MEMÓRIAS PESSOAIS COMO FONTE HISTÓRICA
Joaquim Moedas Duarte
A concepção positivista, ainda dominante no séc. XIX, privilegiava o documento escrito oficial como fonte para o estudo da História. Acreditava-se que os estudos históricos, com base nesses documentos, produziriam narrativas factuais objectivas, aceites como a “verdade histórica”. O fio condutor da historiografia resultava da sucessão de acontecimentos políticos, numa prática que já vinha da Antiguidade. Era a História dos Imperadores, dos Reis, das Dinastias, dos Tratados, das Guerras. Os livros da Instrução Primária, até ao final dos anos 50 do século passado, pautavam-se por essa visão. Foi assim que muitos de nós estudámos História
Entretanto, por volta de 1930,
surgiu em França um movimento de renovação dos estudos históricos ligado à
revista Annales – Anais de História Económica e Social, que revolucionou o modo
de pesquisar e escrever História. Marc Bloch e Lucien Febvre foram os
fundadores desta escola historiográfica, integrando os métodos já em uso nas
Ciências Humanas –a Sociologia, a Antropologia, a Geografia Humana, a Economia,
a Psicologia – na abordagem histórica. Deste modo, a visão estreita do
positivismo foi substituída por uma grande angular sobre o horizonte da
actividade humana no decorrer do Tempo. Tudo passou a caber nos interesses e
preocupações dos historiadores, numa perspectiva de História Total, como lhe
chamavam os homens dos Annales. O passado, muito mais do que a sucessão dos
reis ou dos grandes chefes políticos, é, afinal, um imenso mosaico onde se
interpenetram infinitas abordagens. Da vida privada à evolução das técnicas
agrícolas, da história do urbanismo à história do trabalho, da demografia
histórica às monografias de vilas e aldeias, da história da sexualidade à
história das mentalidades, da história das empresas à história das lutas operárias,
da história da infância à história da morte – tudo pode ser objecto de estudo.
Esta visão fragmentária está bem longe da História Total, mas hoje parece
consensual que o caminho passa pelas abordagens ecléticas e pluridisciplinares
que ajudem a entender a complexidade da vida humana e dos rastos que vai
deixando ao longo do Tempo.
O PROBLEMA DAS FONTES
A diversidade de objectos de estudo
exige, naturalmente, o recurso a fontes históricas que o positivismo rejeitava.
Assim, a história contemporânea recorre hoje à imprensa escrita, à fotografia,
aos relatórios de empresa ou da polícia, às sentenças dos tribunais, às actas
de reuniões, etc. Tudo pode ser útil, numa prática que se assemelha à
investigação criminal, na procura de indícios, vestígios, restos. Os
historiadores aprenderam a incorporar os diários e arquivos pessoais, sobretudo
as memórias escritas, que articuladas e cruzadas com outras fontes, permitem
aprofundar o conhecimento do passado, não raro com novos e surpreendentes
dados. É o caso, por exemplo, das Memórias Políticas de José Relvas, publicadas
décadas depois da sua morte, tal como ele havia determinado, que vieram
iluminar aspectos obscuros dos primeiros anos da 1ª República. Tal como as
Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna enriqueceram o conhecimento
histórico das primeiras décadas do séc. XIX.
Este recurso às memórias pessoais
tem perigos evidentes. A memória é, por natureza selectiva, pois seria
impossível arquivar no cérebro tudo o que aconteceu ao autor. Por outro lado,
há que ter em conta o mecanismo psicológico do esquecimento como garantia
natural de saúde mental. Acresce que o processo de recordar e passar à escrita
é regido por escolhas conscientes, pautadas pelos valores pessoais, pela
formação e pelo enquadramento de género, nacionalidade ou classe de quem
escreve. Cabe ao historiador adoptar metodologias rigorosas que cruzem
informações e diversifiquem as perspectivas de análise, de modo a discernir a
verdade aceitável da enfabulada fantasia.
