08 dezembro 2024

UM OLHAR SOBRE O CEMITÉRIO DE S. JOÃO - PAPEL NA HISTÓRIA LOCAL E PARTICULARIDADES - Jornal BADALADAS 29 NOVEMBRO 2024

 

 

Um olhar sobre o cemitério de São João – papel na história local e particularidades

Ana Rita Pereira

(Membro da Direcção da ADDPCTV)

 

Vamos abordar um pouco da história daquele que foi, durante mais de um século, o “Cemitério da Vila”, o cemitério de São João, e mostrar como este pode ser olhado, para além de um sítio de dor, como uma representação da história da localidade.

Nas palavras de Fernando Catroga, «todo e qualquer cemitério (…) deve ser visto como um lugar (…) de reprodução simbólica do universo social». Quer através da sua disposição e dos materiais utilizados nos jazigos, quer dos próprios regulamentos, é possível entender a hierarquia, as dinâmicas e as normas sociais e políticas de cada época, constituindo desta forma uma memória da comunidade e da sua história com a qual podemos aprender muito.

A criação do cemitério de S. João veio na sequência das Leis de Saúde Pública do século XIX. O governo de Costa Cabral, iniciado em 1842, ficou marcado por medidas transformadoras ao nível administrativo, da instrução e da saúde públicas. No âmbito da saúde pública, destaque para o Decreto de 18 de setembro de 1844 que proibiu definitivamente os enterramentos dentro de igrejas ou capelas, nos povoamentos onde existisse cemitério público e requeria a aprovação de um delegado de saúde para a realização dos mesmos. Esta alteração, mais do que uma inovadora medida administrativa, representava grande mudança de costumes. Até então havia uma divisão clara entre a esfera da Igreja e a esfera pública, como era o caso dos enterramentos, que sempre se realizavam dentro das igrejas ou em volta delas, em território sagrado e limitado aos seus crentes. Com aquela lei, o Estado passou a interferir, obrigando à criação de um local próprio para as inumações – um cemitério público – destinado a qualquer tipo de pessoa, independentemente da religião praticada ou da forma de morte, o qual devia situar-se longe do centro das localidades. O enterramento passou a ser pago, assim como o serviço religioso.

 

PRIMEIRO CEMITÉRIO PÚBLICO EM TORRES VEDRAS

 

Até à criação daquela lei, em Torres Vedras os enterramentos eram realizados no cemitério da Misericórdia, situado entre a igreja e a rua homónima, na Igreja de São Pedro e Santiago e nos adros adjacentes, espaços sagrados. Tornou-se necessário criar um cemitério público e, para isso, havia que definir um lugar apropriado. A cerca da Ermida de São João, aquando das invasões francesas, fora cemitério das tropas francesas e inglesas, em 1807 e 1811, respetivamente.  Situada num campo a nascente da vila, parecia ter as condições necessárias, mas a Ordem Terceira, proprietária do terreno, protelou a sua construção, pois misturava católicos com crentes de outras religiões. Procuraram-se outras soluções, como a cerca e, até, o claustro do extinto Convento da Graça, mas a falta de condições levou ao retorno da ideia inicial.  Em finais de 1848 o novo cemitério estava concluído, mas o facto de ter sido lugar de enterramentos dos ingleses protestantes atrasou a sua utilização, que desagradava à população. Só depois da cerimónia religiosa de sagração, o cemitério pôde ser utilizado e o primeiro enterramento fez-se em 30 de junho de 1849. O cemitério de São João passou a ser oficialmente o «cemitério das 4 freguesias da vila», como está descrito no Quesitos em relação aos cemitérios públicos existentes no concelho. No entanto, ocorreu ainda um conflito com a Santa Casa da Misericórdia que continuava a querer para o seu cemitério a exclusividade dos enterramentos dos falecidos no hospital, o que levou a que a situação demorasse a estabilizar.

A administração do cemitério de São João ficou oficialmente a cargo da Ordem Terceira a partir de outubro de 1849, pois já era proprietária do terreno desde 1805, por Alvará régio. Apenas no final do século XIX a administração passou para a Câmara Municipal. Na Sessão da Câmara Municipal de 14 de junho de 1890 foi apresentado o projeto do regulamento do cemitério municipal e em 2 de janeiro de 1893 já existia uma vereação responsável pela inspeção dos «Impostos, açougues e cemitérios».

Ao longo do século XX e até hoje, a administração do cemitério tem oscilado entre a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, estando neste momento a cargo da Junta de Freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães.

