26 agosto 2010

A PROPÓSITO DA A8 EM OBRAS



Auto-estrada pode ser mais do que ligação viária se na sua construção se tiverem em conta certos elementos. Podem parecer pormenores mas fazem a diferença. É o que nos diz o Arq. José Aguiar neste oportuno artigo. Lembrámo-nos dele numa altura em que a A8, que serve Torres Vedras, está em obras de requalificação. Paisagem é Património. A defender!


Paisagens encapsuladas!*
JOSÉ AGUIAR, Arquitecto

Quase todos chegamos a estágios na vida onde, pouco a pouco, res­surgem as (grandes) lições do início (o eterno retorno). Depois de partir, cada vez mais me lembro das lições de Távora. Ocorre-me uma em par­ticular, em que nos contou, no nosso primeiro ano de arquitectura, das auto-estradas de outros países, mais cultos, desenhadas em função do paisagismo do seu território, das belas linhas de vista que guiaram o serpentear das estradas (mais do que as velocidades previstas), com obras de arte (viadutos altos) nas montanhas, criando beleza mas dei­xando passar os ventos e os animais. Sabemos todos como o desenho das nossas apressadas vias e infra-estru-turas foi diverso desse, construindo más e feias cidades. Neste enorme processo de construção, feito sem desenho (ou com mau desenho), surgiu recentemente uma nova e triste novidade.
Palas acústicas, homogéneas e gigan­tescas (por vezes com mais de qua­tro metros), de enorme banalidade formal (perfis de alumínio e placas metálicas sempre com os mesmos verdes, amarelos e ocres encapsu­lados) começaram a enclausurar as paisagens de norte a sul, perto das grandes cidades, numa gigantesca teia igual, um canal interminável de fealdade e triste tristeza. Tratamos como se fossem burros com palas os condutores a quem, além das bichas no caminho, já não resta sequer o sobressalto estético da luz do sol-pôr sobre o Tejo, a surpresa das flores nas colinas do Sul (forradas este ano a cor azul, no outro brancas, amanhã amarelas), o sobressalto das escuras fragas, ou o mosaico verde do Norte, para tornar um pouco mais feliz o repetido caminho.
As rápidas placas construíram um feio e gigantesco canal, inferno dos tantos carros, e tristeza estética de uma suburbanidade que foi esten­dida, num repente, por todo o país. Gabamos aos outros a beleza e a diversidade do país, mas homoge­neizámos a paisagem com estas pla­cas verdes, amarelas e ocres, mais ou menos misturadas, todas já sujas do pó dos metais e dos pneus, ou já emporcalhadas pela fealdade da escrita vandálica.
Há sempre, para estes fenómenos, motivos nobres: poluições acústi­cas; ouvidos fartos. Mas, porque raio resolver a poluição acústica obrigou a esta terrível poluição visual?
Enfim, até suspeito que sei. Algures há (sempre) um regulamento novo, trazido à pressa da Comunidade Europeia, sem leitura crítica, sim­plesmente plasmado. Seguem-se empresas de professores-investi-gadores-consultores, que soube­ram mais depressa que os outros, que traduziram, adaptando aos seus estreitos interesses, e que monta­ram o esquema das soluções rápi­das e demasiado feias, que tornam alguns - muito poucos - mais ricos e todos mais pobres. Os tipos do património dizem: agora já não discutimos só monumentos, nem conjuntos apenas, nem sequer as cidades como património. Hoje, as grandes questões são territoriais, na aproximação entre a cultura do património e a cultura ambiental, no primado da ecologia. Mas de que serve defender paisa­gens e itinerários culturais, quan­do nas máquinas com que vemos a diversidade do nosso mundo só conseguimos descortinar estú­pidos e altos canais, banalmente iguais, dos mesmos materiais e cores, hoje vivas, amanhã igual­mente sujas?
Tendo nós um território cheio de paisagens e culturas formais tão dis­tintas, porque são todas tão igual­mente banais estas placas e cores? Porquê se utiliza só esta extensiva e feia solução?
Sei que não é nada fácil o desenho da ciência acústica. Tenho a certeza que estes perfis de alumínio e pla­cas não podem ser acusticamente a melhor das soluções para cada recta, para cada declive, linha de festo ou de vale.
Porque não aproveitar cada curva, cada morfologia, cada traço na pai­sagem (riscado para TGV ou auto--estrada) para, como dizia Távora, com brilho nos olhos, projectar uma solução feita à medida desse lugar, sempre único e precioso? Porque não criar arte e projecto urbano, desenho de macro estru- j turas na paisagem, com materiais diversos (aqui pedra porque é Norte, ali terra porque é Sul, acolá policarbonato porque tudo é abs­tracto e artificial), variando, enri­quecendo de diversidade visual o desenho destas engenharias acús­ticas?
Porque não voltarmos a ser novos e magníficos deuses dos lugares, pre­servando a memória boa do que já foi, demiurgos que transformam, em vol des oiseaux, o desenho das redes e das infra-estruturas em novas opor­tunidades para a inteligência, para a sensibilidade e, sobretudo, para mais cultura?

*       in: Revista PEDRA & CAL, Nº 45, Janeiro7Fevereiro/Março 2010

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