande mudança de costumes. Até então havia uma divisão clara entre a esfera da Igreja e a esfera pública, como era o caso dos enterramentos, que sempre se realizavam dentro das igrejas ou em volta delas, em território sagrado e limitado aos seus crentes. Com aquela lei, o Estado passou a interferir, obrigando à criação de um local próprio para as inumações – um cemitério público – destinado a qualquer tipo de pessoa, independentemente da religião praticada ou da forma de morte, o qual devia situar-se longe do centro das localidades. O enterramento passou a ser pago, assim como o serviço religioso.

 

PRIMEIRO CEMITÉRIO PÚBLICO EM TORRES VEDRAS

 

Até à criação daquela lei, em Torres Vedras os enterramentos eram realizados no cemitério da Misericórdia, situado entre a igreja e a rua homónima, na Igreja de São Pedro e Santiago e nos adros adjacentes, espaços sagrados. Tornou-se necessário criar um cemitério público e, para isso, havia que definir um lugar apropriado. A cerca da Ermida de São João, aquando das invasões francesas, fora cemitério das tropas francesas e inglesas, em 1807 e 1811, respetivamente.  Situada num campo a nascente da vila, parecia ter as condições necessárias, mas a Ordem Terceira, proprietária do terreno, protelou a sua construção, pois misturava católicos com crentes de outras religiões. Procuraram-se outras soluções, como a cerca e, até, o claustro do extinto Convento da Graça, mas a falta de condições levou ao retorno da ideia inicial.  Em finais de 1848 o novo cemitério estava concluído, mas o facto de ter sido lugar de enterramentos dos ingleses protestantes atrasou a sua utilização, que desagradava à população. Só depois da cerimónia religiosa de sagração, o cemitério pôde ser utilizado e o primeiro enterramento fez-se em 30 de junho de 1849. O cemitério de São João passou a ser oficialmente o «cemitério das 4 freguesias da vila», como está descrito no Quesitos em relação aos cemitérios públicos existentes no concelho. No entanto, ocorreu ainda um conflito com a Santa Casa da Misericórdia que continuava a querer para o seu cemitério a exclusividade dos enterramentos dos falecidos no hospital, o que levou a que a situação demorasse a estabilizar.

A administração do cemitério de São João ficou oficialmente a cargo da Ordem Terceira a partir de outubro de 1849, pois já era proprietária do terreno desde 1805, por Alvará régio. Apenas no final do século XIX a administração passou para a Câmara Municipal. Na Sessão da Câmara Municipal de 14 de junho de 1890 foi apresentado o projeto do regulamento do cemitério municipal e em 2 de janeiro de 1893 já existia uma vereação responsável pela inspeção dos «Impostos, açougues e cemitérios».

Ao longo do século XX e até hoje, a administração do cemitério tem oscilado entre a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, estando neste momento a cargo da Junta de Freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães.

O cemitério reflete o crescimento da vila ao longo dos anos, pois também este teve necessidade de se expandir. Em 17 de maio de 1884 foi comprado um terreno perto do cemitério para garantir o seu alargamento, e em 1974, foi aprovada a expropriação de territórios na zona de Arenes para a construção do novo cemitério municipal – que viria a ser o cemitério de São Miguel – devido ao estado de saturação do cemitério de São João.

Através da observação direta, da consulta das plantas presentes no Arquivo Municipal de Torres Vedras e dos próprios regulamentos, verificamos que o cemitério de São João é constituído por sepulturas de planta retangular e jazigos, ambos classificados como temporários ou permanentes – sendo estes segundos pertencentes a famílias. Como equipamentos, inicialmente tinha um espaço para depósito de finados, uma casa destinada ao serviço médico-legal, uma casa para o guarda do cemitério e a sua família, uma casa de depósito e uma capela. Na área de inumações, há talhões específicos como os destinados a bombeiros, padres e crianças. Os regulamentos revelam-se uma fonte de maior importância para este estudo pois, através deles, é possível perceber a organização das sepulturas e dos talhões, as regras de funcionamento do cemitério, dos enterramentos e as coimas para os infratores. Definem-se as características permitidas de embelezamento dos jazigos e das sepulturas, apresentando em contraponto as que não são consentidas, como os «epitáfios que exaltem ideias políticas ou possam ser desrespeitosos». No final do Regulamento do Cemitério Municipal de 1923, encontramos o parecer de três médicos em como aprovam aquele regulamento.

