28 agosto 2020

CAIXARIA - O PRAZER DE VER O NOSSO PATRIMÓNIO

 

PÁGINA "PATRIMÓNIOS" NO JORNAL "BADALADAS" - 28 AGOSTO 2020 


CAIXARIA

O PRAZER DE VER O NOSSO PATRIMÓNIO

Joaquim Moedas Duarte (Texto e fotos)


À DESCOBERTA

Temos ouvido algumas queixas sobre o esquecimento a que estaria votado o património cultural torriense existente fora da cidade. De facto, Torres Vedras não é só o aglomerado urbano da sede concelhia, tem em seu redor um vasto território de 400km2 que faz dele o concelho mais extenso do antigo distrito de Lisboa. Nas doze freguesias do termo concelhio há um riquíssimo espólio patrimonial que importa divulgar e valorizar. A Associação do Património tem procurado fazê-lo nas suas diversas actividades:  páginas nas redes sociais, passeios a pé, visitas guiadas e intervenções na imprensa regional, como esta página “Patrimónios”, que publicamos mensalmente no Badaladas.

Há dias fomos convidados a elaborar pequenos textos introdutórios a quatro concertos vídeo-gravados em igrejas do concelho. Logo nos dispusemos a colaborar, fiéis ao que atrás dissemos. Há um valioso património edificado que é necessário lembrar. Um exemplar notável é a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, na Caixaria, Dois Portos, uma das escolhidas para esses concertos.

A Estrada Nacional nº 248, entre Runa e Dois Portos, passa ao lado da pequena povoação da Caixaria. É necessário sair da estrada e entrar por uma das duas vias de acesso. Foi o que fizemos. A experiência já nos ensinou que vale a pena fazer incursões inesperadas e palmilhar as ruas com os olhos disponíveis e curiosos. Lá encontrámos velhas adegas, portões antigos, cantarias vetustas. Ou um poço público com bomba de volante accionada manualmente, um equipamento que a Casa Hipólito fabricava nos anos 50.



Surpreendente, foi a descoberta do belíssimo relógio de sol, colocado na esquina de uma casa, a cerca de seis metros de altura, numa travessa próxima do adro da igreja. Datado de 1733, de orientação duplamente declinante, em pedra lioz, ainda cumpre a sua função, marcando horas num intervalo das 5 da manhã às 7 da tarde.[1] 




O adro da igreja convida a uma paragem. Dos bancos junto ao muro, na sombra de frescas faias ramalhudas, observamos o vale da Ribaldeira e as colinas que o rodeiam, imagem esplendorosa do verdejante Oeste estremenho, numa saturação de adjectivos que não conseguimos reprimir, absortos que estamos na luz da tarde que nos envolve.  




IGREJA DE NOSSA SENHORA DOS PRAZERES    


                  

A invocação mariana da padroeira celebra as alegrias, ou prazeres, da Virgem no seu percurso terreno.

Olhemos a fachada. Típica do século XVIII, com o remate das linhas onduladas das volutas e os fogaréus no cimo das falsas pilastras, sugeridas pelas barras verticais azuis. Os mesmos elementos encontramos na torre sineira, bem proporcionada, a poente. O conjunto tem harmonia, sublinhada pelo contraste entre as superfícies brancas e as barras azuis.


O interior é de feição barroca, bem expressa na exuberância e variedade dos elementos decorativos: o tecto de berço, com o anagrama mariano, os lírios e as composições geométricas; a pintura marmoreada das paredes, com efeitos tromp l’oeil (ilusão de óptica); o púlpito com talha dourada; e o coro alto, com sua imponente balaustrada de madeira a imitar o mármore.

          


       

É na capela-mór que encontramos o conceito da arte total, do barroco joanino: o retábulo setecentista, com colunas salomónicas a delimitarem o espaço das imagens sacras em que se destaca a padroeira, no trono central; nas paredes laterais, as pinturas, de desenho ingénuo, com cenas da vida da Virgem, os painéis de azulejos com simbologia mariana e a imitação de elementos arquitectónicos. A existência dos degraus que conduzem ao plano sobre-elevado do altar, e nos quais encontramos decoração com embutidos de mármore, recorda o que foi o templo primitivo do séc. XVII, atestado por uma inscrição de 1640.







