02 novembro 2014


A página LUGAR ONDE, no semanário torriense BADALADAS, deu destaque à inauguração do FORUM de Associações, que aconteceu em 25 de Outubro de 2014.
O acto público foi presidido por Carlos Miguel, presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, com a participação da presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, Ana Abrunhosa e de Carlos Ferreira, Presidente do Forum.
Joaquim Moedas Duarte, presidente da Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, proferiu um discurso de apresentação da sua Associação que a seguir transcrevemos:

É com enorme alegria que a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, de cuja Direcção faço parte, se associa à festa desta inauguração. Permitam-me recordar que a nossa Associação completa, este ano, 35 anos de existência. Não vou fazer a sua história mas julgo que é oportuno partilhar convosco algumas considerações que nos permitem entender melhor o contexto em que ela surgiu,   em Março de 1979.

Os anos 70 do século XX foram, em Portugal, um tempo de viragem e renovação de todos os aspectos da vida colectiva, sobretudo a seguir à revolução do 25 de Abril de 1974. No campo cultural, por força de conturbadas circunstâncias políticas, assistiu-se à proliferação de iniciativas dispersas que tinham como matriz orientadora a substituição do modelo autoritário deposto, substituído por instâncias descentralizadas que garantiam a intervenção directa e voluntarista dos activistas culturais. Nessa época, foi através da renovação do Poder Local Autárquico que as populações tomaram consciência do seu papel de intervenientes directos, porque principais interessados, na defesa e preservação dos bens culturais das suas localidades. A nossa experiência autárquica nesses anos testemunha que esse foi um período de intensa participação cívica em que as preocupações com a resolução imediata de problemas relacionados com as infra-estruturas de abastecimento de água ou saneamento básico corriam em paralelo com as realizações culturais, tornando  possível, através da iniciativa de elementos mais esclarecidos ou sensibilizados, reavivar o interesse pela memória histórica local e pelas tradições populares mais genuínas.
Neste renascer cívico ganhou importância a ideia da defesa do Património, sobretudo o edificado, que nos últimos anos do Estado Novo havia sido descurado devido ao esforço da guerra colonial – ao contrário dos anos áureos do Regime em que a promoção do Património fora uma das bandeiras da renovação nacionalista preconizada por Salazar. Surgiram, por todo o país, Associações de Defesa do Património (ADP), num crescendo que atingiria o seu auge nos anos 90, totalizando cerca de uma centena.
Este movimento levou à realização de quatro Encontros Nacionais de ADP: Santarém (1980), Braga (1981), Torres Vedras (1982) e Setúbal (1986) e à constituição de uma Federação em 1981, a FADEPA.

Nos activistas deste poderoso movimento cultural era clara a preocupação com a necessidade de afirmar a consciência identitária como condição necessária do modo de ser e estar das comunidades humanas. Num período de rápidas alterações sociais e políticas, o regresso ao passado surgia como elemento compensador de perdas e danos, oferecendo um referencial simbólico onde ancorar a busca da identidade ameaçada. A libertação dos constrangimentos políticos do regime ditatorial levou à celebração da partilha colectiva como manifestação e fruição da liberdade. Essa partilha evidenciou a consciência grupal de uma identidade renascida que se materializou no cuidado pela herança comum, - o Património.
A erupção entusiástica do interesse pelos vestígios do passado é, aliás, uma das características dos períodos de regeneração que se seguem às revoluções, como se viu a seguir à Revolução Francesa ou, em Portugal, após a implantação da República. O recurso ao Património não é arbitrário, antes resulta da interiorização colectiva da ideia de que o passado comum é o elo que une os elementos da comunidade ameaçados pelas tensões desagregadoras dos períodos revolucionários.

Significativa do período histórico pós 25 de Abril 74 foi a ideia de que  esta identidade deveria afirmar-se mediante a assunção da responsabilidade individual que aceita fazer parte integrante de um colectivo independente do poder político central. Daí a constituição de inúmeras instâncias associativas – Comissões de Moradores, de Melhoramentos, de Clubes Culturais e Recreativos, etc – e, entre elas, as de Defesa do Património.  Esta proliferação tornava-se, assim, o reverso da política centralista do Estado Novo, em que os cidadãos se substituiam ao longínquo poder autocrático, mas teve como consequência inevitável, durante os primeiros anos do regime democrático, alguma indefinição do quadro legal relativo às questões do Património. O primeiro grande diploma legal sobre esta matéria surgirá apenas em 1985. No texto de 62 artigos é visível « a força e originalidade com que vinha progredindo a acção das ADP’s», como se comprova pela referência explícita à sua existência no Artº 6º, nomeadamente no 1º ítem:

«1 - As associações de defesa do património, adiante designadas por «ADP», são as associações constituídas especificamente para promover a defesa e o conhecimento do património cultural.»

