09 agosto 2023

MEMÓRIAS PESSOAIS COMO FONTE HISTÓRICA - Jornal BADALADAS 27 Janeiro 2023

 

MEMÓRIAS PESSOAIS COMO FONTE HISTÓRICA

 Joaquim Moedas Duarte





A concepção positivista, ainda dominante no séc. XIX, privilegiava o documento escrito oficial como fonte para o estudo da História. Acreditava-se que os estudos históricos, com base nesses documentos, produziriam narrativas factuais objectivas, aceites como a “verdade histórica”. O fio condutor da historiografia resultava da sucessão de acontecimentos políticos, numa prática que já vinha da Antiguidade. Era a História dos Imperadores, dos Reis, das Dinastias, dos Tratados, das Guerras. Os livros da Instrução Primária, até ao final dos anos 50 do século passado, pautavam-se por essa visão. Foi assim que muitos de nós estudámos História

Entretanto, por volta de 1930, surgiu em França um movimento de renovação dos estudos históricos ligado à revista Annales – Anais de História Económica e Social, que revolucionou o modo de pesquisar e escrever História. Marc Bloch e Lucien Febvre foram os fundadores desta escola historiográfica, integrando os métodos já em uso nas Ciências Humanas –a Sociologia, a Antropologia, a Geografia Humana, a Economia, a Psicologia – na abordagem histórica. Deste modo, a visão estreita do positivismo foi substituída por uma grande angular sobre o horizonte da actividade humana no decorrer do Tempo. Tudo passou a caber nos interesses e preocupações dos historiadores, numa perspectiva de História Total, como lhe chamavam os homens dos Annales. O passado, muito mais do que a sucessão dos reis ou dos grandes chefes políticos, é, afinal, um imenso mosaico onde se interpenetram infinitas abordagens. Da vida privada à evolução das técnicas agrícolas, da história do urbanismo à história do trabalho, da demografia histórica às monografias de vilas e aldeias, da história da sexualidade à história das mentalidades, da história das empresas à história das lutas operárias, da história da infância à história da morte – tudo pode ser objecto de estudo. Esta visão fragmentária está bem longe da História Total, mas hoje parece consensual que o caminho passa pelas abordagens ecléticas e pluridisciplinares que ajudem a entender a complexidade da vida humana e dos rastos que vai deixando ao longo do Tempo.

 

O PROBLEMA DAS FONTES

A diversidade de objectos de estudo exige, naturalmente, o recurso a fontes históricas que o positivismo rejeitava. Assim, a história contemporânea recorre hoje à imprensa escrita, à fotografia, aos relatórios de empresa ou da polícia, às sentenças dos tribunais, às actas de reuniões, etc. Tudo pode ser útil, numa prática que se assemelha à investigação criminal, na procura de indícios, vestígios, restos. Os historiadores aprenderam a incorporar os diários e arquivos pessoais, sobretudo as memórias escritas, que articuladas e cruzadas com outras fontes, permitem aprofundar o conhecimento do passado, não raro com novos e surpreendentes dados. É o caso, por exemplo, das Memórias Políticas de José Relvas, publicadas décadas depois da sua morte, tal como ele havia determinado, que vieram iluminar aspectos obscuros dos primeiros anos da 1ª República. Tal como as Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna enriqueceram o conhecimento histórico das primeiras décadas do séc. XIX.

Este recurso às memórias pessoais tem perigos evidentes. A memória é, por natureza selectiva, pois seria impossível arquivar no cérebro tudo o que aconteceu ao autor. Por outro lado, há que ter em conta o mecanismo psicológico do esquecimento como garantia natural de saúde mental. Acresce que o processo de recordar e passar à escrita é regido por escolhas conscientes, pautadas pelos valores pessoais, pela formação e pelo enquadramento de género, nacionalidade ou classe de quem escreve. Cabe ao historiador adoptar metodologias rigorosas que cruzem informações e diversifiquem as perspectivas de análise, de modo a discernir a verdade aceitável da enfabulada fantasia.

