O jornal Badaladas faz parte do Património Cultural de Torres Vedras. Por isso, publiquei, em 6 de Dezembro, este texto:
ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA E DIVULGAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL DE TORRES VEDRAS
08 dezembro 2024
JORNAL BADALADAS EM PERIGO - CARTA ABERTA AO PADRE JOAQUIM MARIA DE SOUSA
PASSOS EM VOLTA - UM LEGADO SILENCIOSO
CEMITÉRIO DE S. JOÃO, em TORRES VEDRAS
Ontem, 7 de Dezembro, a Associação do Património de Torres Vedras (ADDPCTV), em parceria com o sector de Turismo da Câmara Municipal de Torres Vedras - dinamizado pela Ângela Vitória - orientou mais uma visita guiada. Manhã chuvosa, que não amedrontou os 20 interessados participantes.
A introdução, à entrada do cemitério, foi feita pela Ana Rita Pereira, da Direcção da Associação, seguindo de perto o artigo que publicara, uma semana antes, no jornal Badaladas.
Já dentro do recinto, Joaquim Moedas Duarte, também da Direcção, guiou os participantes até junto das campas e jazigos de torrienses ilustres que deixaram um rasto indelével nas nossas memórias:
Fernando Vicente, resistente anti-fascista; Maria da Conceição Barreto Bastos, benemérita fundadora do Lar de S. José; António Hipólito, Francisco António da Silva e Francisco Xavier Damião, os três "latoeiros prodigiosos", fundadores das três maiores empresas torrienses do séc. XX; Vasco Parreira, Gerente da Casa Hipólito; Leonel Trindade, arqueólogo e director do Museu Municipal; Júlio Vieira, autor de celebrado livro "Torres Vedras Antiga e Moderna".
Visitámos também os talhões dos Bombeiros Voluntários de Torres Vedras e dos Franciscanos do Convento do Varatojo.
As fotos ilustram um pouco da actividade. O mau tempo impediu a tradicional foto do grupo.
UM OLHAR SOBRE O CEMITÉRIO DE S. JOÃO - PAPEL NA HISTÓRIA LOCAL E PARTICULARIDADES - Jornal BADALADAS 29 NOVEMBRO 2024
Um olhar sobre o cemitério de
São João – papel na história local e particularidades
Ana Rita Pereira
(Membro da Direcção da ADDPCTV)
Vamos
abordar um pouco da história daquele que foi, durante mais de um século, o
“Cemitério da Vila”, o cemitério de São João, e mostrar como este pode ser
olhado, para além de um sítio de dor, como uma representação da história da
localidade.
Nas palavras de
Fernando Catroga, «todo e qualquer cemitério (…) deve ser visto como um lugar
(…) de reprodução simbólica do universo social». Quer através da sua disposição
e dos materiais utilizados nos jazigos, quer dos próprios regulamentos, é
possível entender a hierarquia, as dinâmicas e as normas sociais e políticas de
cada época, constituindo desta forma uma memória da comunidade e da sua
história com a qual podemos aprender muito.
A criação do cemitério de S. João veio na sequência das Leis de
Saúde Pública do século XIX. O governo de Costa Cabral, iniciado
em 1842, ficou marcado por medidas transformadoras ao nível administrativo, da
instrução e da saúde públicas. No âmbito da saúde pública, destaque para o Decreto de 18 de setembro de 1844 que proibiu
definitivamente os enterramentos dentro de igrejas ou capelas, nos povoamentos
onde existisse cemitério público e requeria a aprovação de um delegado de saúde
para a realização dos mesmos. Esta
alteração, mais do que uma inovadora medida administrativa, representava grande
mudança de costumes. Até então havia uma divisão clara entre a esfera da Igreja
e a esfera pública, como era o caso dos enterramentos, que sempre se realizavam
dentro das igrejas ou em volta delas, em território sagrado e limitado aos seus
crentes. Com aquela lei, o Estado passou a interferir, obrigando à criação de
um local próprio para as inumações – um cemitério público – destinado a
qualquer tipo de pessoa, independentemente da religião praticada ou da forma de
morte, o qual devia situar-se longe do centro das localidades. O enterramento passou
a ser pago, assim como o serviço religioso.
