26 agosto 2023

OBJECTOS COM HISTÓRIA - O CONTADOR DE VIDAS | Página PATRIMÓNIOS NO BADALADAS DE 25 AGOSTO 2023

 

OBJECTOS COM HISTÓRIA: O CONTADOR DE VIDAS

Christiane Schickert

 


No conceito de Patrimónios cabem realidades diferenciadas que têm em comum o carácter de testemunhos históricos. É o caso deste contador, evocativo de tempos e gentes que fazem parte da nossa memória colectiva. Gratos à autora, cidadã alemã a viver em Portugal há muitos anos, agora radicada em Torres Vedras. | JMD

Há dias, chegou-me às mãos a imagem dum objecto hoje perfeitamente obsoleto, mas que me traz à memória um rol de histórias. É um instrumento rudimentar para efectuar contagens, de “tecnologia” básica: cada pressão no botão regista uma unidade. De fabrico alemão, terá sido produzido há cerca de 100 anos. Pertenceu ao meu irmão mais velho, já falecido, e durante os anos em que trabalhámos juntos, numa grande agência de viagens de Lisboa, muitas vezes o vi na sua mão. Sabemos que, nos inícios da actividade turística em Lisboa, antes da primeira Guerra Mundial, aquela geringonça teria servido, por exemplo, para contar os turistas alemães que se aventuravam a descobrir as belezas da Serra de Arrábida, a partir de Azeitão, montados em ... burros!

 

ANOS 60, PORTUGAL

Mas agora estávamos nos anos sessenta, altura em que, empurrados pelas difíceis condições de vida, centenas de milhares de portugueses enveredaram pelos caminhos da emigração, rumo à Europa central: França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, entre outros países. Não poucos optaram pela via clandestina, passando a fronteira a salto ou partindo sem rumo definido nem perspectiva concreta de trabalho. Mas a grande maioria, oficialmente requisitada pelas autoridades dos países de destino como mão de obra de que urgentemente careciam, era agrupada em transportes semanais de caminho de ferro, com transbordo em Hendaya. Estando a agência em que trabalhávamos encarregada da organização desses transportes, tive ensejo de viver muito de perto este verdadeiro drama humano que é a emigração.

Local: Lisboa, Estação de Santa Apolónia. Hora: 07.00 da manhã. São centenas de homens e (poucas) mulheres, de roupa escura e semblante carregado que se acotovelam no topo das linhas. Chegam a ser mais de 500, numa viagem. Os destinos são Paris, Colónia e Estugarda. Na cancela de acesso ao cais, as presenças são registadas com um “clique” no tal contador. Cada clique confirmava que mais uma pessoa tinha recebido a sua passagem de comboio (uma minúscula contramarca de cartão, do tamanho dos bilhetes de eléctrico da altura, e muito fácil de se perder...), bem como o respectivo farnel. Preparados por uma empresa de catering, os farnéis continham: um frango assado, várias “sandes” de chouriço e ovos mexidos, bolachas, algumas peças de fruta, água e uma pequena garrafa de vinho. Comida para uma viagem de dois dias e meio! À medida que se aproxima a hora de partida, mais lancinantes se tornam as cenas de despedida dos muitos familiares que não se pouparam à longa viagem desde a “terra”, de táxi ou de camioneta, para dar um último abraço aos pais, filhos, irmãos ou amigos. Gente de aspecto humilde e acabrunhado, os homens de boné, as mulheres de xaile, com crianças pequenas nos braços. Lágrimas, gritos, desmaios e olhares como que empedernidos dos que partem. Nessa altura, de Lisboa viajavam essencialmente pessoas oriundas do sul do país: Algarve, Alentejo, Ribatejo e Estremadura, enquanto os nortenhos eram encaminhados a partir do Porto. Nunca esquecerei as enormes listagens, verdadeiros “lençóis”, onde era preciso dar baixa dos já presentes. Cuba, Vidigueira, Mourão, Aljustrel, Reguengos, Gavião, nomes de tantas e tantas localidades que se foram esvaziando dos seus homens, deixando para trás as mulheres, as crianças e os idosos.  Uma pequena nota de humor eram os maravilhosos apelidos que surgiam, sobretudo dos alentejanos. Por entre os vulgares Camelo, Cação e Cabaço, dois deles, por impagáveis, ficaram gravados na minha memória: Maria Jesuína Xarope Pé-Leve; e Manuel António Catrapoula Espingarda!

