OBJECTOS COM HISTÓRIA: O CONTADOR DE
VIDAS
Christiane Schickert
Há dias, chegou-me às mãos a imagem dum objecto hoje perfeitamente
obsoleto, mas que me traz à memória um rol de histórias. É um instrumento
rudimentar para efectuar contagens, de “tecnologia” básica: cada pressão no
botão regista uma unidade. De fabrico alemão, terá sido produzido há cerca de
100 anos. Pertenceu ao meu irmão mais velho, já falecido, e durante os anos em
que trabalhámos juntos, numa grande agência de viagens de Lisboa, muitas vezes
o vi na sua mão. Sabemos que, nos inícios da actividade turística em Lisboa,
antes da primeira Guerra Mundial, aquela geringonça teria servido, por exemplo,
para contar os turistas alemães que se aventuravam a descobrir as belezas da
Serra de Arrábida, a partir de Azeitão, montados em ... burros!
ANOS 60, PORTUGAL
Mas agora estávamos nos anos sessenta, altura em que, empurrados pelas
difíceis condições de vida, centenas de milhares de portugueses enveredaram
pelos caminhos da emigração, rumo à Europa central: França, Alemanha, Bélgica,
Luxemburgo, entre outros países. Não poucos optaram pela via clandestina,
passando a fronteira a salto ou partindo sem rumo definido nem perspectiva
concreta de trabalho. Mas a grande maioria, oficialmente requisitada pelas
autoridades dos países de destino como mão de obra de que urgentemente
careciam, era agrupada em transportes semanais de caminho de ferro, com
transbordo em Hendaya. Estando a agência em que trabalhávamos encarregada da
organização desses transportes, tive ensejo de viver muito de perto este
verdadeiro drama humano que é a emigração.
Local: Lisboa, Estação de Santa Apolónia. Hora: 07.00 da manhã. São
centenas de homens e (poucas) mulheres, de roupa escura e semblante carregado
que se acotovelam no topo das linhas. Chegam a ser mais de 500, numa viagem. Os
destinos são Paris, Colónia e Estugarda. Na cancela de acesso ao cais, as presenças
são registadas com um “clique” no tal contador. Cada clique confirmava que mais
uma pessoa tinha recebido a sua passagem de comboio (uma minúscula contramarca
de cartão, do tamanho dos bilhetes de eléctrico da altura, e muito fácil de se
perder...), bem como o respectivo farnel. Preparados por uma empresa de catering, os farnéis continham: um
frango assado, várias “sandes” de chouriço e ovos mexidos, bolachas, algumas
peças de fruta, água e uma pequena garrafa de vinho. Comida para uma viagem de
dois dias e meio! À medida que se aproxima a hora de partida, mais lancinantes
se tornam as cenas de despedida dos muitos familiares que não se pouparam à
longa viagem desde a “terra”, de táxi ou de camioneta, para dar um último
abraço aos pais, filhos, irmãos ou amigos. Gente de aspecto humilde e
acabrunhado, os homens de boné, as mulheres de xaile, com crianças pequenas nos
braços. Lágrimas, gritos, desmaios e olhares como que empedernidos dos que
partem. Nessa altura, de Lisboa viajavam essencialmente pessoas oriundas do sul
do país: Algarve, Alentejo, Ribatejo e Estremadura, enquanto os nortenhos eram
encaminhados a partir do Porto. Nunca esquecerei as enormes listagens,
verdadeiros “lençóis”, onde era preciso dar baixa dos já presentes. Cuba,
Vidigueira, Mourão, Aljustrel, Reguengos, Gavião, nomes de tantas e tantas
localidades que se foram esvaziando dos seus homens, deixando para trás as mulheres,
as crianças e os idosos. Uma pequena
nota de humor eram os maravilhosos apelidos que surgiam, sobretudo dos alentejanos.