Este era o corolário de uma década de intervenção aguerrida e muitas vezes incómoda para o poder político e para os interesses materiais instalados, nomeadamente na área do urbanismo. Significava, também, o reconhecimento da importância das ADP’s na introdução de conceitos e metodologias de intervenção, até aí praticamente arredados do quotidiano administrativo apesar de constantes nos inúmeros documentos internacionais dedicados à preservação do Património – desde a Carta de Atenas (1931), passando pela Carta de Veneza (1964) até ao Apelo de Granada (1977), entre outros

Dezasseis anos depois daquele diploma legal foi publicada a Lei nº 107/2001 que consideramos a magna carta do património cultural português na qual (Artº 1º) se estabelecem «as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, como realidade da maior relevância para a compreensão, permanência e construção da identidade nacional e para a democratização da cultura». De novo encontramos referência explícita às ADP’s mas agora num articulado mais bem estruturado que constitui, só por si, o estatuto genérico da participação activa dos cidadãos nas questões do Património, claramente desenvolvido nos sete ítens do Artº 10º e nos três do Artº 11º. Depois de caracterizar o perfil associativo das ADP’s, aí se reconhece aos cidadãos “o direito de participação, informação e acção popular” bem como o direito a obter cooperação da Administração Pública central, regional e local em todos os domínios da sua actividade específica. E ainda o direito aos “incentivos e benefícios fiscais atribuídos pela legislação tributária às pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.” Esta explicitação clara de direitos é completada, no Artº 11º com os deveres de “ preservação, defesa e valorização do património cultural”, cada um deles desenvolvido nos três ítens do articulado.
     Parece-nos, pois, de justiça apontar para o papel decisivo da participação dos cidadãos no estabelecimento das linhas orientadoras, plasmadas na lei de bases do património cultural.
É justo lembrar que a Associação do Património de Torres Vedras teve participação muito activa neste movimento.
Fundada em Março de 1979 por iniciativa do director do semanário local Badaladas, com o apoio entusiasta do vereador da cultura da Câmara Municipal, a que se juntou um grupo alargado de personalidades, desde logo se afirmou como interventora sagaz nas questões do Património local, marcadas pela emergente importância dos promotores imobiliários encorajados por um Poder Autárquico permissivo, mais sensibilizado para o desenvolvimento urbanístico do que para a salvaguarda de valores patrimoniais de feição histórica. Com a sede a funcionar incialmente nas instalações do jornal, é natural que tenha sido nas suas páginas que a actividade da nova associação ganhou relevo – o que ainda hoje acontece, apesar de a sede da ADP há muito se ter deslocado para instalações independentes.
     O dinamismo desta associação explica que, logo em 1982, tenha organizado o III Encontro de ADP’s, em Torres Vedras, amplamente divulgado nas páginas do jornal. Realizado de 1 a 4 de Abril, nele participaram cerca de 400 pessoas representando 91 associações de todo o país, com uma centena de comunicações. Em jeito de balanço, José Pedro Sobreiro, então presidente da ADPTV, sublinhou:

     «O Património não se defende apenas nos “monumentos intocáveis”, mais ou menos protegidos por lei. A defesa do património tem a ver com uma atitude perante a vida das sociedades e abrange um leque de acções que pode ir da publicação de um catálogo de museu até à preservação do ambiente tradicional de uma artéria.»

Depois deste relance sobre o nosso passado recente, olhemos agora para o presente e para as possibilidades do futuro

     Quanto ao presente deste movimento cultural, é indubitável que perdeu a pujança e o fulgor dos anos iniciais. Muitas associações do património ficaram pelo caminho, num processo natural de ciclo de vida. Não temos dados estatísticos disponíveis, apenas um conhecimento empírico resultante da nossa experiência nesta área. Uma investigação rápida na internet  mostra-nos que resistem ainda algumas associações que mantêm actividade regular, mais ou menos significativa. O que nos parece relevante sublinhar é que a preocupação com as questões da salvaguarda do património cultural e da sua divulgação – frequentemente incluídas na promoção turística - fazem hoje parte da agenda da grande maioria das autarquias locais, como podemos comprovar pela análise dos respectivos sítios da internet. É lícito supor que esta generalização resulta, também, do trabalho pioneiro das ADP’s, hoje diluído ou absorvido pelas competências administrativas do Poder Local.

