Os Monumentos Nacionais não têm de ser todos pousadas e hotéis sem charme
JOSÉ AGUIAR, Arquitecto
(Pedra & Cal n.° 46 Abril. Maio . Junho 2010)
Como se estivéssemos no grau zero de uma (desadequada) política de gestão patrimonial passa-se, perversa mas constantemente, para a opinião pública a ideia de que todos os fortes, antigos conventos e palácios têm de ser hotéis de charme ou (desmesuradas) pousadas.
A conversão de monumentos nacionais em pousadas (e agora os "hotéis de charme" da moda) foi uma das acções historicamente mais destrutivas -dos valores estéticos, arquitectónicos e documentais - e socialmente estigmatizadas da nossa tradição restauradora. Essa história negra deve ser relembrada agora que se multiplicam as vendas, ou cedências, de monumentos nacionais na posse do Estado para usos privados com fins lucrativos que excluem, ou limitam fortemente, a fruição e o acesso de todos os cidadãos a estes recursos culturais e identitários (de todos). Muitas vezes, o Estado gasta, na conservação e no restauro destes monumentos, recursos financeiros (públicos) extremamente significativos, com verbas próprias ou europeias, e recorre "por urgência do interesse público" a adjudicações ou cedências por concurso limitado (que favorecem sempre os mesmos grupos).
Tenho na minha frente um recorte do Jornal Público (de 25 de Maio de 2010) que questiona o negócio da cedência a privados, e por setenta e cinco anos, do Convento da Graça em Lisboa (monumento nacional e do Estado), mais uma vez para um novo hotel, e porque essa cedência impede o usufruto público. No mesmo jornal, o melhor e mais premiado arquitecto do mundo, o arquitecto Alvaro Siza Vieira, declara ter sido afastado pela ENATUR do projecto de conversão da Fortaleza de Peniche para pousada, por não concordar com uma duplicação do número de quartos originalmente previstos, decisão que implicaria o aumento do número de pisos da unidade a construir, ultrapassando a volumetria do forte, numa "monstruosidade" que afectaria decisivamente a leitura e apresentação final do monumento (que é nacional, sublinhe-se). Alvaro Siza alertava para as fortes pressões que iremos assistir para aumentar a volumetria deste projecto e para privatizar espaços com destino público. E é sempre assim, sublinhe-se, basta estudar outros processos similares para rapidamente percebermos como - aceitando acriticamente estas pressões -rapidamente se passa dos cinquenta para os setenta quartos previstos, pela "bondade" de não estragar, e se termina nos cem quartos, agora sempre exigidos pela "moderna economia hoteleira". Siza - como diversos especialistas em conservação já o disseram também - declara, ainda, que a sua conversão para hotel não lhe parece ser o melhor destino a dar à Fortaleza de Peniche, pela dificuldade de compatibilizar o programa exigente destas novas funções (um hotel exige a instalação de equipamentos complexos, de verdadeiras pequenas fábricas para tratamento de roupas ou produção de comidas) com a preservação das memórias histórica e política essenciais deste espaço. A defesa do interesse público nestes processos de gestão patrimonial fracassa constantemente. Lembro-me do mal sucedido projecto de restauro do Santuário da Nossa Senhora do Cabo, um projecto sensível e atento da ex-DGEMN e com a participação do arquitecto Vítor Mestre, que fracassou porque o promitente gestor do espaço (uma empresa pública criada para maximizar o interesse público) não aceita incluir esta essencial vocação pública do santuário (que existe devido a uma extraordinária manifestação de celebração religiosa e popular) pretendendo-o para usos mais encerrados, exclusivos e privados.
Para nossa desgraça, os nossos gestores do património nacional esquecem, constantemente, os objectivos essenciais das políticas públicas para a conservação de monumentos (sobretudo os "nacionais", i.e., de que: - o direito do usufruto público deve prevalecer sobre os interesses privados (como se defende desde a Carta de Atenas do Restauro de 1931);
- os programas de utilização dos monumentos devem ser determinados pela organização e estrutura dos espaços e das construções históricas e não pelo seu inverso; i.e., é eticamente inadmissível obrigar os monumentos históricos a alterações profundas, que destroem elementos materiais autênticos e significantes para alcançar os níveis de desempenho e de uso desejáveis pelos utilizadores das confortabilíssimas "pousadas" (como estabeleceu a Carta de Veneza do Restauro, de 1964). O maior problema que enfrenta, hoje, o património português não é um problema de projecto de Arquitectura - de bons ou maus projectos - mas resulta da imposição de maus programas, de usos desadequados e, sobretudo, de uma danosa e incrível mediocridade na gestão da coisa e do interesse público. Consulte-se a recente tese de doutoramento de José Maria Lobo de Carvalho (1) para se perceber como é desadequada, em termos de conservação, e economicamente insustentável a nossa actual política patrimonial, e de como outras nações, há muito, conseguiram modelos mais adequados - como a Grã-Bretanha, que entrega a estruturas privadas (a English Heritage) a gestão dos seus monumentos nacionais, impondo-lhes o dever de salvaguardar o interesse público e o acesso de todos, obtendo excelentes resultados económicos e sem a absurda necessidade de converter TODOS os monumentos em POUSADAS (ou em hotéis de charme sem o menor charme... cultural)!
NOTA
1 José Maria da Cunha Rego Lobo de Carvalho, Conservação do Património. Políticas de sustentabilidade económica (orientação do Professor Catedrático José Lamas). Lisboa: IST, 2009.
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