Os elementos decorativos e as características próprias dos jazigos e das sepulturas permitem recolher informações sobre as profissões e/ou o papel que o defunto teve em vida. Veja-se o já mencionado talhão dos padres, que se separa dos demais por uma vedação e um pequeno portão decorado com uma ampulheta com asas de anjo, como que simbolizando a passagem do tempo; ou o talhão dos bombeiros que está acima de degraus e com uma decoração no meio com a palavra “Bombeiros” inscrita. O jazigo do comendador António Hipólito é decorado com uma figura feminina simbólica da Indústria, relacionando-se assim com a sua profissão.

Ao longo do cemitério é possível encontrar várias sepulturas em que a imagem escolhida para colocar na lápide é do defunto com a farda da sua profissão (exemplo polícias, combatentes) ou então a forma de apresentação remete para sua profissão como é o caso de José Maria Pinheiro da Silva Jr que na sua descrição surge como “Bacharel formado em Direito” ou do “MAESTRO Francisco Xavier de Melo” nomeado desta mesma forma com a profissão incluída no seu nome.

Em suma, a evolução das formas e locais de enterramento, permitem-nos observar as mudanças de mentalidade e medidas higiénico-sanitárias no concelho e do país. Por um lado, dificuldade de estabilização do cemitério público e a sua administração na última metade do século XIX revelam a instabilidade política da época e a evolução da relação entre o Estado e a Igreja.  Por outro, a necessidade de alargar o terreno demonstra as alterações demográficas da vila. As diferenças dos materiais e da decoração utilizados nas sepulturas e jazigos são sinais reveladores das diferenças de estatuto social e das profissões.

 

Referências: Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV) documentação sobre os cemitérios; ASSUNÇÃO, Ana Paula de Sousa , «O valor da transfiguração do cemitério em produto turístico. Cemitério Municipal de Loures-estudo de caso.», Tese de Doutoramento em Turismo, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2022;CATROGA, Fernando,«O culto dos mortos como uma poética da ausência» in ArtCultura, n.20, Janeiro, Junho,2010,pp.163 a 182; FONSECA, Teresa «A Guerra Civil de 1846-47 e a Administração Municipal de Montemor-o-Novo» in Almansor, Revista de Cultura, nº1, 2ª série, 2002, pp. 197 a 208; MATOS, Venerando Aspra de , «Elementos para o estudo da Saúde Pública e da criação dos cemitérios públicos em Torres Vedras no século XIX» in BARBOSA, Pedro Gomes & all , Turres Veteras VI, História da Morte ,Câmara Municipal de Torres Vedras  Setor da Cultura, Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, Torres Vedras, 2004,pp.133 a 152; Blog Vedrografias , disponível em https://vedrografias2.blogspot.com/2021/03/torres-vedras-no-seculo-xix-o-tempo-e-o.html, Site

Parlamento.pt, disponível emhttps://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Revolta-Maria-da-Fonte.aspx.

 

            


Monumento funerário mais antigo do cemitério de S. João, em memória de António Pedro Ferreira Campello, benemérito da St. Casa da Misericórdia, falecido em 1858.




