A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO
DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO
Vítor
Serrão
Historiador
de Arte
Prof. Catedrático Emérito da Univ. de Lisboa
Retábulo barroco da capela mor
Acabam de passar quinhentos e cinquenta
anos sobre a entrada no convento do Varatojo, em 4 de Outubro de Fevereiro de
1474, dos primeiros catorze frades vindo do Convento de São Francisco de
Alenquer. A casa, que vira em 1470 colocada a primeira pedra, sob égide do
próprio D. Afonso V (na pessoa de seu filho D. Duarte), em cumprimento do voto
a Santo António e São Francisco se o auxiliassem nas conquistas do Norte de
África, abria então sob direcção do Provincial Franciscano Fr. João da Póvoa. O
rei dedicou grande afeição ao convento, onde com frequência se recolhia, o que
explica a qualidade das obras, desde o claustro gótico primevo, ao portal
gabletado da igreja, à célebre janela de canto, junto à portaria, que pertencia
aos aposentos régios, ao tecto de alfarge mudéjar da entrada, e outros
pormenores coevos da campanha de final do século XV.
A qualidade da arquitectura gótica, bem
como o recheio setecentista de talha, imaginária e azulejos, tem feito esquecer
o importante acervo de pintura que o convento ainda conserva. São cerca de
oitenta quadros, entre os quais se acham obras pouco conhecidas de Gaspar Dias,
Belchior de Matos, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, Vincenzo Baccherelli e Diogo
Magina, e vários «anónimos». A convite de Frei Vítor Melícias e da comunidade
franciscana, proferi uma conferência a 4 de Outubro passado, tendo tido
oportunidade para divulgar o resultado dos estudos preliminares sobre esse acervo,
que merece inventariação, análise científica, medidas de conservação e restauro
e, em último lugar, musealização condigna.
Impõe especial destaque o antigo retábulo
da capela-mor, custeado pela corte de Avis-Beja e dado a fazer à oficina de um
dos mais respeitados artistas de Lisboa no último terço do século XVI: o pintor
GASPAR DIAS. Como se sabe, a capela-mor antes da actual (que é barroca-pedrina e
de início do século XVIII) era uma 'reforma' do primitivo edifício gótico e foi
custeada pela Rainha regente D. Catarina de Áustria, já viúva de D. João III, cerca
de 1565-70. As obras prolongaram-se, por várias razões (a que a crise política
não foi alheia), e só em 1582 o retábulo estava pronto. O conjunto, constituído
por sete óptimas tábuas maneiristas, teve ainda financiamento de Filipe I de
Portugal, que chegou a visitar o convento. Até às remodelações barrocas que
geraram o actual retábulo (com talha de António Martins Calheiros e tela de
Vincenzo Baccherelli), o retábulo-mor reunia sete pinturas de notabilíssima
valia.
Estas pinturas, que mereceram já estudo a
autores como Adriano de Gusmão, Pedro Flor, Susana Flor, José Alberto Seabra,
Fernando Baptista Pereira, Vanessa Antunes e outros, estão sujas e danificadas
(mas sem vestígios de repintes) e, por isso, muito esquecidas e ignoradas dos
estudiosos, pelo que reclamam estudo integrado, consolidação, análises e
tratamento laboratorial. Um projecto já entretanto aprovado, que envolve as
equipa de técnicas da Associação TENTO, irá dar início, em boa hora, a esse
processo.
O PINTOR GASPAR DIAS
São sete pinturas a óleo sobre madeira,
como se disse, outrora colocadas no retábulo-mor em três andares sobrepostos: desde
o tempo de D. João V, quatro estão colocadas nas paredes laterais da capela-mor
barroca, com molduras de talha apostas após o apeamento. A ANUNCIAÇÃO, a
ADORAÇÃO DOS MAGOS (à esquerda), a ADORAÇÃO DOS PASTORES e a APARIÇÃO DE CRISTO
À VIRGEM (à direita). No arco triunfal, vemos (muito alta) a RESSURREIÇÃO DE
CRISTO. Na sacristia, enfim, encontram-se o PENTECOSTES e o MILAGRE EUCARÍSTICO
DE SANTO ANTÓNIO, que são as de maior formato; estavam ao centro das duas
fiadas principais do conjunto.
Os saberes decorrentes do estudo histórico,
artístico, iconográfico, iconológico e comparativo confirmam muitos indicadores
e estilemas que aproximam estas sete pinturas da 'maneira' de Gaspar Dias, um
grande pintor de Lisboa formado em Roma e em Parma, que foi influenciado pelos
modelos da tradição rafaelesca e 'pierinesca', bem como por Parmigianino, e que
actua entre 1555 e 1594, data provável da morte, e a quem se devem a famosa ‘Aparição
do Anjo a São Roque’ da igreja de São Roque e duas das tábuas do retábulo
da Luz de Carnide, onde o desenho de figura, a largueza dos panejamentos e a
cenografia da arquitectura têm preciosismos de pincel, resoluções consistentes,
pessoalismos de estilo e afinidades acentuadas com as tábuas do Varatojo.
Tratar-se-á, portanto, de obras devidas a
Gaspar Dias, o pintor da Casa da Índia e Minas, muito estimado no seu tempo
pela sua «delicadeza» e «grande maneira», qualidades que se
destacam nestes painéis de final de carreira. Um pintor de alta craveira,
actualíssimo de modelos e internacionalizado de formação. Pormenores como as
peças de ourivesaria dos magos, a cesta de legumes dos pastores (uma verdadeira
natureza-morta avant la lettre !), as belas arquitecturas clássicas dos
fundos, os tapetes turcos, os elegantes panejamentos soprados, e a caracterização
dos gestos, rostos e posturas, tudo atesta uma obra de altíssima qualidade e de
inspiração italiana, que urge recuperar, estudar e divulgar na medida das suas
valências.
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