O cemitério reflete o crescimento da vila ao longo dos anos, pois também este teve necessidade de se expandir. Em 17 de maio de 1884 foi comprado um terreno perto do cemitério para garantir o seu alargamento, e em 1974, foi aprovada a expropriação de territórios na zona de Arenes para a construção do novo cemitério municipal – que viria a ser o cemitério de São Miguel – devido ao estado de saturação do cemitério de São João.

Através da observação direta, da consulta das plantas presentes no Arquivo Municipal de Torres Vedras e dos próprios regulamentos, verificamos que o cemitério de São João é constituído por sepulturas de planta retangular e jazigos, ambos classificados como temporários ou permanentes – sendo estes segundos pertencentes a famílias. Como equipamentos, inicialmente tinha um espaço para depósito de finados, uma casa destinada ao serviço médico-legal, uma casa para o guarda do cemitério e a sua família, uma casa de depósito e uma capela. Na área de inumações, há talhões específicos como os destinados a bombeiros, padres e crianças. Os regulamentos revelam-se uma fonte de maior importância para este estudo pois, através deles, é possível perceber a organização das sepulturas e dos talhões, as regras de funcionamento do cemitério, dos enterramentos e as coimas para os infratores. Definem-se as características permitidas de embelezamento dos jazigos e das sepulturas, apresentando em contraponto as que não são consentidas, como os «epitáfios que exaltem ideias políticas ou possam ser desrespeitosos». No final do Regulamento do Cemitério Municipal de 1923, encontramos o parecer de três médicos em como aprovam aquele regulamento.

Os elementos decorativos e as características próprias dos jazigos e das sepulturas permitem recolher informações sobre as profissões e/ou o papel que o defunto teve em vida. Veja-se o já mencionado talhão dos padres, que se separa dos demais por uma vedação e um pequeno portão decorado com uma ampulheta com asas de anjo, como que simbolizando a passagem do tempo; ou o talhão dos bombeiros que está acima de degraus e com uma decoração no meio com a palavra “Bombeiros” inscrita. O jazigo do comendador António Hipólito é decorado com uma figura feminina simbólica da Indústria, relacionando-se assim com a sua profissão.

Ao longo do cemitério é possível encontrar várias sepulturas em que a imagem escolhida para colocar na lápide é do defunto com a farda da sua profissão (exemplo polícias, combatentes) ou então a forma de apresentação remete para sua profissão como é o caso de José Maria Pinheiro da Silva Jr que na sua descrição surge como “Bacharel formado em Direito” ou do “MAESTRO Francisco Xavier de Melo” nomeado desta mesma forma com a profissão incluída no seu nome.

Em suma, a evolução das formas e locais de enterramento, permitem-nos observar as mudanças de mentalidade e medidas higiénico-sanitárias no concelho e do país. Por um lado, dificuldade de estabilização do cemitério público e a sua administração na última metade do século XIX revelam a instabilidade política da época e a evolução da relação entre o Estado e a Igreja.  Por outro, a necessidade de alargar o terreno demonstra as alterações demográficas da vila. As diferenças dos materiais e da decoração utilizados nas sepulturas e jazigos são sinais reveladores das diferenças de estatuto social e das profissões.

 

Referências: Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV) documentação sobre os cemitérios; ASSUNÇÃO, Ana Paula de Sousa , «O valor da transfiguração do cemitério em produto turístico. Cemitério Municipal de Loures-estudo de caso.», Tese de Doutoramento em Turismo, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2022;CATROGA, Fernando,«O culto dos mortos como uma poética da ausência» in ArtCultura, n.20, Janeiro, Junho,2010,pp.163 a 182; FONSECA, Teresa «A Guerra Civil de 1846-47 e a Administração Municipal de Montemor-o-Novo» in Almansor, Revista de Cultura, nº1, 2ª série, 2002, pp. 197 a 208; MATOS, Venerando Aspra de , «Elementos para o estudo da Saúde Pública e da criação dos cemitérios públicos em Torres Vedras no século XIX» in BARBOSA, Pedro Gomes & all , Turres Veteras VI, História da Morte ,Câmara Municipal de Torres Vedras  Setor da Cultura, Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, Torres Vedras, 2004,pp.133 a 152; Blog Vedrografias , disponível em https://vedrografias2.blogspot.com/2021/03/torres-vedras-no-seculo-xix-o-tempo-e-o.html, Site

Parlamento.pt, disponível emhttps://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Revolta-Maria-da-Fonte.aspx.

 

            


Monumento funerário mais antigo do cemitério de S. João, em memória de António Pedro Ferreira Campello, benemérito da St. Casa da Misericórdia, falecido em 1858.




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