O PRESÉPIO
800 ANOS DE ENCANTAMENTO
José Pedro Sobreiro
Neste
Natal passaram 800 anos sobre um acontecimento memorável, determinante para
difusão do culto do nascimento de Cristo.
Na noite de 24 de dezembro de 1223 S.
Francisco de Assis, “o pobrezinho de Deus” como era chamado, convocou as gentes
da aldeia de Greccio, na região da Úmbria, Itália, para uma maravilhosa
performance - a celebração de um acto litúrgico com a representação ao vivo do
nascimento de Jesus numa gruta das imediações. Aí, na noite fria daquela região
montanhosa, o poverello falou ao povo com tal emoção, que, num arrobo místico, sentiu
que segurando nos braços a imagem do menino-Deus este lhe sorria.
Estava
criado um culto que os seus fratelli continuariam nos anos seguintes, na
quietude de igrejas e mosteiros, dando origem a uma das mais enternecedoras
tradições do cristianismo – o Presépio de Belém.
Embora já existissem anteriores representações do tema, em pinturas e
baixos relevos dos primórdios da cristandade, foi a singularidade daquele momento, a
intensidade da emoção vivida por quem a ele assistiu, que fixou para sempre a
evocação daquela história no coração dos fiéis.
Assim,
assistimos nos séculos seguintes ao aparecimento de conjuntos escultóricos, com
figuras de grandes dimensões em pedra, terracota ou madeira, assim como em
retábulos de altar em pintura ou em baixo relevo, nas grandes catedrais,
abadias e mosteiros da europa central.
Logo em meados deste século XIII, Nicola
Pisano esculpiu em mármore uma das mais belas cenas da natividade, no púlpito
do Baptistério de Pisa. Mas crê-se que a primeira representação em vulto
perfeito se deve Arnolfo di Cambio, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma.
Com o tempo, a construção de presépios vai-se difundindo por palácios
e casas nobres procurando adaptar-se aos espaços da intimidade familiar,
assumindo a forma de maquinetas, caixas-oratórios, ou peças de ourivesaria para
no século XVIII atingir o esplendor das grandes composições barrocas.
Com efeito, é na centúria de setecentos
que o presépio atinge a sua feição mais espectacular, com os grandes e feéricos
conjuntos de multidões de figuras campestres, grupos profissionais e imponentes
séquitos reais deambulando por cenários de uma natureza exuberante, com
afloramentos rochosos, cascatas e densa vegetação, pontuada por apontamentos de
ruínas romanas, numa coreografia plena de movimento. São autênticas romarias,
tão distantes já da quietude misteriosa da noite primordial, que relevam mais
da exibição do notável talento dos escultores barristas da época, mas que, afinal,
são outra forma de expressar o sentimento de profunda alegria e exaltação pelo transcendente
acontecimento.
Os presépios barrocos portugueses, na esteira do estilo Napolitano,
são um eloquente exemplo desta atitude, destacando-se entre nós os conhecidos
os casos de excelentes barristas como António Ferreira e Machado de Castro e os
magníficos conjuntos da igreja da Estrela, da Madre de Deus e da Sé de Lisboa,
entre outros.
É também nesta época que se desenvolvem os presépios mecânicos que
imprimem algum movimento a figuras e elementos cenográficos, contribuindo para
um maior deslumbramento das produções artísticas.
No século dezanove alarga-se a expansão
da montagem do presépio nos lares cristãos e, sob a inspiração do romantismo,
desenvolve-se o gosto de apresentar novidades cenográficas de tipo orientalizante
e a exploração de novos materiais, procurando por vezes soluções mais
económicas, como os presépios de papel, com figuras recortadas.
Daqui se chega naturalmente ao
aparecimento dos presépios populares, de inspiração ruralista, na esteira do presépio
barroco, mas agora com uma feição naïf, produto das habilidades
artesanais, que são pretexto para representar os hábitos, costumes, actividades
laborais e o ambiente do mundo rural, por vezes com uma ingenuidade desarmante.
No fundo, são a expressão de um desejo de participar no mistério da noite
santa, através do anacronismo da representação trazendo para a actualidade e
para o local a evocação do acontecimento festivo, que assim se torna intemporal
e universal.
Mas o evento de Greccio, para além da divulgação da representação tridimensional
– também se repercutiu na história da pintura ocidental, estabelecendo
definitivamente o tema em conjuntos de frescos e em retábulos de altar, a
partir de finais do séc. XIII, desde logo com Giotto e outros
pintores do final da arte gótica, para se afirmar na plena renascença. Abordada
em dois subtemas – Adoração dos Pastores e Adoração dos Magos - a construção da
cena vai conhecendo várias formas. Da singela cabana de barrotes e cobertura de
colmo até à tosca gruta ou à ruína da antiguidade (alusão cheia de simbolismo)
a disposição das figuras sacras evolui de uma visão mais naturalista – inicialmente
a Virgem Maria encontra-se ainda deitada – até à encenação mais canónica, com
Maria e José ajoelhados em adoração ao Menino deitado na manjedoura, passando
pela Virgem com o Menino ao colo, com José em plano mais recuado. No enquadramento,
não falta a presença dos ternos animais- o boi e o jumento – conforme a tradição de antigos escritos, os pastores
com as suas humildes ofertas, assim como grupos de anjos esvoaçantes que
anunciam a boa nova.

No
caso da Adoração dos Magos (mais tarde designados por Reis Magos) a
centralidade da sagrada família mantém-se e a cena presta-se à exibição de
grandes e exuberantes séquitos de figuras nobres e de pajens, cavalos e
camelos, numa clara apropriação pelos poderosos encomendadores que por vezes se
fazem retratar, como no caso das grandes composições de Fabriano e Botticelli.
Também em Torres Vedras possuímos dois conjuntos desta época renascentista–
ambos em pintura a óleo sobre madeira e confiados á guarda do Museu Municipal
Leonel Trindade :
O Retábulo
de Santa Maria do Castelo, conjunto de 5 painéis atribuídos durante
algum tempo a Gregório Lopes e hoje a um dos seus discípulos, pintura da
terceira década de quinhentos que está ao nível do melhor da melhor produção
manuelina ;
e o Retábulo do Convento da Graça, conjunto
de 6 painéis, oriundo do primitivo mosteiro, onde viveu S. Gonçalo, de autor
desconhecido de origem flamenga, onde perpassa ainda um sabor tardo gótico, quer
na modelação das figuras quer na espacialidade do cenário.
Embora não
se conheça o autor, foi atribuída, pelo Dr. Fernando António B. Pereira, a
fonte de inspiração desta composição numa gravura do pintor alemão Martin
Schongauer (1450-1491), pois esta prática de circulação de gravuras já existia
nessa época.
E é com um destes quadros do segundo conjunto – Adoração dos Pastores
- que constitui a mais antiga representação da natividade, entre nós, que
evocamos a efeméride dos oitocentos anos do presépio.
Pena é que não esteja visível ao público,
devido a ter sido retirada temporariamente por falta de condições do nosso
Museu.
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Página no jornal BADALADAS |