Na sacristia, um arcaz singelo guarda peças admiráveis de paramentaria e têxteis litúrgicos.

 

PARTICIPAÇÃO DAS POPULAÇÕES LOCAIS

Não nos cansamos de elogiar o papel importantíssimo das comunidades locais na preservação do seu património. Coordenadas pelos párocos, cada vez mais sensibilizados para estas questões, elas têm sido de uma enorme generosidade que motiva e arrasta a participação de entidades exteriores, como os antigos governadores civis e as autarquias locais – Câmara Municipal e Juntas de Freguesia. Foi esta dinâmica que permitiu as dispendiosas obras de manutenção e restauro da igreja da Caixaria, que decorreram entre 1997 e 2000. Nas conversas que tivemos durante a nossa visita, na companhia do pároco actual,  Pe. Rui Gregório, registámos nomes e factos. Correndo o risco de esquecermos alguém, nomeamos a Comissão inicial que dinamizou a angariação de fundos: Gabriela Correia, zeladora da igreja, como já o havia sido sua mãe, Silvina Tomé; Nazaré Tomás; os irmãos Marcos, António e Joaquim José; Américo Romão. Almoços de convívio, exposições, caminhada, sorteios e leilões nas festas, tudo se fez para juntar os milhares de contos necessários. Apareceram dádivas avultadas de pessoas anónimas.

O resultado está à vista. Aquela pequena povoação pode mostrar, com legítimo orgulho, um templo que é a expressão viva da adaptação dos cânones barrocos eruditos ao gosto e aos escassos recursos populares.



[1] Medição do tempo em Torres Vedras – José Mota Tavares et al., Câmara Municipal de Torres Vedras, 2012, p. 40, 41.




01 agosto 2020

O EDIFÍCIO DAS TERMAS DA FONTE NOVA

PÁGINA "PATRIMÓNIOS" NO JORNAL BADALADAS - 31 de Julho de 2020




O EDIFÍCIO DAS TERMAS DA FONTE NOVA

PRESENTE


 


Desde sempre nos habituámos a ver este edifício, na Rua Santos Bernardes, já perto da rotunda que antecede a zona do Hospital. É mais antigo do que qualquer um de nós, terá sido construído por meados do séc. XIX. Habitado até há cerca de 15 anos, ficou devoluto e entrou em rápida degradação. Os dois logradouros que o rodeiam transformaram-se em matagais quase impenetráveis. Olhávamos para aquele imóvel e sentíamos o desconforto da decadência. Janelas entaipadas, empenas escondidas. Quando a vegetação permitia, conseguíamos ver a fachada de um pavilhão ao lado da casa, com um portal expressivo e, sobre ele, uma inscrição: TERMAS DA FONTE NOVA. A designação de Fonte Nova liga-se à existência de um antigo fontanário que existiu perto dali, construído no século XVI, chamado de “novo” por antinomia com o “velho”, do século XIV, o bem conhecido Chafariz dos Canos. Um e outro garantiam o abastecimento de água a quem chegava ou partia pelas duas principais vias de acesso à velha urbe torriense.

A Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, por diversas vezes, fez sentir junto dos órgãos autárquicos a necessidade de preservar aquele conjunto edificado. Não só por ser o único vestígio oitocentista naquela área mais recente da cidade, mas pela qualidade arquitectónica e pelo conteúdo memorial a ele ligado. Foi com regozijo que soubemos da sua compra pela Câmara Municipal, em Janeiro deste ano. Quando há dias visitámos aquele espaço, verificámos o estado de ruína das Termas mas, devido à limpeza previamente feita, observámos as potencialidades que conserva, nomeadamente o edifício principal e os logradouros envolventes – o da fachada principal e o das traseiras, voltado à R. Capitão Figueiroa Rego.