Quanto à Associação do Património de Torres Vedras, os relatórios e planos de actividade, que anualmente tem discutido e publicado no blogue PATRIMÓNIOS, abarcam uma grande variedade de iniciativas que procuram responder aos novos desafios e exigências do tempo presente.   Que se espera hoje de uma Associação do Património? A resposta, encontramo-la num documento interno da nossa Associação, que passo a citar:
«Espera-se que continue a defender  e a divulgar o Património! Mas tendo em conta que estas ‘missões' já estão em grande parte assumidas por outras entidades – IGESPAR, DGPC, autarquias, Regiões de Turismo… - espera-se sobretudo que introduza CONHECIMENTO nas questões do Património. Esse é o aspecto mais importante da sua acção, hoje em dia. De que modo? Intervindo regularmente na imprensa, rádios e televisões regionais; editando materiais de qualidade; organizando visitas guiadas temáticas; disponibilizando serviços de guias turísticos, sessões de divulgação, acções de formação; utilizando todos os meios informáticos disponíveis; actualizando inventários e registos fotográficos; divulgando leis e textos de referência; criando núcleos escolares de defesa do património; comparecendo em todos os eventos públicos relacionados com o Património cultural; criando formas de participação das populações em projectos inovadores que as interessem e mobilizem.»

            A partir destes princípios, a ADPTV tem actualmente em execução os seguintes projectos de trabalho:
Ø  TORRES VEDRAS, MEMÓRIAS DO SÉCULO XX: vídeo-gravação de depoimentos orais de pessoas idosas, de alguma forma ligadas ao Centro Histórico; recolha de fotografias, notícias de jornal...; reconstituição do tecido comercial da zona histórica ( as lojas que ali existiram...). Este projecto foi iniciado em 2012 com um ciclo de cinco debates públicos sob o tema “Mais vida no Centro Histórico”. Até ao presente foram realizadas 10 entrevistas vídeo-gravadas, num total de cerca de 50 horas de gravação.
Ø  VIVA HISTÓRIA: realização de visitas guiadas, com percursos no Centro Histórico da cidade e na região Oeste; disponibilidade deste serviço junto dos agentes turísticos. Este projecto candidatou-se recentemente ao Programa Leader Oeste.
Ø  AO ENCONTRO DA HISTÓRIA: sessões públicas, com PowerPoint's, a pedido de pessoas ou instituições interessadas, sobre os temas: Linhas de Torres Vedras / Monumentos de Torres Vedras / A arte de moer: moinhos e azenhas / A nossa História escrita: Livros de História Torriense.
Ø  PATRIMÓNIOS: publicação de artigos no jornal Badaladas, de três em três semanas, sobre memórias do Centro Histórico. Este projecto tem mobilizado muitos dos actuais ou antigos moradores a darem o seu testemunho de vida, a maioria nunca tinha escrito para um jornal. Desde 2010 até hoje foram publicados cerca de 70 artigos de 30 autores diferentes.

Meus senhores e minhas senhoras:
Ao concluir esta intervenção,  quero sublinhar que os 35 anos de vida da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras exprimem bem a possibilidade e utilidade da participação organizada dos cidadãos na salvaguarda e valorização do seu Património histórico, na linha do que a Convenção de Faro, de 2005, preconiza no seu artigo 12º: «Reconhecer o papel das organizações não lucrativas, tanto como parceiros nas actividades desenvolvidas, como enquanto elementos de crítica construtiva das políticas de património cultural

Por outro lado, fica patente a ligação entre memória e património pois este não se entende sem aquela. É a memória que confere valor simbólico aos vestígios do passado, - material ou imaterial – uma operação mental em que, no dizer de um autor consagrado, «a reivindicação presente de um património é produtora desse património» - fenómeno a que aquele autor chamou ‘patrimonialização’, resultado ‘do acto de memória’.[1]

De facto, a memória social é um vasto universo cultural que, para subsistir, necessita de agentes propulsores e dinamizadores e esse continua a ser, em nosso entender, o papel e o território de acção das Associações para a Defesa do Património Cultural.
Obrigado pela vossa atenção.




[1] Joël Candau – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 148.


Na semana seguinte o jornal Badaladas publicou a reportagem:











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