Auto-estrada pode ser mais do que ligação viária se na sua construção se tiverem em conta certos elementos. Podem parecer pormenores mas fazem a diferença. É o que nos diz o Arq. José Aguiar neste oportuno artigo. Lembrámo-nos dele numa altura em que a A8, que serve Torres Vedras, está em obras de requalificação. Paisagem é Património. A defender!
Paisagens encapsuladas!*
JOSÉ AGUIAR, Arquitecto
Quase todos chegamos a estágios na vida onde, pouco a pouco, ressurgem as (grandes) lições do início (o eterno retorno). Depois de partir, cada vez mais me lembro das lições de Távora. Ocorre-me uma em particular, em que nos contou, no nosso primeiro ano de arquitectura, das auto-estradas de outros países, mais cultos, desenhadas em função do paisagismo do seu território, das belas linhas de vista que guiaram o serpentear das estradas (mais do que as velocidades previstas), com obras de arte (viadutos altos) nas montanhas, criando beleza mas deixando passar os ventos e os animais. Sabemos todos como o desenho das nossas apressadas vias e infra-estru-turas foi diverso desse, construindo más e feias cidades. Neste enorme processo de construção, feito sem desenho (ou com mau desenho), surgiu recentemente uma nova e triste novidade.
Palas acústicas, homogéneas e gigantescas (por vezes com mais de quatro metros), de enorme banalidade formal (perfis de alumínio e placas metálicas sempre com os mesmos verdes, amarelos e ocres encapsulados) começaram a enclausurar as paisagens de norte a sul, perto das grandes cidades, numa gigantesca teia igual, um canal interminável de fealdade e triste tristeza. Tratamos como se fossem burros com palas os condutores a quem, além das bichas no caminho, já não resta sequer o sobressalto estético da luz do sol-pôr sobre o Tejo, a surpresa das flores nas colinas do Sul (forradas este ano a cor azul, no outro brancas, amanhã amarelas), o sobressalto das escuras fragas, ou o mosaico verde do Norte, para tornar um pouco mais feliz o repetido caminho.
As rápidas placas construíram um feio e gigantesco canal, inferno dos tantos carros, e tristeza estética de uma suburbanidade que foi estendida, num repente, por todo o país. Gabamos aos outros a beleza e a diversidade do país, mas homogeneizámos a paisagem com estas placas verdes, amarelas e ocres, mais ou menos misturadas, todas já sujas do pó dos metais e dos pneus, ou já emporcalhadas pela fealdade da escrita vandálica.
Há sempre, para estes fenómenos, motivos nobres: poluições acústicas; ouvidos fartos. Mas, porque raio resolver a poluição acústica obrigou a esta terrível poluição visual?
Enfim, até suspeito que sei. Algures há (sempre) um regulamento novo, trazido à pressa da Comunidade Europeia, sem leitura crítica, simplesmente plasmado. Seguem-se empresas de professores-investi-gadores-consultores, que souberam mais depressa que os outros, que traduziram, adaptando aos seus estreitos interesses, e que montaram o esquema das soluções rápidas e demasiado feias, que tornam alguns - muito poucos - mais ricos e todos mais pobres. Os tipos do património dizem: agora já não discutimos só monumentos, nem conjuntos apenas, nem sequer as cidades como património. Hoje, as grandes questões são territoriais, na aproximação entre a cultura do património e a cultura ambiental, no primado da ecologia. Mas de que serve defender paisagens e itinerários culturais, quando nas máquinas com que vemos a diversidade do nosso mundo só conseguimos descortinar estúpidos e altos canais, banalmente iguais, dos mesmos materiais e cores, hoje vivas, amanhã igualmente sujas?
Tendo nós um território cheio de paisagens e culturas formais tão distintas, porque são todas tão igualmente banais estas placas e cores? Porquê se utiliza só esta extensiva e feia solução?
Sei que não é nada fácil o desenho da ciência acústica. Tenho a certeza que estes perfis de alumínio e placas não podem ser acusticamente a melhor das soluções para cada recta, para cada declive, linha de festo ou de vale.
Porque não aproveitar cada curva, cada morfologia, cada traço na paisagem (riscado para TGV ou auto--estrada) para, como dizia Távora, com brilho nos olhos, projectar uma solução feita à medida desse lugar, sempre único e precioso? Porque não criar arte e projecto urbano, desenho de macro estru- j turas na paisagem, com materiais diversos (aqui pedra porque é Norte, ali terra porque é Sul, acolá policarbonato porque tudo é abstracto e artificial), variando, enriquecendo de diversidade visual o desenho destas engenharias acústicas?
Porque não voltarmos a ser novos e magníficos deuses dos lugares, preservando a memória boa do que já foi, demiurgos que transformam, em vol des oiseaux, o desenho das redes e das infra-estruturas em novas oportunidades para a inteligência, para a sensibilidade e, sobretudo, para mais cultura?
* in: Revista PEDRA & CAL, Nº 45, Janeiro7Fevereiro/Março 2010
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