Um olhar sobre o cemitério de
São João – papel na história local e particularidades
Ana Rita Pereira
(Membro da Direcção da ADDPCTV)
Vamos
abordar um pouco da história daquele que foi, durante mais de um século, o
“Cemitério da Vila”, o cemitério de São João, e mostrar como este pode ser
olhado, para além de um sítio de dor, como uma representação da história da
localidade.
Nas palavras de
Fernando Catroga, «todo e qualquer cemitério (…) deve ser visto como um lugar
(…) de reprodução simbólica do universo social». Quer através da sua disposição
e dos materiais utilizados nos jazigos, quer dos próprios regulamentos, é
possível entender a hierarquia, as dinâmicas e as normas sociais e políticas de
cada época, constituindo desta forma uma memória da comunidade e da sua
história com a qual podemos aprender muito.
A criação do cemitério de S. João veio na sequência das Leis de
Saúde Pública do século XIX. O governo de Costa Cabral, iniciado
em 1842, ficou marcado por medidas transformadoras ao nível administrativo, da
instrução e da saúde públicas. No âmbito da saúde pública, destaque para o Decreto de 18 de setembro de 1844 que proibiu
definitivamente os enterramentos dentro de igrejas ou capelas, nos povoamentos
onde existisse cemitério público e requeria a aprovação de um delegado de saúde
para a realização dos mesmos. Esta
alteração, mais do que uma inovadora medida administrativa, representava grande
mudança de costumes. Até então havia uma divisão clara entre a esfera da Igreja
e a esfera pública, como era o caso dos enterramentos, que sempre se realizavam
dentro das igrejas ou em volta delas, em território sagrado e limitado aos seus
crentes. Com aquela lei, o Estado passou a interferir, obrigando à criação de
um local próprio para as inumações – um cemitério público – destinado a
qualquer tipo de pessoa, independentemente da religião praticada ou da forma de
morte, o qual devia situar-se longe do centro das localidades. O enterramento passou
a ser pago, assim como o serviço religioso.
PRIMEIRO CEMITÉRIO
PÚBLICO EM TORRES VEDRAS
Até à criação daquela
lei, em Torres Vedras os enterramentos eram realizados no cemitério da
Misericórdia, situado entre a igreja e a rua homónima, na Igreja de São Pedro e
Santiago e nos adros adjacentes, espaços sagrados. Tornou-se necessário criar
um cemitério público e, para isso, havia que definir um lugar apropriado. A cerca da Ermida de São João,
aquando das invasões francesas, fora cemitério das tropas francesas e inglesas,
em 1807 e 1811, respetivamente. Situada
num campo a nascente da vila, parecia ter as condições necessárias, mas a Ordem
Terceira, proprietária do terreno, protelou a sua construção, pois misturava católicos com crentes de outras religiões.
Procuraram-se outras soluções, como a
cerca e, até, o claustro do extinto Convento da Graça, mas a falta de
condições levou ao retorno da ideia inicial.
Em finais de 1848 o novo cemitério estava concluído, mas o facto de ter
sido lugar de enterramentos dos ingleses protestantes
atrasou a sua utilização, que desagradava à população. Só depois da cerimónia
religiosa de sagração, o cemitério pôde ser utilizado e o primeiro enterramento
fez-se em 30 de junho de 1849. O cemitério de São João passou a ser oficialmente
o «cemitério das 4 freguesias da vila», como está descrito no Quesitos em relação aos cemitérios públicos existentes no
concelho. No entanto, ocorreu ainda um
conflito com a Santa Casa da Misericórdia que continuava a querer para o seu cemitério
a exclusividade dos enterramentos dos falecidos no hospital, o que levou a que
a situação demorasse a estabilizar.
A
administração do cemitério de São João ficou oficialmente a cargo da Ordem
Terceira a partir de outubro de 1849, pois já era proprietária do terreno desde
1805, por Alvará régio. Apenas no final do século XIX a administração passou
para a Câmara Municipal. Na Sessão da
Câmara Municipal de 14 de junho de 1890 foi apresentado o projeto do
regulamento do cemitério municipal e em 2 de janeiro
de 1893 já existia uma vereação responsável pela inspeção dos «Impostos,
açougues e cemitérios».
Ao longo do século XX e até hoje, a administração do cemitério tem
oscilado entre a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, estando neste momento
a cargo da Junta de Freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães.
O cemitério reflete o crescimento da vila ao longo dos anos, pois
também este teve necessidade de se expandir. Em 17 de maio de 1884 foi comprado
um terreno perto do cemitério para garantir o seu alargamento, e em 1974, foi
aprovada a expropriação de territórios na zona de Arenes para a construção do
novo cemitério municipal – que viria a ser o cemitério de São Miguel – devido
ao estado de saturação do cemitério de São João.
