11 agosto 2024

VIR DOLORUM, UM QUADRO DE JOSEFA DE ÓBIDOS EXPOSTO NO MUSEU MUNICIPAL / Jornal BADALADAS - 29 MARÇO 2024

 

VIR DOLORUM

UM QUADRO DE JOSEFA DE ÓBIDOS

EXPOSTO NO MUSEU MUNICIPAL

José Pedro Sobreiro

 


Desde o dia 25 de janeiro e até 25 de junho está patente, numa sala do Museu Municipal Leonel Trindade, de Torres Vedras, uma pintura pertencente Convento do Varatojo, denominada Vir Dolorum, cuja autoria é atribuída à Oficina de Josefa de Óbidos. O interesse da apresentação desta obra reside, desde logo, na revelação desta surpreendente pintura daquela notável artista portuguesa do séc. XVII, mas também na abordagem do trabalho de restauro e no estudo interdisciplinar desenvolvido a partir do mesmo – de técnicas, materiais, contexto histórico-artístico e expositivo – com a inclusão, entre outros elementos, de um vídeo demonstrativo dos processos e das fases desse procedimento.

             

O EVENTO

A realização deste importante trabalho ficou a dever-se ao colectivo Associação TENTO, formado por Daniela Morgadinho e Milene Santos, ambas com Licenciatura e Mestrado em Conservação e Restauro, a operar no concelho de Torres Vedras e do qual já aqui se deu notícia (edição de 30 /abril /2021). Tal projecto teve o apoio da Câmara Municipal através do Regulamento Municipal de Atribuição de Apoios, o qual proporcionou a verba que permitiu a realização do trabalho de restauro da pintura e do respetivo estudo interdisciplinar.

Todo este trabalho contou com a supervisão da conservadora/restauradora Dra. Vanessa Antunes, do Prof. Vítor Serrão e do Prof. Fernando António Batista Pereira, individualidades de reconhecido prestígio nesta área da nossa história da arte, que também assinaram a curadoria da exposição, assim como dinamizaram o Congresso “Pelas Cores da Terra Mãos de Josefa | Novas Possibilidades”, anteriormente realizado, no dia 20 de janeiro, no auditório do Edifício dos Paços do Concelho. Neste congresso, organizado pela Associação TENTO, enunciaram-se novas possibilidades que a Oficina de Óbidos apresenta aos historiadores de arte e conservadores-restauradores contemporâneos, para além do enquadramento da obra de Josefa e de seu pai, Baltazar Gomes Figueira, no quadro do barroco português.

A OBRA

A denominação Vir Dolorum – literalmente, Homem das Dores – constitui um dos temas da  paixão de Cristo, representado em expressão sofrida com os atributos da flagelação – a coroa de espinhos, a corda ao pescoço e o manto vermelho – mas também da crucificação – a exibição das chagas nas mãos que se mostram de frente para o observador, destacando as feridas causadas pelos pregos na cruz. Trata-se, pois, de uma representação após a morte, ou, de um Cristo ressuscitado. Originária da arte bizantina, foi adoptada pela arte ocidental em finais da Idade Média, sendo muito divulgada em gravuras já no séc. XVI. E terá sido uma destas gravuras, originárias do centro da Europa, que terá servido de base à pintura em causa. Normalmente a figura de Jesus é apresentada inteira, mas a pintora de Óbidos optou aqui por meio corpo. O fundo negro reforça o dramatismo da figura, notável de expressão, algo estilizada de forma a acentuar a expressão de sofrimento.   Trata-se de uma obra singular e inigualável da única pintura conhecida da Oficina de Óbidos relativa à temática da emoção na dor.

A expressão em causa deriva da tradução latina da Bíblia (Vulgata) de um texto do profeta Isaías:

              «Era desprezado e rejeitado dos homens; um varão de dores, e que tinha experiência de enfermidades. Como um de quem os homens escondiam o rosto, era ele desprezado, e dele não fizemos caso. Verdadeiramente foi ele quem tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos como aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos devia trazer a paz, caiu sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos nós sarados. Todos nós temos andado desgarrados como ovelhas; temo-nos desviado cada um para o seu caminho; e Jeová fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós.» (Isaías 53:3–6).  Entendida como tradução visual do dogma da Transubstanciação, segundo o qual o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo, no momento da consagração, a imagem do Vir Dolorum torna-se, assim, um símbolo eucarístico.

Esta tipologia devocional da representação de Cristo em sofrimento confunde-se, de algum modo, com uma outra, porventura mais conhecida na iconografia cristã, designada por Ecce Homo (“Eis o Homem”) frase proferida por Pilatos, após ter mandado flagelar Jesus, na tentativa de acalmar os ânimos inflamados da multidão que exigia a sua morte. A diferença é que nos apresenta o Cristo ainda vivo, ao passo que o Vir Dolorum nos mostra o Senhor ressuscitado.

O LOCAL 

Esta pintura da igreja do convento do Varatojo, encontrava-se, já no nosso tempo, em lugar diferente daquele para o qual foi feita. O presente processo de investigação, liderado por Fernando António Batista Pereira, situou-a no altar da segunda capela lateral à direita, conhecido actualmente por altar de Nossa Senhora das Dores. A investigação apurada com base documental permitiu datar o primitivo altar de 1680, confiado à execução da oficina de Óbidos e que incluía a presente pintura, colocada por cima do sacrário no primitivo retábulo, por estar relacionada com a eucaristia.

Mais tarde, em 1740, a capela foi renovada com outro programa iconológico (o que hoje ali pode ser visto) por sinal da uma das preciosidades artísticas da igreja do Varatojo. Tal programa manteve a temática da dor, mas agora centrada na mãe de Cristo. É um espaço totalmente preenchido com obras de arte, como é apanágio do pleno barroco, com o retábulo em talha ocupando todo o fundo da capela e onde se destaca, entre várias, a imagem central de Nossa Senhora das Dores com as sete espadas cravadas no peito. Nas paredes laterais quatro painéis de azulejo representam alguns passos dolorosos da vida de Maria, e em cima duas pinturas a óleo com temas da paixão.                                                                                                                         O quadro agora restaurado foi a única peça que restou do primeiro retábulo, estando colocado noutro sítio da igreja, onde passava despercebido. As restantes peças foram dispersadas por várias igrejas e conventos da região. Uma dessas pinturas, denominada Menino Jesus Salvador do Mundo, essa, sim, imediatamente reconhecível pelo estilo inconfundível de Josefa, está atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga.

Com estas linhas sobre tão interessante evento queremos felicitar, desde logo, as autoras do restauro, cujo empenhado e rigoroso labor se vai já traduzindo num apreciável currículo, e também sublinhar o carácter exemplar desta iniciativa que, envolvendo várias entidades num trabalho de colaboração – as personalidades referidas e a Câmara Municipal - se afirma como testemunho de uma prática desejável na preservação e divulgação do nosso património artístico.                                   E não deixamos de assinalar que a presente mostra pode também prenunciar uma nova valência da oferta do Museu Municipal – a realização de pequenas exposições temporárias – que possam complementar a desejável retoma da exibição pública do seu espólio permanente e, assim, ajudar a dinamizar o magnífico espaço do Convento da Graça.

Referência: folheto da exposição VIR DOLORUM elaborado pelo Museu Municipal Leonel Trindade

 



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