01 agosto 2010

UM TEXTO PERTINENTE

Da revista PEDRA & CAL nº 46, de Junho 2010:


Os Monumentos Nacionais não têm de ser todos pousadas e hotéis sem charme


JOSÉ AGUIAR, Arquitecto
(Pedra & Cal n.° 46 Abril. Maio . Junho 2010)

Como se estivéssemos no grau zero de uma (desadequada) política de gestão patrimonial passa-se, perversa mas constantemente, para a opinião públi­ca a ideia de que todos os fortes, anti­gos conventos e palácios têm de ser hotéis de charme ou (desmesuradas) pousadas.
A conversão de monumentos nacio­nais em pousadas (e agora os "hotéis de charme" da moda) foi uma das ac­ções historicamente mais destrutivas -dos valores estéticos, arquitectónicos e documentais - e socialmente estigma­tizadas da nossa tradição restauradora. Essa história negra deve ser relembrada agora que se multiplicam as vendas, ou cedências, de monumentos nacionais na posse do Estado para usos privados com fins lucrativos que excluem, ou limitam fortemente, a fruição e o acesso de todos os cidadãos a estes recursos culturais e identitários (de todos). Muitas vezes, o Estado gasta, na con­servação e no restauro destes monu­mentos, recursos financeiros (públi­cos) extremamente significativos, com verbas próprias ou europeias, e recor­re "por urgência do interesse público" a adjudicações ou cedências por concur­so limitado (que favorecem sempre os mesmos grupos).
Tenho na minha frente um recorte do Jornal Público (de 25 de Maio de 2010) que questiona o negócio da cedência a privados, e por setenta e cinco anos, do Convento da Graça em Lisboa (monumento nacional e do Estado), mais uma vez para um novo hotel, e porque essa cedência impede o usufruto público. No mesmo jornal, o melhor e mais premiado arquitecto do mundo, o ar­quitecto Alvaro Siza Vieira, declara ter sido afastado pela ENATUR do projecto de conversão da Fortaleza de Peniche para pousada, por não concordar com uma duplicação do número de quartos originalmente pre­vistos, decisão que implicaria o au­mento do número de pisos da unida­de a construir, ultrapassando a volu­metria do forte, numa "monstruosi­dade" que afectaria decisivamente a leitura e apresentação final do monu­mento (que é nacional, sublinhe-se). Alvaro Siza alertava para as fortes pres­sões que iremos assistir para aumentar a volumetria deste projecto e para pri­vatizar espaços com destino público. E é sempre assim, sublinhe-se, basta es­tudar outros processos similares para rapidamente percebermos como - acei­tando acriticamente estas pressões -rapidamente se passa dos cinquenta pa­ra os setenta quartos previstos, pela "bondade" de não estragar, e se termina nos cem quartos, agora sempre exigidos pela "moderna economia hoteleira". Siza - como diversos especialistas em conservação já o disseram também - de­clara, ainda, que a sua conversão para hotel não lhe parece ser o melhor des­tino a dar à Fortaleza de Peniche, pela dificuldade de compatibilizar o pro­grama exigente destas novas funções (um hotel exige a instalação de equi­pamentos complexos, de verdadeiras pequenas fábricas para tratamento de roupas ou produção de comidas) com a preservação das memórias histórica e política essenciais deste espaço. A defesa do interesse público nestes processos de gestão patrimonial fracas­sa constantemente. Lembro-me do mal sucedido projecto de restauro do San­tuário da Nossa Senhora do Cabo, um projecto sensível e atento da ex-DGEMN e com a participação do arquitecto Ví­tor Mestre, que fracassou porque o promitente gestor do espaço (uma em­presa pública criada para maximizar o interesse público) não aceita incluir esta essencial vocação pública do san­tuário (que existe devido a uma extra­ordinária manifestação de celebração religiosa e popular) pretendendo-o pa­ra usos mais encerrados, exclusivos e privados.
Para nossa desgraça, os nossos gesto­res do património nacional esquecem, constantemente, os objectivos essen­ciais das políticas públicas para a con­servação de monumentos (sobretudo os "nacionais", i.e., de que: - o direito do usufruto público deve prevalecer sobre os interesses privados (como se defende desde a Carta de Atenas do Restauro de 1931);
- os programas de utilização dos mo­numentos devem ser determinados pe­la organização e estrutura dos espaços e das construções históricas e não pelo seu inverso; i.e., é eticamente inadmis­sível obrigar os monumentos históri­cos a alterações profundas, que destro­em elementos materiais autênticos e significantes para alcançar os níveis de desempenho e de uso desejáveis pelos utilizadores das confortabilíssimas "pousadas" (como estabeleceu a Carta de Veneza do Restauro, de 1964). O maior problema que enfrenta, hoje, o património português não é um pro­blema de projecto de Arquitectura - de bons ou maus projectos - mas resulta da imposição de maus programas, de usos desadequados e, sobretudo, de uma danosa e incrível mediocridade na gestão da coisa e do interesse público. Consulte-se a recente tese de doutora­mento de José Maria Lobo de Carvalho (1) para se perceber como é desadequada, em termos de conservação, e economi­camente insustentável a nossa actual política patrimonial, e de como outras nações, há muito, conseguiram mode­los mais adequados - como a Grã-Bretanha, que entrega a estruturas priva­das (a English Heritage) a gestão dos seus monumentos nacionais, impondo-lhes o dever de salvaguardar o in­teresse público e o acesso de todos, obtendo excelentes resultados econó­micos e sem a absurda necessidade de converter TODOS os monumentos em POUSADAS (ou em hotéis de charme sem o menor charme... cultural)!

NOTA
1 José Maria da Cunha Rego Lobo de Carvalho, Conservação do Património. Políticas de susten­tabilidade económica (orientação do Professor Catedrático José Lamas). Lisboa: IST, 2009.


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