PRIMEIRO CEMITÉRIO
PÚBLICO EM TORRES VEDRAS
Até à criação daquela
lei, em Torres Vedras os enterramentos eram realizados no cemitério da
Misericórdia, situado entre a igreja e a rua homónima, na Igreja de São Pedro e
Santiago e nos adros adjacentes, espaços sagrados. Tornou-se necessário criar
um cemitério público e, para isso, havia que definir um lugar apropriado. A cerca da Ermida de São João,
aquando das invasões francesas, fora cemitério das tropas francesas e inglesas,
em 1807 e 1811, respetivamente. Situada
num campo a nascente da vila, parecia ter as condições necessárias, mas a Ordem
Terceira, proprietária do terreno, protelou a sua construção, pois misturava católicos com crentes de outras religiões.
Procuraram-se outras soluções, como a
cerca e, até, o claustro do extinto Convento da Graça, mas a falta de
condições levou ao retorno da ideia inicial.
Em finais de 1848 o novo cemitério estava concluído, mas o facto de ter
sido lugar de enterramentos dos ingleses protestantes
atrasou a sua utilização, que desagradava à população. Só depois da cerimónia
religiosa de sagração, o cemitério pôde ser utilizado e o primeiro enterramento
fez-se em 30 de junho de 1849. O cemitério de São João passou a ser oficialmente
o «cemitério das 4 freguesias da vila», como está descrito no Quesitos em relação aos cemitérios públicos existentes no
concelho. No entanto, ocorreu ainda um
conflito com a Santa Casa da Misericórdia que continuava a querer para o seu cemitério
a exclusividade dos enterramentos dos falecidos no hospital, o que levou a que
a situação demorasse a estabilizar.
A
administração do cemitério de São João ficou oficialmente a cargo da Ordem
Terceira a partir de outubro de 1849, pois já era proprietária do terreno desde
1805, por Alvará régio. Apenas no final do século XIX a administração passou
para a Câmara Municipal. Na Sessão da
Câmara Municipal de 14 de junho de 1890 foi apresentado o projeto do
regulamento do cemitério municipal e em 2 de janeiro
de 1893 já existia uma vereação responsável pela inspeção dos «Impostos,
açougues e cemitérios».
Ao longo do século XX e até hoje, a administração do cemitério tem
oscilado entre a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, estando neste momento
a cargo da Junta de Freguesia de Santa Maria, São Pedro e Matacães.
O cemitério reflete o crescimento da vila ao longo dos anos, pois
também este teve necessidade de se expandir. Em 17 de maio de 1884 foi comprado
um terreno perto do cemitério para garantir o seu alargamento, e em 1974, foi
aprovada a expropriação de territórios na zona de Arenes para a construção do
novo cemitério municipal – que viria a ser o cemitério de São Miguel – devido
ao estado de saturação do cemitério de São João.
Através da observação direta, da consulta das plantas presentes no
Arquivo Municipal de Torres Vedras e dos próprios regulamentos, verificamos que
o cemitério de São João é constituído por sepulturas de planta retangular e
jazigos, ambos classificados como temporários ou permanentes – sendo estes
segundos pertencentes a famílias. Como equipamentos, inicialmente tinha um
espaço para depósito de finados, uma casa destinada ao serviço médico-legal,
uma casa para o guarda do cemitério e a sua família, uma casa de depósito e uma
capela. Na área de inumações, há talhões específicos como os destinados a
bombeiros, padres e crianças. Os regulamentos revelam-se uma fonte de maior
importância para este estudo pois, através deles, é possível perceber a
organização das sepulturas e dos talhões, as regras de funcionamento do
cemitério, dos enterramentos e as coimas para os infratores. Definem-se as
características permitidas de embelezamento dos jazigos e das sepulturas,
apresentando em contraponto as que não são consentidas, como os «epitáfios que
exaltem ideias políticas ou possam ser desrespeitosos». No final do Regulamento
do Cemitério Municipal de 1923, encontramos o parecer de três médicos em
como aprovam aquele regulamento.
Os elementos decorativos e as características próprias dos jazigos
e das sepulturas permitem recolher informações sobre as profissões e/ou o papel
que o defunto teve em vida. Veja-se o já mencionado talhão dos padres, que se
separa dos demais por uma vedação e um pequeno portão decorado com uma
ampulheta com asas de anjo, como que simbolizando a passagem do tempo; ou o
talhão dos bombeiros que está acima de degraus e com uma decoração no meio com
a palavra “Bombeiros” inscrita. O jazigo do comendador António Hipólito é
decorado com uma figura feminina simbólica da Indústria, relacionando-se assim
com a sua profissão.
