A ANTROPOLOGIA URBANA E A ETNOGRAFIA DOS CENTROS HISTÓRICOS – II
OS CASTELHANOS OU A “COMUNIDADE IMAGINADA”
(Publicado no Badaladas em 18 Março 2011)
Joaquim Ribeiro
Tal como outros, o Centro Histórico de Torres Vedras tem uma delimitação territorial definida pela necessidade de centralizar o património. É um local que o poder político convencionou chamar assim. Fê-lo na tentativa de criar regras, para impedir que continuasse a sua descaracterização. Para isso foram definidos limites desse território: a norte no rio Sizandro, a poente na rua São Gonçalo de Lagos e a nascente na Corredoura e rua 1o de Dezembro. A sul termina na rua Paiva de Andrada e podemos para já questionar a exclusão, por exemplo, do convento da Graça. Esta delimitação terá resultado da necessidade de classificar edifícios consoante uma hierarquia de valores, de acordo com a Carta de Veneza (1964), considerando os monumentos como integrantes de um ambiente urbano que vale pelo seu conjunto e é assim mais eficaz uma preservação da memória colectiva.
Não existem muitos trabalhos de investigação antropológica sobre a patrimonialização destes locais, com excepção para o de Alice Carneiro, sobre o Centro Histórico de Guimarães. Sendo as pessoas o objecto de estudo principal num trabalho de campo antropológico, a minha pequena incursão centrou-se sobretudo na função actual dos edifícios, forma de apropriação dos mesmos e a importância do território para a população.
Não obstante o aparecimento de novas centralidades - grandes superfícies comerciais, zonas residenciais modernas, Centro de Saúde, parque verde da Várzea, praça Calouste Gulbenkian, avenida general Humberto Delgado, o parque escolar da Conquinha, etc -, a periferia do Centro Histórico continua a ser considerada o centro da cidade: a área entre os Paços do Concelho, igreja de São Pedro, Mercado Municipal e ruas pedonais Serpa Pinto, 9 de Abril e 10 de Dezembro, são ainda o coração da urbe. Contraditoriamente, se a periferia é o centro, à medida que avançamos para o núcleo do Centro Histórico aproximamo-nos da periferia da cidade. E também encontramos cada vez menos gente. A seguir ao largo frei Eugénio Trigueiros (antigo largo do Grilo) até ao largo coronel Morais Sarmento, às portas do Castelo, as ruas apresentam-se mais vazias e são as paredes que em si mesmas se revelam guardiãs da memória colectiva, embora profundamente descaracterizadas: prédios de arquitectura recente e outros com elementos modernos misturam-se no conjunto.
Não é fácil fazer conviver a requalificação urbana com a atracção de novos moradores, que vêem a sua intimidade usada como atractivo turístico. Se os moradores da zona "baixa" do Centro Histórico ainda podem usufruir da centralidade que o espaço lhes proporciona, já aqueles que residem na zona "alta" sentem-se marginalizados. O papel das associações é fundamental, como o Atlético Clube do Castelo, que continua de portas abertas cumprindo a sua função de ponto de encontro entre os moradores, a maiora de idade avançada. É o sentimento de pertença face ao território e a manutenção de laços de vizinhança, que sustentam a ideia de comunidade. Valores, rituais e tradições fortalecem também esse sentimento, que remete para o conceito de "comunidade imaginada". Muitos moradores, jovens ou com poder económico, mudaram-se para zonas mais modernas da cidade, outros emigraram, mas guardam a lembrança do seu local de origem, não apenas como um espaço físico, mas sobretudo um território comum de afectividades, relações e cumplicidades. Não sei se ainda se realiza, mas ainda há pouco tempo tinha lugar todos os anos o "almoço dos castelhanos", que reunia ` volta da mesa aqueles que mantinham laços com aquela zona da cidade de Torres Vedras. Talvez mais do que preservar a memória física de ruas e edifícios, importava também "requalificar" a memória da população local, para que, dentro da sua condição de torrienses, continuem a sentir-se acima de tudo "castelhanos".
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