Numa manhã escura e chuvosa, faltaram à chamada quatro homens. Havendo quem os tivesse visto na viagem da terra até Lisboa, pusemo-nos à procura em todas dependências e átrios da estação. Já quase sobre a hora de partida, fui dar com eles ... instalados, com toda a sua parafernália de bagagens, nos bancos do carro eléctrico amarelo, estacionado frente à gare! Foi um episódio que me entristeceu profundamente: como iriam aqueles seres, que nem na sua própria terra se sabiam orientar, enfrentar um mundo totalmente diferente do seu, em que nem a língua era a mesma?! Aliás, o “dia de Santa Apolónia” era sempre um dia emocionalmente pesado, para todos nós. Ficava um travo amargo e uma enorme compaixão por estas vidas desviadas da sua rota por um destino ingrato.

Felizmente, hoje em dia, vivendo numa zona de forte emigração, sobretudo para a Alemanha, falo com muitas pessoas que por lá singraram, foram felizes, criaram os filhos e, entretanto regressados para gozar a merecida reforma, trouxeram boas recordações. É grande o poder do Homem de forjar o seu destino.

 

Foto de Gerald Bloncourt


TURISTAS POLACOS

Mudamos de cenário: Ano: 1965 ou por aí. Local: Cais de Alcântara, 07,30 h duma fria manhã de Outono. A nossa agência é responsável por organizar as excursões em terra de um barco de cruzeiro polaco, uma raridade nos tempos da Cortina de Ferro. Lá está o meu irmão com o indispensável contador, para confirmar o número de passageiros em cada um dos muitos autocarros alinhados no cais. Vindos duma Polónia hermeticamente fechada ao ocidente, os passageiros, embora bem vestidos (recordo que as senhoras usavam belos casacos de peles) não dispunham, no entanto, de um único centavo de divisas portuguesas! Nem um café poderiam beber, durante a breve estadia em solo português. Recordo-me que, ao verem que alguém no autocarro trazia na mão um atraente folheto publicitário do Restaurante Solmar, as pessoas tornavam a sair, para também pedirem algo ... que era distribuído gratuitamente, coisa impensável na terra deles. A páginas tantas, sou abordada por um pequeno grupo de turistas polacos que, num inglês algo incipiente, me pedem um enorme favor: são católicos crentes e inscreveram-se neste cruzeiro sobretudo na enorme esperança de poderem conhecer Fátima. Um desejo impossível de confessar à direcção dum cruzeiro vindo dum país oficialmente ateu e que era acompanhado por agentes da polícia política. Disseram-me: “Juntámo-nos todos na mesma camioneta, e prescindimos de ir visitar a Batalha ou Alcobaça, se em vez disso pudermos dizer uma oração em Fátima”.  O problema era que o percurso, por mais longo, se tornaria mais caro, e eles não tinham dinheiro para pagar. Que fazer? Apesar da hora, 7 da manhã, resolvi ligar ao dono da nossa agência de viagens, o Senhor Arno Harting, homem crente que há muitos anos dirigia o Conselho de Paróquia da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, em Palhavã. E, tal como esperava, obtive o consentimento dele: ele próprio assumiria o pagamento da diferença. Um belo gesto de ecumenismo. No final do dia, regressaram felizes e gratos; convidaram-me a tomar uma bebida a bordo e ofereceram-me uns pequenos bonecos de artesanato polaco, em madeira. Separámo-nos com um abraço fraterno de cristãos.

Que mais histórias nos poderia relatar o velho contador de metal? Não sei, mas gosto de as imaginar, coloridas, variadas e ... sempre humanas.

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