03 março 2022

HISTÓRIA DE UMA IMAGEM - Nª SRª DOS ANJOS, CARVALHAL


Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 25 FEVEREIRO 2022


Nª Srª DOS ANJOS, DO CARVALHAL

HISTÓRIA DE UMA IMAGEM

Joaquim Moedas Duarte (texto e fotos)

 

Em Abril do ano passado, nesta página PATRIMÓNIOS, falámos de um “hospital de bens culturais” chamado “Salvaguardar”, a propósito da imagem de Nossa Senhora dos Anjos que para ali fora levada, a fim de ser restaurada. Soubemos, há umas semanas, que a imagem regressara à capela do Carvalhal, freguesia do Turcifal. Lá a fomos ver, na companhia do Padre Paulo, a quem felicitámos pela iniciativa, felicitação extensiva à comunidade local e à Câmara Municipal de Torres Vedras que contribuíram com donativos.

A repetida referência a esta imagem, na página sobre o nosso Património, parece-nos relevante na perspectiva histórica, artística e patrimonial. Uma imagem, uma igreja, um túmulo e tantos outros bens materiais são testemunhos do Tempo que passou, habitado por gerações sucessivas. São memórias que dão espessura ao nosso próprio Tempo, que lhe conferem identidade cultural e nos ajudam a compreender a nossa forma de habitar o mundo como comunidade humana.

Esta imagem desafia-nos a entender o percurso histórico que a trouxe até aqui. É o que vamos tentar. 

DÁDIVA DA INFANTA DONA MARIA (1521 – 1577)[1]

Torres Vedras foi pertença de rainhas e princesas portuguesas nos tempos da primeira e segunda dinastias. No terceiro quartel do século XVI era donatária a infanta D. Maria,  filha do rei D. Manuel I e da sua terceira consorte, D. Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V. Em rigor, era “senhoria donatária dos direitos reais”, de que usufruía por mercê régia. Filha do mais rico monarca da época e da rainha originária dos poderosos Habsburgos, a infanta D. Maria era senhora de uma enorme fortuna. Além de Torres Vedras, possuía também Viseu, que acumulava com privilégios e rendas de proveniência diversa. Em tempos de ausência de Estado como entidade propiciadora de financiamentos às comunidades locais, eram os donatários que acorriam aos pedidos das populações para suprir carências e necessidades. Foi assim que a Infanta D. Maria financiou a obra urgente de restauro do Chafariz dos Canos, como o atesta a lápide que encima o arco central, com a data de 1561.

Vivendo em pleno lançamento da Contra-Reforma, – de que foi, juntamente com seu irmão D. João III, pertinaz defensora – esta Infanta aplicou grande parte da sua fortuna no estabelecimento e financiamento de instituições religiosas católicas – conventos, paróquias, igrejas – e apoios a órfãos, viúvas e carenciados, num tempo em que só a caridade cristã e o mutualismo corporativo supriam a inexistência de apoios sociais. Nesta linha, ela fundou, em1570, o convento de Nossa Senhora dos Anjos, no lugar do Barro, destinado a frades franciscanos arrábidos. A história deste convento é longa e dela pouco diremos. Interessa-nos, para já, a imagem da sua padroeira, de que falámos no início deste texto. Um opúsculo, publicado em 1910, que se baseia em informações do cronista dos Arrábidos,  Frei António da Piedade (1728), relata assim: “(a Igreja) foi dedicada a Nª Srª dos Anjos, título de que era sobremaneira devota a dita infanta D. Maria, que a essa conta ordenou que o mais perito escultor que então houvesse em Lisboa fizesse com todo o primor da arte uma imagem de Nª Srª, a que servisse de trono uma nuvem de anjos e serafins, que a inculcasse como rainha e soberana de todos”.[2]

Segundo o investigador Ruy Ventura, o autor mais provável desta obra terá sido o flamengo Estácio Matias, a quem a infanta encomendou também outras imagens.

A imagem que hoje conhecemos parece diferente da original. Eis o que diz o cronista jesuíta que a viu em 1860 e a descreve em 1910: “A imagem é de talha, de madeira, e de tamanho natural, em proporções de uma mulher de estatura regular (…), de excelente escultura, estofada e com as mãos postas levantadas à altura do pescoço, mas mais para o lado esquerdo, e acompanhada de dois anjos, que de uma e outra parte mostram voarem com ela ao céu”. Logo de seguida, acrescenta: “Infelizmente, porém, houve quem se lembrasse de mandar, seguramente com boa intenção, aguarentar a roupagem da senhora, tirar-lhe o manto esculturado que tinha e era de boa talha, assim como a peanha, em que lhe servia de trono uma nuvem de anjos e serafins(…). De modo que ficou a imagem em corpo, não se podendo já expor em público, se não vestida de manto postiço, que se lhe põe quando se coloca no camarim (tribuna do altar-mor)”. Desconsoladamente, o padre jesuíta comenta: “A imagem não é da Senhora dos Anjos que aqui conhecemos em 1860 e que a infanta D. Maria mandara com tanto empenho fazer em Lisboa com o possível primor. Se ao menos uma reprodução fotográfica nos tivesse ficado dela! Mas nem disso houve lembrança.”