Por entre os vulgares Camelo, Cação e Cabaço, dois deles, por impagáveis,
ficaram gravados na minha memória: Maria Jesuína Xarope Pé-Leve; e Manuel
António Catrapoula Espingarda!
Numa manhã escura e chuvosa, faltaram à chamada quatro homens. Havendo
quem os tivesse visto na viagem da terra até Lisboa, pusemo-nos à procura em
todas dependências e átrios da estação. Já quase sobre a hora de partida, fui
dar com eles ... instalados, com toda a sua parafernália de bagagens, nos
bancos do carro eléctrico amarelo, estacionado frente à gare! Foi um episódio
que me entristeceu profundamente: como iriam aqueles seres, que nem na sua
própria terra se sabiam orientar, enfrentar um mundo totalmente diferente do
seu, em que nem a língua era a mesma?! Aliás, o “dia de Santa Apolónia” era
sempre um dia emocionalmente pesado, para todos nós. Ficava um travo amargo e
uma enorme compaixão por estas vidas desviadas da sua rota por um destino
ingrato.
Felizmente, hoje em dia, vivendo numa zona de forte emigração, sobretudo
para a Alemanha, falo com muitas pessoas que por lá singraram, foram felizes,
criaram os filhos e, entretanto regressados para gozar a merecida reforma,
trouxeram boas recordações. É grande o poder do Homem de forjar o seu destino.
TURISTAS POLACOS
Mudamos de cenário: Ano: 1965 ou por aí. Local: Cais de Alcântara,
07,30 h duma fria manhã de Outono. A nossa agência é responsável por organizar
as excursões em terra de um barco de cruzeiro polaco, uma raridade nos tempos
da Cortina de Ferro. Lá está o meu irmão com o indispensável contador, para
confirmar o número de passageiros em cada um dos muitos autocarros alinhados no
cais. Vindos duma Polónia hermeticamente fechada ao ocidente, os passageiros,
embora bem vestidos (recordo que as senhoras usavam belos casacos de peles) não
dispunham, no entanto, de um único centavo de divisas portuguesas! Nem um café
poderiam beber, durante a breve estadia em solo português. Recordo-me que, ao
verem que alguém no autocarro trazia na mão um atraente folheto publicitário do
Restaurante Solmar, as pessoas tornavam a sair, para também pedirem algo ...
que era distribuído gratuitamente, coisa impensável na terra deles. A páginas
tantas, sou abordada por um pequeno grupo de turistas polacos que, num inglês
algo incipiente, me pedem um enorme favor: são católicos crentes e inscreveram-se
neste cruzeiro sobretudo na enorme esperança de poderem conhecer Fátima. Um
desejo impossível de confessar à direcção dum cruzeiro vindo dum país
oficialmente ateu e que era acompanhado por agentes da polícia política.
Disseram-me: “Juntámo-nos todos na mesma camioneta, e prescindimos de ir
visitar a Batalha ou Alcobaça, se em vez disso pudermos dizer uma oração em
Fátima”. O problema era que o percurso,
por mais longo, se tornaria mais caro, e eles não tinham dinheiro para pagar.
Que fazer? Apesar da hora, 7 da manhã, resolvi ligar ao dono da nossa agência
de viagens, o Senhor Arno Harting, homem crente que há muitos anos dirigia o
Conselho de Paróquia da Igreja Evangélica Alemã de Lisboa, em Palhavã. E, tal
como esperava, obtive o consentimento dele: ele próprio assumiria o pagamento
da diferença. Um belo gesto de ecumenismo. No final do dia, regressaram felizes
e gratos; convidaram-me a tomar uma bebida a bordo e ofereceram-me uns pequenos
bonecos de artesanato polaco, em madeira. Separámo-nos com um abraço fraterno
de cristãos.
Que mais histórias nos poderia relatar o velho contador de metal? Não
sei, mas gosto de as imaginar, coloridas, variadas e ... sempre humanas.
............................................................................................................
A página no BADALADAS
Sem comentários:
Enviar um comentário