15 setembro 2011

PATRIMÓNIOS 15

  Publicado no BADALADAS em 15 agosto 2011

ERA UMA VEZ…UMA CASA
 José Pedro Sobreiro *
 



Durante alguns meses assistimos, atónitos, ao espectáculo de ver a fachada de uma das mais antigas casas de Torres Vedras transformada num festival de berrantes arco-íris, aplicados a tinta de spray, qual muro de paisagem suburbana.
O espanto provinha, não por se tratar de iniciativa irreverente de publicitário ou de artista marginal, mas, pasme-se, de ser acção promovida pela Câmara Municipal!
As razões invocadas prendiam-se com a tentativa de chamar a atenção para “um Projecto” de animação cultural vocacionado para os mais pequenos e que dá pelo nome de “Casa das Histórias”.
Este projecto nasceu como solução para o problema que a CMTV tinha em mãos, devido a um acordo celebrado com o Dr. Jaime Umbelino, segundo o qual a Câmara ao adquirir o imóvel obrigar-se ia a nele instalar uma “Casa Museu”, com o espólio daquele ilustre literato.
Como tal objectivo não se conformasse com os actuais interesses da política cultural do município - o que até podemos compreender – aceita-se como razoável esta solução da Casa das Histórias, que se pretende constituir num veículo de transmissão da cultura literária e do seu imaginário, mantendo-se, ao fim e ao cabo, na esfera da acção e da memória do seu “doador”.
E aqui é que bate o ponto!
Se elegemos como objectivo educativo a transmissão de valores da cultura da tradicional não podemos, ao mesmo tempo, agredir outras manifestações dessa mesma cultura, dessa mesma tradição- entre eles o património arquitectónico.
Há que ser coerente e resistir à tentação do marketing político e do kitsch.
Neste momento, a pintura foi retirada e a fachada encontra-se limpa. No entanto, soubemos, pelo Boletim Municipal, que nova investida se prepara para breve. (1)
Aquela casa é, seguramente, uma das mais antigas da cidade, remontando ao início do século XIX, talvez até anterior, constituindo um valor patrimonial de per si, pelas caraterísticas tipológicas específicas de uma habitação oitocentista burguesa, não sumptuária (pena é que o seu interior esteja já um pouco adulterado). Mas pelo menos resistiu a sóbria fachada, com o seu desenho simétrico de bem definidas cantarias dos vãos, com o seu óculo característico de iluminação da escada.
Esse é o desenho da casa, a sua expressão própria, que não precisa de maquilhagem, para se tornar digna da nossa contemplação.
E isso é também um valor a transmitir.
É que nestas coisas de crianças nem tudo se deve levar a brincar.
    
* Membro da Direcção da Associação Para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres  Vedras                                                          

                                                           
(1)    Diz o Boletim Municipal (setembro | outubro 2011, nº 4, p. 7):
«Ainda outro desafio lançado pela Fábrica das Histórias, mas para cria­dores, foi o Uma parede branca, que consistiu na apresentação de pro­postas de intervenção artística para a fachada da referida casa. 0 trabalho escolhido foi o de Marta Pereira, que será entretanto implementado. »
 

5 comentários:

  1. Inspiraram-se no Castelo de Kelburn.
    Pessoalmente, sou de opinião de que não foram felizes.

    Melhores cumprimentos e continuação de bom trabalho,
    André Grilo

    ResponderEliminar
  2. Magnífico texto !!!...na mouche.

    ResponderEliminar
  3. Eu acho que se a intenção da "Casa das Histórias"/CMTV é continuar com "intervenções artísticas" na fachada, e se faz disso um projecto imprescindível para o equipamento...então que tal começar a estudar um bocado sobre arte pública e instalação site specific ? É que confrontar património classificado (vide Acta n.º 14 de 07/07/2009 CMTV) «Casa Museu Dr. Jaime Umbelino - Fábrica das Histórias”, classificado património qualificado de interesse municipal...» com intervenções contemporâneas na sua fachada é no mínimo uma colisão de interesses que devia ser muito acautelada. Não sou contra intervenções artísticas em património (nem ninguém penso eu), no entanto das duas uma: ou se trata de uma intervenção assumidamente polémica, baseada na crítica institucional ou na arte política/pública (por exemplo o trabalho de Christo quando embalou o Reichtag http://youtu.be/esiErDm62E4 )...ou corre-se o risco de andar a fazer ilustrações em tamanho gigante numa grande folha em branco cuja existência deveria manter-se... afinal há tanto prédio em ruínas a merecer intervenção !

    ResponderEliminar
  4. José Menezes24/9/11

    Saúdo esta e as futuras intervenções na fachada da "Casa das Histórias". Que a sua fachada seja a tal "folha em branco" ocupada ciclicamente pelos artistas.
    O texto de José Pedro Sobreiro veicula, em minha opinião, uma visão de património cultural como coisa inerte, respeitosamente de chapéu na mão perante o passado, enfim, de que uma cultura boa é uma cultura morta...
    Fico a aguardar, curioso e interessado, a próxima intervenção na fachada da "Casa das Histórias"

    ResponderEliminar
  5. Ricardo Quitério27/9/11

    Concordo com o José Menezes e até consigo entender o que o Rui define como conflito de "perspectivas", mas a crítica exposta não passa de um mero fundamentalismo cultural há tanta merda mal feita ao património desta cidade e vocês querem pôr-se a discutir obras de arte efémeras ...

    Porque eu sinceramente não sou da opinião de que tudo o que tem mais de 100 anos tem de ser um museu fechado e com cheiro a mofo, as cidades são dinâmicas, se não fossem essas intervenções essa casa estaria provavelmente fechada ou fora de contexto.

    ResponderEliminar