08 dezembro 2024

A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO - Jornal BADALADAS - 25 OUT 2024

 

A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO

Vítor Serrão

Historiador de Arte

Prof. Catedrático Emérito da Univ. de Lisboa


Retábulo barroco da capela mor

     Acabam de passar quinhentos e cinquenta anos sobre a entrada no convento do Varatojo, em 4 de Outubro de Fevereiro de 1474, dos primeiros catorze frades vindo do Convento de São Francisco de Alenquer. A casa, que vira em 1470 colocada a primeira pedra, sob égide do próprio D. Afonso V (na pessoa de seu filho D. Duarte), em cumprimento do voto a Santo António e São Francisco se o auxiliassem nas conquistas do Norte de África, abria então sob direcção do Provincial Franciscano Fr. João da Póvoa. O rei dedicou grande afeição ao convento, onde com frequência se recolhia, o que explica a qualidade das obras, desde o claustro gótico primevo, ao portal gabletado da igreja, à célebre janela de canto, junto à portaria, que pertencia aos aposentos régios, ao tecto de alfarge mudéjar da entrada, e outros pormenores coevos da campanha de final do século XV.

     A qualidade da arquitectura gótica, bem como o recheio setecentista de talha, imaginária e azulejos, tem feito esquecer o importante acervo de pintura que o convento ainda conserva. São cerca de oitenta quadros, entre os quais se acham obras pouco conhecidas de Gaspar Dias, Belchior de Matos, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, Vincenzo Baccherelli e Diogo Magina, e vários «anónimos». A convite de Frei Vítor Melícias e da comunidade franciscana, proferi uma conferência a 4 de Outubro passado, tendo tido oportunidade para divulgar o resultado dos estudos preliminares sobre esse acervo, que merece inventariação, análise científica, medidas de conservação e restauro e, em último lugar, musealização condigna.

     Impõe especial destaque o antigo retábulo da capela-mor, custeado pela corte de Avis-Beja e dado a fazer à oficina de um dos mais respeitados artistas de Lisboa no último terço do século XVI: o pintor GASPAR DIAS. Como se sabe, a capela-mor antes da actual (que é barroca-pedrina e de início do século XVIII) era uma 'reforma' do primitivo edifício gótico e foi custeada pela Rainha regente D. Catarina de Áustria, já viúva de D. João III, cerca de 1565-70. As obras prolongaram-se, por várias razões (a que a crise política não foi alheia), e só em 1582 o retábulo estava pronto. O conjunto, constituído por sete óptimas tábuas maneiristas, teve ainda financiamento de Filipe I de Portugal, que chegou a visitar o convento. Até às remodelações barrocas que geraram o actual retábulo (com talha de António Martins Calheiros e tela de Vincenzo Baccherelli), o retábulo-mor reunia sete pinturas de notabilíssima valia.

     Estas pinturas, que mereceram já estudo a autores como Adriano de Gusmão, Pedro Flor, Susana Flor, José Alberto Seabra, Fernando Baptista Pereira, Vanessa Antunes e outros, estão sujas e danificadas (mas sem vestígios de repintes) e, por isso, muito esquecidas e ignoradas dos estudiosos, pelo que reclamam estudo integrado, consolidação, análises e tratamento laboratorial. Um projecto já entretanto aprovado, que envolve as equipa de técnicas da Associação TENTO, irá dar início, em boa hora, a esse processo.

O PINTOR GASPAR DIAS

     São sete pinturas a óleo sobre madeira, como se disse, outrora colocadas no retábulo-mor em três andares sobrepostos: desde o tempo de D. João V, quatro estão colocadas nas paredes laterais da capela-mor barroca, com molduras de talha apostas após o apeamento. A ANUNCIAÇÃO, a ADORAÇÃO DOS MAGOS (à esquerda), a ADORAÇÃO DOS PASTORES e a APARIÇÃO DE CRISTO À VIRGEM (à direita). No arco triunfal, vemos (muito alta) a RESSURREIÇÃO DE CRISTO. Na sacristia, enfim, encontram-se o PENTECOSTES e o MILAGRE EUCARÍSTICO DE SANTO ANTÓNIO, que são as de maior formato; estavam ao centro das duas fiadas principais do conjunto.

     Os saberes decorrentes do estudo histórico, artístico, iconográfico, iconológico e comparativo confirmam muitos indicadores e estilemas que aproximam estas sete pinturas da 'maneira' de Gaspar Dias, um grande pintor de Lisboa formado em Roma e em Parma, que foi influenciado pelos modelos da tradição rafaelesca e 'pierinesca', bem como por Parmigianino, e que actua entre 1555 e 1594, data provável da morte, e a quem se devem a famosa ‘Aparição do Anjo a São Roque’ da igreja de São Roque e duas das tábuas do retábulo da Luz de Carnide, onde o desenho de figura, a largueza dos panejamentos e a cenografia da arquitectura têm preciosismos de pincel, resoluções consistentes, pessoalismos de estilo e afinidades acentuadas com as tábuas do Varatojo.


Adoração dos Reis Magos

     Tratar-se-á, portanto, de obras devidas a Gaspar Dias, o pintor da Casa da Índia e Minas, muito estimado no seu tempo pela sua «delicadeza» e «grande maneira», qualidades que se destacam nestes painéis de final de carreira. Um pintor de alta craveira, actualíssimo de modelos e internacionalizado de formação. Pormenores como as peças de ourivesaria dos magos, a cesta de legumes dos pastores (uma verdadeira natureza-morta avant la lettre !), as belas arquitecturas clássicas dos fundos, os tapetes turcos, os elegantes panejamentos soprados, e a caracterização dos gestos, rostos e posturas, tudo atesta uma obra de altíssima qualidade e de inspiração italiana, que urge recuperar, estudar e divulgar na medida das suas valências.


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