15 abril 2011

PATRIMÓNIOS - 8




A Antropologia Urbana e a etnografia dos centros históricos – III

As flores da Rua de S. Miguel

Joaquim Ribeiro *

 (Publicado no BADALADAS em 8 ABRIL 2011)


No meu último texto evoquei o conceito de “comunidade imaginada”, de Benedict Anderson, para sugerir a necessidade de “requalificar” a memória da população local. Na verdade, todas as propostas para um centro histórico urbano são válidas: recuperação dos edifícios degradados, atracção de novos moradores ou o desenvolvimento de projectos artísticos e turísticos. No entanto, para a consolidação da memória de uma zona histórica de uma cidade não é suficiente fazer obras em prédios antigos para os tornar mais resistentes ou até mais modernos no seu interior de forma a atrair novos moradores, que, no fundo, vão lá apenas pernoitar. O aproveitamento de edifícios para outros fins, como o da atracção turística, desenvolvimento de projectos artísticos ou animação nocturna, são óptimos para chamar visitantes ao local, mas o processo esgota-se aí. Os moradores mais antigos que assistem a estes movimentos já lá estavam e lá continuam depois da fugaz incursão dos forasteiros.
A noção de vizinhança deve ser estimulada pelo convívio entre os membros da comunidade, na partilha de práticas culturais e de interesses mútuos, em redor do espaço comum que habitam. Aqui é fundamental o papel das associações, como o Atlético Clube Torreense, na encosta entre o Largo de Santo António o Largo Coronel Morais Sarmento. Actualmente a sua actividade resume-se provavelmente ao mais importante: ponto de encontro diário dos moradores, a maioria idosos, que ali passam as tardes e os serões.
Um exemplo daquilo que reforça o sentimento de vizinhança na zona histórica são as flores da Rua de S. Miguel, artéria que vai desde o castelo até à ponte de S. Miguel (no extremo norte da Rua de S. Gonçalo de Lagos). Os seus moradores fazem questão de decorar o exterior das suas habituações com vasos de flores, uma prática cuja origem se perde no tempo e que reforça o sentimento de comunidade, na medida em que envolve os vizinhos e os une no orgulho de embelezar a sua rua. Por isso ficaram decepcionados quando o ano passado, pela primeira vez, a Procissão das Velas (na noite de 12 para 13 de Maio) saiu da igreja de Santa Maria mas já não passou pela Rua de S. Miguel. Antes, a procissão passava à frente daquelas casas, onde os moradores espalhavam flores na calçada e empenhavam-se colectivamente nas decorações florais às suas portas. Este é um exemplo de como a requalificação de um local com importância histórica deve sobretudo dar atenção à recuperação de tradições populares, como uma festa, o “almoço dos castelhanos” ou a passagem da Procissão das Velas sobre um manto de flores que os locais se empenharam em recolher e que era importante para a comunidade que voltasse a passar pela Rua de S. Miguel.
·       Mestre em Antropologia pelo ISCTE-IUL


Sem comentários:

Enviar um comentário