PASSADO

Litografia da revista O OCIDENTE

A revista O Ocidente que se publicava em Lisboa, mas versava assuntos de Portugal e do estrangeiro, inseriu no seu número de 5 de Junho de 1895, uma reportagem intitulada “Visita a Torres Vedras – Inauguração das águas da Fonte Nova”, assinada por Caetano Alberto e ilustrada com litografia feita a partir de uma fotografia de Martinez Pozal. A prosa expressiva e a bela ilustração transportam-nos à época em que António dos Santos Bernardes, proprietário da casa, convidou altas personalidades da terra e da capital, bem como várias bandas de música, para a inauguração das suas termas. Festa rija que incluiu almoço nas Termas dos Cucos e jantar no Hotel Natividade. O repórter, encantado com as paisagens do Oeste e as degustações refeiçoeiras, mais se deliciou com as moçoilas que serviam a água aos visitantes das novas termas inauguradas naquela Quinta Feira de Ascensão, 23 de Maio de 1895. Ele o diz: «Aquelas águas, servidas por umas empregadas tão garridas e tão pitorescamente formosas, devem necessariamente duplicar os seus efeitos salutares…».

Salinas Calado, notável patrimonialista que viveu muitos anos em Torres Vedras, já aposentado, acalmava saudades em crónicas regulares no Badaladas. Em 16 de Junho de 1962 dava conta de um folheto que casualmente lhe viera às mãos, intitulado “Fonte Nova (Torres Vedras) – Águas medicinais”, no qual “o sábio analista Charles Lepierre” assegurava as qualidades medicinais daquelas águas, indicadas para males de estômago, entre outros.

Adão de Carvalho, que tanto amou e divulgou as antiguidades torrienses, assinalou o centenário da inauguração das termas da Fonte Nova com um artigo no Badaladas de 19 de Maio de 1995. Socorrendo-se dos apontamentos e recortes antigos de imprensa que laboriosamente colecionava, lembra que as termas foram uma iniciativa do proprietário que as mandou construir sobre a nascente daquelas águas medicinais. Previamente analisadas, assegurou-se do seu valor – foram comparadas às das Pedras Salgadas e Vidago. A verdade é que o povo já se habituara a procurar nelas o alívio das más digestões e, até, do reumático. A construção das termas respondia à procura, garantindo qualidade de manuseio e assistência médica no seu consumo.

As termas funcionaram cerca de cinco anos e, a seguir foram encerradas pois as despesas eram superiores às receitas. Motivo prosaico a que se juntou o decréscimo da qualidade da água, talvez devido à maior procura e à proximidade de um número crescente de habitações. O proprietário morreu e o sobrinho ainda permitiu, durante algum tempo, o usufruto gratuito das águas.

A propriedade acabou por ser adquirida mais tarde pela família Chichorro, da Quinta de Vale de Galegos, que a manteve praticamente até aos nossos dias.


FUTURO


Desenho tosco, apenas indicativo

De acordo com o site da Câmara Municipal de Torres Vedras, «o procedimento de concurso público para conceção, realização de obras de requalificação e exploração para fins hoteleiros, termais e de restauração do edifício das antigas “Águas Termais da Fonte Nova” insere-se no “Programa Estratégico de Oferta Hoteleira da Cidade de Torres Vedras”».

Significa, pois, que aquele espaço será requalificado e reactivado. O auto de vistoria, realizado pela Divisão de Gestão Urbanística, com a colaboração da Área de Regeneração Urbana, analisou pormenorizadamente todo o conjunto e apontou como orientação de respeito obrigatório a manutenção da traça primitiva do edificado e, «caso seja equacionada a possibilidade de ampliação do edifício, de modo a viabilizar o investimento na sua reabilitação e revitalização, (…) que essa ampliação se efetue para a Rua Capitão João Figueirôa Rego, preenchendo o espaço do logradouro compreendido entre a fachada poente do edifício habitacional e o prédio contíguo com o n.º 3 desta rua».  

Aguardemos, agora, a coragem e o investimento necessários ao ressurgimento da Fonte Nova.

Direcção

da Associação para a Defesa e Divulgação

do Património Cultural de Torres Vedras


Nota publicada na página do Facebook de Joaquim Moedas Duarte:

Complementando o que anteriormente aqui deixei escrito sobre o edifício das Termas da Fonte Nova, transcrevo a parte do Auto de Vistoria, realizado pela Divisão de Gestão Urbanística, com a colaboração da Área de Regeneração Urbana, que refere o que deve ser respeitado na futura recuperação do edifício.
Lembro que a imagem do edifício futuro é apenas desenho tosco que não passa disso.
O documento pode ser analisado pelos interessados na Câmara Municipal ou pedido por mail.
Dada a sua extensão, não é viável a sua reprodução neste espaço.


