VIR DOLORUM
UM QUADRO DE JOSEFA DE ÓBIDOS
EXPOSTO NO MUSEU MUNICIPAL
José Pedro Sobreiro
Desde o dia 25 de janeiro e
até 25 de junho está patente, numa sala do Museu Municipal Leonel Trindade, de
Torres Vedras, uma pintura pertencente Convento do
Varatojo, denominada Vir Dolorum, cuja autoria é atribuída à Oficina de Josefa
de Óbidos. O interesse da apresentação desta obra
reside, desde logo, na revelação desta surpreendente pintura daquela notável
artista portuguesa do séc. XVII, mas também na abordagem do trabalho de
restauro e no estudo interdisciplinar desenvolvido a partir do mesmo – de
técnicas, materiais, contexto histórico-artístico e expositivo – com a inclusão,
entre outros elementos, de um vídeo demonstrativo dos processos e das fases
desse procedimento.
O EVENTO
A realização deste importante trabalho ficou a dever-se ao
colectivo Associação TENTO, formado por
Daniela Morgadinho e Milene Santos, ambas com Licenciatura e Mestrado em
Conservação e Restauro, a operar no concelho de Torres Vedras e do qual já aqui
se deu notícia (edição de 30 /abril /2021). Tal projecto teve o apoio da Câmara Municipal
através do Regulamento Municipal de Atribuição de Apoios, o qual proporcionou a
verba que permitiu a realização do trabalho de restauro da pintura e do
respetivo estudo interdisciplinar.
Todo este trabalho contou com a supervisão da conservadora/restauradora
Dra. Vanessa Antunes, do Prof. Vítor Serrão e do Prof. Fernando António Batista
Pereira, individualidades de reconhecido prestígio nesta área da nossa história
da arte, que também assinaram a curadoria da exposição, assim como dinamizaram o
Congresso “Pelas Cores da Terra Mãos de
Josefa | Novas Possibilidades”, anteriormente realizado, no dia 20 de
janeiro, no auditório do Edifício dos Paços do Concelho. Neste congresso,
organizado pela Associação TENTO, enunciaram-se
novas possibilidades que a Oficina de Óbidos apresenta aos historiadores de
arte e conservadores-restauradores contemporâneos, para além do enquadramento
da obra de Josefa e de seu pai, Baltazar Gomes Figueira, no quadro do barroco
português.
A expressão em causa deriva da
tradução latina da Bíblia (Vulgata) de um texto do profeta Isaías:
«Era
desprezado e rejeitado dos homens; um varão de dores, e que tinha
experiência de enfermidades. Como um de quem os homens escondiam o rosto, era
ele desprezado, e dele não fizemos caso. Verdadeiramente foi ele quem tomou
sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o
reputávamos como aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi ferido por
causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo
que nos devia trazer a paz, caiu sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos nós
sarados. Todos nós temos andado desgarrados como ovelhas; temo-nos desviado
cada um para o seu caminho; e Jeová fez cair sobre ele a iniquidade de todos
nós.» (Isaías 53:3–6). Entendida como tradução visual do dogma da
Transubstanciação, segundo o qual o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue
de Cristo, no momento da consagração, a imagem do Vir Dolorum torna-se, assim, um símbolo eucarístico.
Esta tipologia devocional da
representação de Cristo em sofrimento confunde-se, de algum modo, com uma outra,
porventura mais conhecida na iconografia cristã, designada por Ecce Homo (“Eis o Homem”) frase
proferida por Pilatos, após ter mandado flagelar Jesus, na tentativa de acalmar
os ânimos inflamados da multidão que exigia a sua morte. A diferença é que nos
apresenta o Cristo ainda vivo, ao passo que o Vir Dolorum nos mostra o Senhor
ressuscitado.
O LOCAL
Esta pintura da igreja do convento do
Varatojo, encontrava-se, já no nosso tempo, em lugar diferente daquele para o
qual foi feita. O presente processo de investigação, liderado por Fernando
António Batista Pereira, situou-a no altar da segunda capela lateral à direita,
conhecido actualmente por altar de Nossa Senhora das Dores. A investigação
apurada com base documental permitiu datar o primitivo altar de 1680, confiado
à execução da oficina de Óbidos e que incluía a presente pintura, colocada por cima
do sacrário no primitivo retábulo, por estar relacionada com a eucaristia.
Mais tarde, em 1740, a capela foi
renovada com outro programa iconológico (o que hoje ali pode ser visto) por
sinal da uma das preciosidades artísticas da igreja do Varatojo. Tal programa manteve
a temática da dor, mas agora centrada na mãe de Cristo. É um espaço totalmente
preenchido com obras de arte, como é apanágio do pleno barroco, com o retábulo
em talha ocupando todo o fundo da capela e onde se destaca, entre várias, a
imagem central de Nossa Senhora das Dores com as sete espadas cravadas no peito.
Nas paredes laterais quatro painéis de azulejo representam alguns passos
dolorosos da vida de Maria, e em cima duas pinturas a óleo com temas da paixão. O quadro agora restaurado foi a
única peça que restou do primeiro retábulo, estando colocado noutro sítio da
igreja, onde passava despercebido. As restantes peças foram dispersadas por
várias igrejas e conventos da região. Uma dessas pinturas, denominada Menino
Jesus Salvador do Mundo, essa, sim, imediatamente reconhecível pelo estilo
inconfundível de Josefa, está atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga.
Com estas linhas sobre tão
interessante evento queremos felicitar, desde logo, as autoras do restauro,
cujo empenhado e rigoroso labor se vai já traduzindo num apreciável currículo,
e também sublinhar o carácter exemplar desta iniciativa que, envolvendo várias
entidades num trabalho de colaboração – as personalidades referidas e a Câmara
Municipal - se afirma como testemunho de uma prática desejável na preservação e
divulgação do nosso património artístico. E não
deixamos de assinalar que a presente mostra pode também prenunciar uma nova
valência da oferta do Museu Municipal – a realização de pequenas exposições temporárias
– que possam complementar a desejável retoma da exibição pública do seu espólio
permanente e, assim, ajudar a dinamizar o magnífico espaço do Convento da
Graça.
Referência:
folheto da exposição VIR DOLORUM
elaborado pelo Museu Municipal Leonel Trindade
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