A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO - Jornal BADALADAS - 25 OUT 2024

 

A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO

Vítor Serrão

Historiador de Arte

Prof. Catedrático Emérito da Univ. de Lisboa


Retábulo barroco da capela mor

     Acabam de passar quinhentos e cinquenta anos sobre a entrada no convento do Varatojo, em 4 de Outubro de Fevereiro de 1474, dos primeiros catorze frades vindo do Convento de São Francisco de Alenquer. A casa, que vira em 1470 colocada a primeira pedra, sob égide do próprio D. Afonso V (na pessoa de seu filho D. Duarte), em cumprimento do voto a Santo António e São Francisco se o auxiliassem nas conquistas do Norte de África, abria então sob direcção do Provincial Franciscano Fr. João da Póvoa. O rei dedicou grande afeição ao convento, onde com frequência se recolhia, o que explica a qualidade das obras, desde o claustro gótico primevo, ao portal gabletado da igreja, à célebre janela de canto, junto à portaria, que pertencia aos aposentos régios, ao tecto de alfarge mudéjar da entrada, e outros pormenores coevos da campanha de final do século XV.

     A qualidade da arquitectura gótica, bem como o recheio setecentista de talha, imaginária e azulejos, tem feito esquecer o importante acervo de pintura que o convento ainda conserva. São cerca de oitenta quadros, entre os quais se acham obras pouco conhecidas de Gaspar Dias, Belchior de Matos, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, Vincenzo Baccherelli e Diogo Magina, e vários «anónimos». A convite de Frei Vítor Melícias e da comunidade franciscana, proferi uma conferência a 4 de Outubro passado, tendo tido oportunidade para divulgar o resultado dos estudos preliminares sobre esse acervo, que merece inventariação, análise científica, medidas de conservação e restauro e, em último lugar, musealização condigna.

     Impõe especial destaque o antigo retábulo da capela-mor, custeado pela corte de Avis-Beja e dado a fazer à oficina de um dos mais respeitados artistas de Lisboa no último terço do século XVI: o pintor GASPAR DIAS. Como se sabe, a capela-mor antes da actual (que é barroca-pedrina e de início do século XVIII) era uma 'reforma' do primitivo edifício gótico e foi custeada pela Rainha regente D. Catarina de Áustria, já viúva de D. João III, cerca de 1565-70. As obras prolongaram-se, por várias razões (a que a crise política não foi alheia), e só em 1582 o retábulo estava pronto. O conjunto, constituído por sete óptimas tábuas maneiristas, teve ainda financiamento de Filipe I de Portugal, que chegou a visitar o convento. Até às remodelações barrocas que geraram o actual retábulo (com talha de António Martins Calheiros e tela de Vincenzo Baccherelli), o retábulo-mor reunia sete pinturas de notabilíssima valia.

     Estas pinturas, que mereceram já estudo a autores como Adriano de Gusmão, Pedro Flor, Susana Flor, José Alberto Seabra, Fernando Baptista Pereira, Vanessa Antunes e outros, estão sujas e danificadas (mas sem vestígios de repintes) e, por isso, muito esquecidas e ignoradas dos estudiosos, pelo que reclamam estudo integrado, consolidação, análises e tratamento laboratorial. Um projecto já entretanto aprovado, que envolve as equipa de técnicas da Associação TENTO, irá dar início, em boa hora, a esse processo.

O PINTOR GASPAR DIAS

     São sete pinturas a óleo sobre madeira, como se disse, outrora colocadas no retábulo-mor em três andares sobrepostos: desde o tempo de D. João V, quatro estão colocadas nas paredes laterais da capela-mor barroca, com molduras de talha apostas após o apeamento. A ANUNCIAÇÃO, a ADORAÇÃO DOS MAGOS (à esquerda), a ADORAÇÃO DOS PASTORES e a APARIÇÃO DE CRISTO À VIRGEM (à direita). No arco triunfal, vemos (muito alta) a RESSURREIÇÃO DE CRISTO. Na sacristia, enfim, encontram-se o PENTECOSTES e o MILAGRE EUCARÍSTICO DE SANTO ANTÓNIO, que são as de maior formato; estavam ao centro das duas fiadas principais do conjunto.