UMA MULHER NA HISTÓRIA
Estas considerações e reflexões
foram induzidas pelo aparecimento de um livro da autoria de Maria Luísa Bouza
Serrano, recentemente publicado e lançado nos Paços do Concelho de Torres
Vedras, com o título Nascida em 1944. A autora é torriense e mulher da
História. Licenciada nesta área, foi professora entre 1973 e 2014. Quando se
aposentou, decidiu continuar na História e ofereceu-se para trabalhar como
voluntária na Secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, em
Lisboa.
O primeiro resultado deste trabalho foi a publicação, em 2018, em parceria autoral com Olívia Beleza Afonso, também professora de História, de um importante acervo de documentos históricos que abrangem a História de Portugal desde meados do séc. XIV até aos nossos dias. O título é expressivo: Como fomos, assim estamos – Portugal escrito pelos Portugueses, e não só. Diz-nos como o passado se repercute no presente e molda a nossa identidade. Propõe-nos uma viagem do passado até ao presente, através “de textos, todos eles acessíveis ao público, mas nunca publicados em conjunto desta maneira” – como nos explicam as autoras. Trata-se, pois, de uma antologia original de grande utilidade e interesse, tanto para o leitor comum como para os professores de História, que encontram aqui documentos históricos importantes e de difícil acesso.
Quanto ao Nascida em 1944, de Maria Luísa Bouza Serrano, não é um trabalho de cariz académico, antes uma rememoração dos seus anos de vida, em jeito de memórias pessoais. Evitando a mera narração de factos por ordem cronológica, foi introduzindo, quando a propósito, pequenos relatos sobre pessoas e acontecimentos que tiveram eco na sua vida. E é nestes que nós, leitores, encontramos ressonâncias na nossa própria vida. Afinal, Maria Luísa caminhava perto de nós e disso nos dá conta, numa prosa escorreita, despida de subjectivismos importunos, atenta à necessidade de escrever o que viu e viveu. Ela o afirma no capítulo inicial: "E descansem, não vou encher folhas com descrições de paisagens e de estados de alma, meus ou de outras pessoas, tenho muito para contar, objectivo, factual, mesmo que por vezes com alguma, pouca, fantasia".
Organizando a narrativa em
capítulos temáticos, vamos seguindo a biografia da autora com o interesse de
quem revisita lugares conhecidos e reconhece referências a acontecimentos
culturais e políticos. Aos torrienses interessará, sobremaneira, as recordações
ligadas aos espaços que todos conhecem, como sublinha a escritora e jornalista
Joana Leitão de Barros no prefácio deste livro: «Uma outra camada de leitura
será a que permite enriquecer uma História em escala micro, a da vida rural de
Torres Vedras, a dos animados e elitistas Verões na Praia de Santa Cruz (…), em
que não poucas vezes perpassa uma ironia fina e algum sarcasmo, a par de um
grande sentido de pertença».
Cada leitor encontrará aqui as
imagens que vivem na sua própria memória. A descrição dos anos na Faculdade de
Letras de Lisboa, por exemplo, faz reviver em quem por lá estudou, os
professores, o edifício, as disciplinas, a ambiência estudantil, todo o
contexto que explica as crises académicas dos anos 60.
HISTÓRIA LOCAL
Poderão alguns perguntar: mas as
“memórias” são História?
Respondo: são uma fonte importante
para a História. Sobretudo, são um recurso para a chamada Micro-História, uma
disciplina que ganhou importância e maioridade desde há umas boas décadas. São
olhares e registos que, passados à escrita, esclarecem aspectos particulares do
passado humano, e que servem igualmente à Sociologia ou à Antropologia.
Bem sabemos que a fronteira entre a
realidade objectiva e a apreciação subjectiva é estreita e porosa. Cabe ao
escritor escolher o caminho do meio e ao leitor apreciar o resultado. Nesta
tentativa, Maria Luísa saiu-se com brilhantismo.
Assinalo, também, outro aspecto
relevante nesta obra. Maria Luísa decidiu integrar, em anexo, o estudo da
autoria de seu irmão José Alberto Santos da Costa Bastos, recentemente
falecido, intitulado Com Raízes em Torres Vedras - História e genealogias de
algumas famílias torrienses. Este é um excelente contributo para a História
Local, publicado em 2016. de circulação restrita e posto, agora, à disposição
de todo o público interessado.
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