Através da observação direta, da consulta das plantas presentes no
Arquivo Municipal de Torres Vedras e dos próprios regulamentos, verificamos que
o cemitério de São João é constituído por sepulturas de planta retangular e
jazigos, ambos classificados como temporários ou permanentes – sendo estes
segundos pertencentes a famílias. Como equipamentos, inicialmente tinha um
espaço para depósito de finados, uma casa destinada ao serviço médico-legal,
uma casa para o guarda do cemitério e a sua família, uma casa de depósito e uma
capela. Na área de inumações, há talhões específicos como os destinados a
bombeiros, padres e crianças. Os regulamentos revelam-se uma fonte de maior
importância para este estudo pois, através deles, é possível perceber a
organização das sepulturas e dos talhões, as regras de funcionamento do
cemitério, dos enterramentos e as coimas para os infratores. Definem-se as
características permitidas de embelezamento dos jazigos e das sepulturas,
apresentando em contraponto as que não são consentidas, como os «epitáfios que
exaltem ideias políticas ou possam ser desrespeitosos». No final do Regulamento
do Cemitério Municipal de 1923, encontramos o parecer de três médicos em
como aprovam aquele regulamento.
Os elementos decorativos e as características próprias dos jazigos
e das sepulturas permitem recolher informações sobre as profissões e/ou o papel
que o defunto teve em vida. Veja-se o já mencionado talhão dos padres, que se
separa dos demais por uma vedação e um pequeno portão decorado com uma
ampulheta com asas de anjo, como que simbolizando a passagem do tempo; ou o
talhão dos bombeiros que está acima de degraus e com uma decoração no meio com
a palavra “Bombeiros” inscrita. O jazigo do comendador António Hipólito é
decorado com uma figura feminina simbólica da Indústria, relacionando-se assim
com a sua profissão.
Ao longo do cemitério é possível encontrar várias sepulturas em
que a imagem escolhida para colocar na lápide é do defunto com a farda da sua
profissão (exemplo polícias, combatentes) ou então a forma de apresentação
remete para sua profissão como é o caso de José Maria Pinheiro da Silva Jr que
na sua descrição surge como “Bacharel formado em Direito” ou do “MAESTRO
Francisco Xavier de Melo” nomeado desta mesma forma com a profissão incluída no
seu nome.
Em suma, a evolução das formas e locais de enterramento,
permitem-nos observar as mudanças de mentalidade e medidas higiénico-sanitárias
no concelho e do país. Por um lado, dificuldade de estabilização do cemitério
público e a sua administração na última metade do século XIX revelam a
instabilidade política da época e a evolução da relação entre o Estado e a
Igreja. Por outro, a necessidade de
alargar o terreno demonstra as alterações demográficas da vila. As diferenças
dos materiais e da decoração utilizados nas sepulturas e jazigos são sinais
reveladores das diferenças de estatuto social e das profissões.
Referências: Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV) documentação
sobre os cemitérios; ASSUNÇÃO, Ana Paula de Sousa , «O valor da transfiguração
do cemitério em produto turístico. Cemitério Municipal de Loures-estudo de
caso.», Tese de Doutoramento em Turismo, Universidade de Lisboa, Lisboa,
2022;CATROGA, Fernando,«O culto dos mortos como uma poética da ausência» in
ArtCultura, n.20, Janeiro, Junho,2010,pp.163 a 182; FONSECA,
Teresa «A Guerra Civil de 1846-47 e a Administração Municipal de
Montemor-o-Novo» in Almansor, Revista de Cultura, nº1, 2ª série, 2002,
pp. 197 a 208; MATOS, Venerando Aspra de , «Elementos para o estudo da
Saúde Pública e da criação dos cemitérios públicos em Torres Vedras no século
XIX» in BARBOSA, Pedro Gomes & all ,
Turres Veteras VI, História da Morte ,Câmara Municipal de Torres
Vedras Setor da Cultura, Instituto de
Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, Torres Vedras,
2004,pp.133 a 152; Blog Vedrografias , disponível em https://vedrografias2.blogspot.com/2021/03/torres-vedras-no-seculo-xix-o-tempo-e-o.html,
Site
Parlamento.pt,
disponível emhttps://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Revolta-Maria-da-Fonte.aspx.
Monumento funerário mais antigo do cemitério de S. João, em memória de António Pedro Ferreira Campello, benemérito da St. Casa da Misericórdia, falecido em 1858.
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