     Os saberes decorrentes do estudo histórico, artístico, iconográfico, iconológico e comparativo confirmam muitos indicadores e estilemas que aproximam estas sete pinturas da 'maneira' de Gaspar Dias, um grande pintor de Lisboa formado em Roma e em Parma, que foi influenciado pelos modelos da tradição rafaelesca e 'pierinesca', bem como por Parmigianino, e que actua entre 1555 e 1594, data provável da morte, e a quem se devem a famosa ‘Aparição do Anjo a São Roque’ da igreja de São Roque e duas das tábuas do retábulo da Luz de Carnide, onde o desenho de figura, a largueza dos panejamentos e a cenografia da arquitectura têm preciosismos de pincel, resoluções consistentes, pessoalismos de estilo e afinidades acentuadas com as tábuas do Varatojo.


Adoração dos Reis Magos

     Tratar-se-á, portanto, de obras devidas a Gaspar Dias, o pintor da Casa da Índia e Minas, muito estimado no seu tempo pela sua «delicadeza» e «grande maneira», qualidades que se destacam nestes painéis de final de carreira. Um pintor de alta craveira, actualíssimo de modelos e internacionalizado de formação. Pormenores como as peças de ourivesaria dos magos, a cesta de legumes dos pastores (uma verdadeira natureza-morta avant la lettre !), as belas arquitecturas clássicas dos fundos, os tapetes turcos, os elegantes panejamentos soprados, e a caracterização dos gestos, rostos e posturas, tudo atesta uma obra de altíssima qualidade e de inspiração italiana, que urge recuperar, estudar e divulgar na medida das suas valências.


Página do Badaladas

 

14 outubro 2024

CASTELO DE TORRES VEDRAS | BADALADAS - 4 OUTUBRO 2024

 

A propósito do Dia Nacional dos Castelos

algumas reflexões sobre o estado de conservação e o uso do

CASTELO DE TORRES VEDRAS

 José Pedro Sobreiro




Desde 1984 que se comemora em outubro o Dia Nacional dos Castelos, com o objetivo de promover em todo o país iniciativas e atividades que visam o conhecimento e a reflexão sobre o património fortificado (1). Os castelos são testemunhos da memória coletiva dos povos e representam uma importante referência arquitetónica, histórica, cultural e simbólica de um país.

E foi precisamente há 40 anos, que a ADDPCTV promoveu uma jornada comemorativa a nível nacional, em colaboração com a Associação dos Amigos dos Castelos e a Câmara Municipal, que terá marcado o início de uma era de renovado interesse pelo nosso Castelo.

Desde então para cá, e ao contrário de uma certa percepção, o monumento tem sido objecto de maior cuidado, se considerarmos o estado de abandono em que se encontrava.

A ocorrência de escavações arqueológicas, a realização do” Castelo deMúsica”, a reabertura da Igreja de Santa Maria, a colocação de placas informativas no recinto e o relativo asseio do espaço visitável, mas sobretudo, a criação do polo informativo no Torreão, com informação adequada - um vídeo de grande qualidade que explica ao visitante o tipo de construção que as ruínas tornam difícil de perceber – são entre outros, factores que dignificam o nosso castelo. E apesar de tudo, o Castelo continua a ser o monumento mais visitado – por turistas, que não por torrienses.

 