Ao longo do cemitério é possível encontrar várias sepulturas em
que a imagem escolhida para colocar na lápide é do defunto com a farda da sua
profissão (exemplo polícias, combatentes) ou então a forma de apresentação
remete para sua profissão como é o caso de José Maria Pinheiro da Silva Jr que
na sua descrição surge como “Bacharel formado em Direito” ou do “MAESTRO
Francisco Xavier de Melo” nomeado desta mesma forma com a profissão incluída no
seu nome.
Em suma, a evolução das formas e locais de enterramento,
permitem-nos observar as mudanças de mentalidade e medidas higiénico-sanitárias
no concelho e do país. Por um lado, dificuldade de estabilização do cemitério
público e a sua administração na última metade do século XIX revelam a
instabilidade política da época e a evolução da relação entre o Estado e a
Igreja. Por outro, a necessidade de
alargar o terreno demonstra as alterações demográficas da vila. As diferenças
dos materiais e da decoração utilizados nas sepulturas e jazigos são sinais
reveladores das diferenças de estatuto social e das profissões.
Referências: Arquivo Municipal de Torres Vedras (AMTV) documentação
sobre os cemitérios; ASSUNÇÃO, Ana Paula de Sousa , «O valor da transfiguração
do cemitério em produto turístico. Cemitério Municipal de Loures-estudo de
caso.», Tese de Doutoramento em Turismo, Universidade de Lisboa, Lisboa,
2022;CATROGA, Fernando,«O culto dos mortos como uma poética da ausência» in
ArtCultura, n.20, Janeiro, Junho,2010,pp.163 a 182; FONSECA,
Teresa «A Guerra Civil de 1846-47 e a Administração Municipal de
Montemor-o-Novo» in Almansor, Revista de Cultura, nº1, 2ª série, 2002,
pp. 197 a 208; MATOS, Venerando Aspra de , «Elementos para o estudo da
Saúde Pública e da criação dos cemitérios públicos em Torres Vedras no século
XIX» in BARBOSA, Pedro Gomes & all ,
Turres Veteras VI, História da Morte ,Câmara Municipal de Torres
Vedras Setor da Cultura, Instituto de
Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, Torres Vedras,
2004,pp.133 a 152; Blog Vedrografias , disponível em https://vedrografias2.blogspot.com/2021/03/torres-vedras-no-seculo-xix-o-tempo-e-o.html,
Site
Parlamento.pt,
disponível emhttps://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Revolta-Maria-da-Fonte.aspx.
Monumento funerário mais antigo do cemitério de S. João, em memória de António Pedro Ferreira Campello, benemérito da St. Casa da Misericórdia, falecido em 1858.
A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO - Jornal BADALADAS - 25 OUT 2024
A PINTURA ANTIGA NO CONVENTO
DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO
Vítor
Serrão
Historiador
de Arte
Prof. Catedrático Emérito da Univ. de Lisboa
Retábulo barroco da capela mor
Acabam de passar quinhentos e cinquenta
anos sobre a entrada no convento do Varatojo, em 4 de Outubro de Fevereiro de
1474, dos primeiros catorze frades vindo do Convento de São Francisco de
Alenquer. A casa, que vira em 1470 colocada a primeira pedra, sob égide do
próprio D. Afonso V (na pessoa de seu filho D. Duarte), em cumprimento do voto
a Santo António e São Francisco se o auxiliassem nas conquistas do Norte de
África, abria então sob direcção do Provincial Franciscano Fr. João da Póvoa. O
rei dedicou grande afeição ao convento, onde com frequência se recolhia, o que
explica a qualidade das obras, desde o claustro gótico primevo, ao portal
gabletado da igreja, à célebre janela de canto, junto à portaria, que pertencia
aos aposentos régios, ao tecto de alfarge mudéjar da entrada, e outros
pormenores coevos da campanha de final do século XV.
A qualidade da arquitectura gótica, bem
como o recheio setecentista de talha, imaginária e azulejos, tem feito esquecer
o importante acervo de pintura que o convento ainda conserva. São cerca de
oitenta quadros, entre os quais se acham obras pouco conhecidas de Gaspar Dias,
Belchior de Matos, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, Vincenzo Baccherelli e Diogo
Magina, e vários «anónimos». A convite de Frei Vítor Melícias e da comunidade
franciscana, proferi uma conferência a 4 de Outubro passado, tendo tido
oportunidade para divulgar o resultado dos estudos preliminares sobre esse acervo,
que merece inventariação, análise científica, medidas de conservação e restauro
e, em último lugar, musealização condigna.