 

UMA MULHER NA HISTÓRIA

Estas considerações e reflexões foram induzidas pelo aparecimento de um livro da autoria de Maria Luísa Bouza Serrano, recentemente publicado e lançado nos Paços do Concelho de Torres Vedras, com o título Nascida em 1944. A autora é torriense e mulher da História. Licenciada nesta área, foi professora entre 1973 e 2014. Quando se aposentou, decidiu continuar na História e ofereceu-se para trabalhar como voluntária na Secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

O primeiro resultado deste trabalho foi a publicação, em 2018, em parceria autoral com Olívia Beleza Afonso, também professora de História, de um importante acervo de documentos históricos que abrangem a História de Portugal desde meados do séc. XIV até aos nossos dias. O título é expressivo: Como fomos, assim estamos – Portugal escrito pelos Portugueses, e não só. Diz-nos como o passado se repercute no presente e molda a nossa identidade. Propõe-nos uma viagem do passado até ao presente, através “de textos, todos eles acessíveis ao público, mas nunca publicados em conjunto desta maneira” – como nos explicam as autoras. Trata-se, pois, de uma antologia original de grande utilidade e interesse, tanto para o leitor comum como para os professores de História, que encontram aqui documentos históricos importantes e de difícil acesso.


Quanto ao Nascida em 1944, de Maria Luísa Bouza Serrano, não é um trabalho de cariz académico, antes uma rememoração dos seus anos de vida, em jeito de memórias pessoais. Evitando a mera narração de factos por ordem cronológica, foi introduzindo, quando a propósito, pequenos relatos sobre pessoas e acontecimentos que tiveram eco na sua vida. E é nestes que nós, leitores, encontramos ressonâncias na nossa própria vida. Afinal, Maria Luísa caminhava perto de nós e disso nos dá conta, numa prosa escorreita, despida de subjectivismos importunos, atenta à necessidade de escrever o que viu e viveu. Ela o afirma no capítulo inicial: "E descansem, não vou encher folhas com descrições de paisagens e de estados de alma, meus ou de outras pessoas, tenho muito para contar, objectivo, factual, mesmo que por vezes com alguma, pouca, fantasia".

Organizando a narrativa em capítulos temáticos, vamos seguindo a biografia da autora com o interesse de quem revisita lugares conhecidos e reconhece referências a acontecimentos culturais e políticos. Aos torrienses interessará, sobremaneira, as recordações ligadas aos espaços que todos conhecem, como sublinha a escritora e jornalista Joana Leitão de Barros no prefácio deste livro: «Uma outra camada de leitura será a que permite enriquecer uma História em escala micro, a da vida rural de Torres Vedras, a dos animados e elitistas Verões na Praia de Santa Cruz (…), em que não poucas vezes perpassa uma ironia fina e algum sarcasmo, a par de um grande sentido de pertença».

Cada leitor encontrará aqui as imagens que vivem na sua própria memória. A descrição dos anos na Faculdade de Letras de Lisboa, por exemplo, faz reviver em quem por lá estudou, os professores, o edifício, as disciplinas, a ambiência estudantil, todo o contexto que explica as crises académicas dos anos 60.

 

HISTÓRIA LOCAL

Poderão alguns perguntar: mas as “memórias” são História?

Respondo: são uma fonte importante para a História. Sobretudo, são um recurso para a chamada Micro-História, uma disciplina que ganhou importância e maioridade desde há umas boas décadas. São olhares e registos que, passados à escrita, esclarecem aspectos particulares do passado humano, e que servem igualmente à Sociologia ou à Antropologia.

Bem sabemos que a fronteira entre a realidade objectiva e a apreciação subjectiva é estreita e porosa. Cabe ao escritor escolher o caminho do meio e ao leitor apreciar o resultado. Nesta tentativa, Maria Luísa saiu-se com brilhantismo.

Assinalo, também, outro aspecto relevante nesta obra. Maria Luísa decidiu integrar, em anexo, o estudo da autoria de seu irmão José Alberto Santos da Costa Bastos, recentemente falecido, intitulado Com Raízes em Torres Vedras - História e genealogias de algumas famílias torrienses. Este é um excelente contributo para a História Local, publicado em 2016. de circulação restrita e posto, agora, à disposição de todo o público interessado.


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