UMA PROPOSTA A TER EM CONTA

Vem tudo isto a propósito da reafirmação recente de uma proposta do movimento político local - Unidos por Torres Vedras - visando: “... fazer do Castelo um equipamento vivo, trazendo novas valências e atividades culturais de lazer que permitam o usufruto dos torrienses”, como se pode ler num comunicado bem formulado, onde não falta o cuidado com a referência à manutenção de ...” todos os traços de identidade” ... e ao seu enquadramento ...” como âncora à urgente dinamização do centro histórico”. E conclui a sua posição com a proposta de ... “abertura de um Concurso de Ideias para requalificar o Castelo” ... através de …”um processo que resulte de uma discussão pública sobre a natureza da recuperação, dando voz a especialistas e à população do concelho”. Perante tal iniciativa, a Associação do Património de Torres Vedras tem o dever, em primeiro lugar, de se congratular pela inequívoca demonstração de interesse pelo monumento que simbolicamente se afirma como imagem fundacional da nossa ancestral comunidade. Mas igualmente se impõe o compromisso de alertar para alguns perigos que uma ideia assim formulada, com justas e defensáveis motivações, possa acarretar. Sem se discutir a importância da fruição pública do Património, há que reconhecer que alguns problemas de manutenção resultam de um uso massivo como espaço de “eventos”. Alguns dos danos que a seguir elencamos, devem-se ou são potenciado precisamente por eventos a que acorre um tipo de público pouco respeitador da herança cultural e por uma organização menos cuidada, quer pela falta de preparação e insuficiência de meios materiais e humanos.

 

CUIDAR, CONSERVAR, RESTAURAR

O fundamental deve ser a acção de preservação do castelo, função legalmente atribuída à Câmara Municipal torriense, cujo trabalho temos seguido, não deixando de, a espaços, chamarmos a atenção para alguns aspectos mais relevantes. Como é o caso da Porta do Paço dos Alcaides que apresenta uma situação de risco, uma vez que se encontra desprovida das grandes peças de cantaria numa das umbreiras. A reposição destas pedras é fundamental para a  sustentação do pesado lintel em arco abatido. Igualmente as umbreiras da porta de acesso ao cimo do torreão apresentam um grande desgaste. No interior do Paço - um espaço aparentemente apetecível para concertos e afins - o piso em calçada (original) está cada vez mais deteriorado, agravado pela passagem de materiais pesados que são arrastados, provocando falhas nas estruturas e levantamento de pedras. A presença de um número significativo de pessoas neste tipo de eventos também tem provocado o derrube de vestígios remanescentes dasconstruções interiores do paço. Nas grossas paredes exteriores são várias as zonas em que é visível a falta de reboco de consolidação, a exigir uma continuada atenção. Também a colocação de sinalética, com materiais não adequados tem como resultado a degradação das paredes. Porque, não nos iludamos, pela aparência rude das ruínas do castelo podemos intuir uma ideia de robustez, mas na realidade elas são uma estrutura frágil. Não esquecer que estão ali, pelo menos, cinco séculos de desgaste, um terramoto, e duas campanhas militares.

SIM AO DEBATE DE IDEIAS

Dito isto, que não se subentenda uma desaprovação da iniciativa – que saudamos – mas antes um apelo ao cuidado pelo compromisso fundamental para com o Património, que é o de o preservar para os vindouros. Até lá, que se continue a manter e reparar as estruturas, a cuidar dos caminhos, a cortar as ervas, para que possamos sentir a sua presença como algo que nos assegura um sentimento de pertença e nos insufla a ideia de continuidade geracional, em suma, que nos irmana num sentimento de comunidade. Essa é a principal função do Património.

(1(1)  Inicialmente era celebrado no primeiro sábado do mês mas em 2003 estabeleceu-se o dia 7 como a data oficial.

 



IGREJA DE SANTIAGO - Jornal BADALADAS | 6 de Setembro 2024

 

IGREJA DE SANTIAGO – TORRES VEDRAS

VI FESTIVAL DE MÚSICA ANTIGA DE TORRES VEDRAS

Joaquim Moedas Duarte

(texto e fotos)

 

O VI Festival de Música Antiga de Torres Vedras decorreu entre 18 de Maio e 29 de Junho do corrente ano. Organizado pelo sector de Cultura da Câmara Municipal, com a curadoria do organista e professor Daniel Oliveira, teve como linha condutora a ligação entre a Música e o Património religioso edificado. A Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV) colaborou, fazendo em cada concerto a contextualização patrimonial do espaço em que ele decorria. Em 26 de Junho, foi na Igreja de Santiago, na cidade de Torres Vedras.