Impõe especial destaque o antigo retábulo
da capela-mor, custeado pela corte de Avis-Beja e dado a fazer à oficina de um
dos mais respeitados artistas de Lisboa no último terço do século XVI: o pintor
GASPAR DIAS. Como se sabe, a capela-mor antes da actual (que é barroca-pedrina e
de início do século XVIII) era uma 'reforma' do primitivo edifício gótico e foi
custeada pela Rainha regente D. Catarina de Áustria, já viúva de D. João III, cerca
de 1565-70. As obras prolongaram-se, por várias razões (a que a crise política
não foi alheia), e só em 1582 o retábulo estava pronto. O conjunto, constituído
por sete óptimas tábuas maneiristas, teve ainda financiamento de Filipe I de
Portugal, que chegou a visitar o convento. Até às remodelações barrocas que
geraram o actual retábulo (com talha de António Martins Calheiros e tela de
Vincenzo Baccherelli), o retábulo-mor reunia sete pinturas de notabilíssima
valia.
Estas pinturas, que mereceram já estudo a
autores como Adriano de Gusmão, Pedro Flor, Susana Flor, José Alberto Seabra,
Fernando Baptista Pereira, Vanessa Antunes e outros, estão sujas e danificadas
(mas sem vestígios de repintes) e, por isso, muito esquecidas e ignoradas dos
estudiosos, pelo que reclamam estudo integrado, consolidação, análises e
tratamento laboratorial. Um projecto já entretanto aprovado, que envolve as
equipa de técnicas da Associação TENTO, irá dar início, em boa hora, a esse
processo.
O PINTOR GASPAR DIAS
São sete pinturas a óleo sobre madeira,
como se disse, outrora colocadas no retábulo-mor em três andares sobrepostos: desde
o tempo de D. João V, quatro estão colocadas nas paredes laterais da capela-mor
barroca, com molduras de talha apostas após o apeamento. A ANUNCIAÇÃO, a
ADORAÇÃO DOS MAGOS (à esquerda), a ADORAÇÃO DOS PASTORES e a APARIÇÃO DE CRISTO
À VIRGEM (à direita). No arco triunfal, vemos (muito alta) a RESSURREIÇÃO DE
CRISTO. Na sacristia, enfim, encontram-se o PENTECOSTES e o MILAGRE EUCARÍSTICO
DE SANTO ANTÓNIO, que são as de maior formato; estavam ao centro das duas
fiadas principais do conjunto.
Os saberes decorrentes do estudo histórico,
artístico, iconográfico, iconológico e comparativo confirmam muitos indicadores
e estilemas que aproximam estas sete pinturas da 'maneira' de Gaspar Dias, um
grande pintor de Lisboa formado em Roma e em Parma, que foi influenciado pelos
modelos da tradição rafaelesca e 'pierinesca', bem como por Parmigianino, e que
actua entre 1555 e 1594, data provável da morte, e a quem se devem a famosa ‘Aparição
do Anjo a São Roque’ da igreja de São Roque e duas das tábuas do retábulo
da Luz de Carnide, onde o desenho de figura, a largueza dos panejamentos e a
cenografia da arquitectura têm preciosismos de pincel, resoluções consistentes,
pessoalismos de estilo e afinidades acentuadas com as tábuas do Varatojo.
Tratar-se-á, portanto, de obras devidas a
Gaspar Dias, o pintor da Casa da Índia e Minas, muito estimado no seu tempo
pela sua «delicadeza» e «grande maneira», qualidades que se
destacam nestes painéis de final de carreira. Um pintor de alta craveira,
actualíssimo de modelos e internacionalizado de formação. Pormenores como as
peças de ourivesaria dos magos, a cesta de legumes dos pastores (uma verdadeira
natureza-morta avant la lettre !), as belas arquitecturas clássicas dos
fundos, os tapetes turcos, os elegantes panejamentos soprados, e a caracterização
dos gestos, rostos e posturas, tudo atesta uma obra de altíssima qualidade e de
inspiração italiana, que urge recuperar, estudar e divulgar na medida das suas
valências.