Quer dizer: aquela é uma imagem truncada, desapossada dos acessórios que lhe conferiam imponência e majestade. De facto, foi essa a impressão que tivemos, quando a vimos há dias, e que o cronista tão bem expressou com aquela frase: “imagem em corpo, não se podendo já expor em público, se não vestida de manto postiço”. Não podemos concluir que a imagem actual não seja a que foi mandada fazer pela infanta dona Maria, mas a verdade é que a eliminação do manto de madeira e dos anjos a tornaram diferente aos olhos de quem a admirara completa. Também é esse o entendimento das comissões de festas do Carvalhal, como verificámos, em 2014, nos preparativos da procissão da festa anual, em 15 de Agosto. A foto mostra a imagem num andor com pequenos anjos aos seus pés, e um manto em tecido que quase a tapa por completo.



VICISSITUDES DO CONVENTO DO BARRO

 história desta imagem cruza-se, naturalmente, com a própria história do convento do Barro. História secular, marcada por guerras, convulsões políticas, desgastes naturais das tempestades e dos terramotos. O pequeno edifício inicial de 1572, não resistiu às intempéries e foi necessário reconstrui-lo em 1619.[3] O terramoto de 1755 provocou estragos assinaláveis. Em 1834, com a extinção das Ordens Religiosas, o Convento do Barro foi nacionalizado e vendido em hasta pública. Alguém providenciou para que a imagem de Nª Srª dos Anjos fosse trazida para a Igreja de S. Pedro, em Torres Vedras. O novo proprietário deixou o edifício ao abandono até que, em 1857, o vendeu ao Marquês de Valada, cuja família tinha profundas ligações afectivas ao convento. Três anos depois, este cedeu-o, a pedido, aos Jesuítas que, depois de algumas obras urgentes, ali instalaram um colégio de órfãos e o noviciado da Companhia. Em 1860 o convento do Barro foi reaberto e a imagem da Virgem dos Anjos regressou à sua igreja. Em 1910, com a implantação da República, os Jesuítas foram expulsos do convento e a imagem, por devota precaução, foi levada para a capela do Carvalhal, onde se conserva até hoje. Em 1914, o convento do Barro passou a ser o Asilo Elias Garcia, até 1952, e, um ano depois transformou-se no Instituto do Bom Pastor para crianças, idosos e doentes mentais, dirigido por Irmãs Religiosas do Bom Pastor. Em Julho de 1953, esta instituição abandonou as instalações, devido ao precário estado de conservação, as quais passaram para o Ministério do Interior que, depois de grandes obras de adaptação, as entregou, em 1956, ao Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos que aqui instalou um sanatório.

Por que motivo a imagem foi para a capela de Nª Srª da Quietação do Carvalhal, em 1910? O opúsculo do P. A. Cordeiro, que atrás citámos, invoca uma referência do Santuário Mariano, de Frei Agostinho de Santa Maria, na qual se recorda a devoção dos habitantes do Carvalhal a uma imagem de Nª Srª que estava no Barro e à qual deram o título de Senhora da Saúde. Hipótese a estudar. Seja como for, é a comunidade cristã do Carvalhal que guarda, preserva e venera a secular imagem que atravessou os séculos e chegou até nós com a invocação de Nª Srª dos Anjos, dádiva de uma infanta real no século XVI.



[1] Seguimos de perto as abundantes e rigorosas informações de: D. Maria (1521-1577): uma infanta no Portugal de quinhentos, Paulo Drumond Braga, Edições Colibri e Câmara Municipal de Torres Vedras, Lisboa 2012; A Infanta Dona Maria de Portugal(1521-1577). O Mecenato de uma Princesa Renascentista, Carla Alferes Pinto, Lisboa, Fundação Oriente, 1998.

[2] Cf.: P. António da Costa Cordeiro S.J., Jubileu do Collegio do Barro (1860-1910) – Notícia histórica da sua fundação e ministérios até o anno presente, Braga, 1910.

[3] Cf.: Anotadores do livro de Manuel Agostinho Madeira Torres, Descrição histórica e económica  da vila e termo de Torres Vedras, 2º Ed., Coimbra, 1862, p. 141 e seguintes.



Capela do Carvalhal (Freg. Turcifal, concelho de Torres Vedras)




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