 

 






O TEMPLO

De novo marcámos encontro nesta Igreja de Santiago, numa feliz articulação entre o Património Edificado e o Património Musical.Recordemos alguns aspectos essenciais sobre este templo:

Foi uma das quatro Igrejas matrizes de Torres Vedras, bem no Centro Histórico da então Vila Medieval. Sabemos da sua existência já em 1248 / séc. XIII.

O espaço em que hoje estamos resulta da reconstrução da antiga ermida, feita entre os séculos XVI e XVII.

Do séc. XVI temos três relíquias:

 O portal principal, de estilo manuelino, que o tempo e a poluição têm vindo a degradar inexoravelmente; a pia baptismal, numa capela cujo desleixo e indiferença dos responsáveis religiosos tornam indigna desta peça preciosa, onde foram baptizados milhares de antepassados nossos; uma escada de pedra, em caracol, igualmente vítima de grande desleixo, que dá acesso ao coro alto, onde restam os vestígios de um cadeiral, datado de 1634, infelizmente em ruínas. Este coro é de grande monumentalidade, assente em três arcos, dos quais o do meio é abatido, com elegante desenho.

Olhemos bem a abóbada: em forma de berço, de grandes caixotões, sobreviveu ao terramoto de 1755, ao contrário das outras igrejas de Torres Vedras. Ela cobre uma nave muito ampla, onde existiam seis altares, três de cada lado. Estão hoje completamente desfigurados, pois este templo foi retirado do culto em meados do séc. XX. Destaca-se, no corpo da Igreja, o belíssimo púlpito, todo em mármore, do século XVII. Está hoje quase ao nível dos nossos olhos pois o chão da Igreja sofreu múltiplos alteamentos, devido às frequentes cheias do Sizandro, que inundavam o interior.

Na parede onde se abre o arco triunfal, foram descobertas, durante umas obras de restauro, há cerca de quarenta anos, pinturas murais que estavam cobertas por estuque, provavelmente do século XVIII, época da última grande reconstrução da Igreja, em que terá sido erguida a actual fachada, com a torre sineira.

Mas a maior riqueza decorativa deste templo está na capela mor. Vejam-se os dois silhares de azulejos figurativos, do século XVIII, atribuídos ao Mestre PMP, que representam os atributos de Santiago: a cruz e os apetrechos do peregrino. Sobre estes azulejos, há quatro telas, recentemente restauradas, representando quatro doutores da Igreja: do lado esquerdo (Evangelho), S. Jerónimo e Santo Agostinho; do lado direito (Epístola), Santo Ambrózio e S. Gregória Magno.

O retábulo, que seria em talha dourada, característica do estilo barroco, está reduzido à estrutura base, mas mantém no alto uma cartela com as insígnias de Santiago. E assenta num friso de mármores embutidos. No teto, há belos ornatos que preenchem o espaço entre os arcos de sustentação.

De referir ainda, na sacristia, o monumental lavabo, também de mármores embutidos e o grande arcaz com ferragens do séc. XVIII.

 

 





DEFICIENTE PRESERVAÇÃO

 

Esta Igreja, por iniciativa da Escola Secundária Henriques Nogueira e da Associação para a Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras (ADDPCTV), foi classificada pelo Governo da República Portuguesa, em 2013, como Monumento de Interesse Público.

Este facto implica responsabilidades acrescidas de preservação e conservação. Infelizmente, verificamos que, a notável acção de valorização desta Igreja, realizada pelo  falecido Pároco, Padre Daniel Batalha, não teve continuidade. Entre outras intervenções necessárias, necessitam de obras urgentes a capela baptismal e a escada do coro – obras que até nem seriam muito dispendiosas.

Respondendo à importância deste Monumento, a Câmara Municipal, com a aquiescência da Paróquia, incluíu-o no Projecto ISA Património, o que permite que ele esteja aberto ao público todos os dias da semana, excepto à Segunda-feira. É triste que as pessoas que o visitam verifiquem que, afinal, uma parte significativa dele esteja em tão lamentável estado de conservação.