AUTO DE VISTORIA:

(...) [ Descrição pormenorizada de todo o conjunto, com enumeração das anomalias e estado das estruturas, pavimentos, paredes, tetos, etc. ]

«2. Elementos Patrimoniais a preservar nos edifícios

2.1 Edifício Habitacional

Avaliado o edifício habitacional, considerou-se que deveriam ser element
A escada interior principal do edifício que se encontra em bom estado de conservação, devendo manter-se a sua forma, guarda e revestimento dos degraus em madeira;

Os tetos trabalhados em estuque e madeira (esta pode ser substituída por madeira nova), sobretudo no piso térreo;

Os vãos das portas interiores principais dos diversos compartimentos, sobretudo, as que apresentam na parte superior do vão elementos em vidro;

Procurar aproveitar as portas interiores em madeira que estejam em bom estado;
Os pavimentos cerâmicos do piso térreo;

Na Cozinha e na instalação sanitária do piso 1, deverão ser preservados a chaminé, os elementos de azulejaria e os pavimentos cerâmicos;

Os pavimentos em madeira do piso térreo e do piso 1 e sótão deverão ser reabilitados, devendo ser substituídos por madeira nova, nos casos em que não seja possível manter os existentes;

Os rodapés em madeira do piso térreo também deverão ser reabilitados;

Ao nível do exterior do edifício deverão manter-se as fachadas principais, com a métrica dos vãos, materiais das molduras dos vãos, materiais da fachada e dos vãos (madeira) e cor da fachada (amarelo torrado).

As portas e janelas exteriores cujo material em madeira esteja em bom estado deve valorizar-se a sua recuperação em detrimento de colocação de novos vãos em madeira;

As testas dos vãos interiores e exteriores com bandeira em vidro, deverão ser repostos/reabilitados com o mesmo desenho e métrica, existentes;

A chaminé principal do edifício deverá igualmente ser mantida. Deverá manter-se o pé-direito dos pisos térreo e piso 1.
Na fachada poente existem ainda uma varanda e uma escada exterior metálica em caracol, cuja manutenção deverá ser equacionada, caso o edifício seja ampliado na Rua Capitão João Figueirôa Rego. Neste caso deverá equacionar-se a possibilidade de relocalização da escada exterior noutro local do edifício.

Considera esta comissão que poderá equacionar-se para um aproveitamento do piso de sótão, a subida do arranque da cobertura, cuja morfologia poderá ser alterada, através o aumento da cota da cumeeira.

2.2 Edifício das Termas

No edifício das termas deverá procurar-se manter a sua cércea e volumetria, assim como a imagem exterior que tinha e que consta da imagem acima.

Deverão ainda manter-se:

Os pavimentos cerâmicos e azulejos;
A escadaria de acesso à fonte termal e o compartimento com os bancos; Não foi possível visualizar a fonte termal, devido à densa vegetação
existente, mas deverá procurar-se manter este elemento, como memória do local;

Ao nível do exterior, e tal como do edifício principal deverá manter-se a imagem, métrica dos vãos e materiais associados aos vãos e fachada, assim como a sua cor;

No que diz respeito à cobertura, deverá ser encontrada uma solução que, não obstante a sua contemporaneidade, resulte de uma reinterpretação da
morfologia original, incluindo a iluminação zenital, sem comprometer a identidade do edifício.

2.3 Logradouro

O logradouro principal para a Rua Santos Bernardes deverá manter o seu estado original, assim como os muros, portão principal e gradeamento em ferro, que deverá ser preservado. Poderá admitir-se, no entanto, uma alteração do muro na zona junto ao edifício com o n.º 3 da Rua Santos Bernardes de modo a também valorizar o espaço público e acessos ao recinto, mas sempre mantendo o pórtico preexistente no respetivo local.

Caso seja equacionada a possibilidade de ampliação do edifício, de modo a viabilizar o investimento na sua reabilitação e revitalização, esta comissão aconselha que essa ampliação se efetue para a Rua Capitão João Figueirôa Rego, preenchendo o espaço do logradouro compreendido entre a fachada poente do edifício habitacional e o prédio contíguo com o n.º 3 desta rua.

Uma ampliação do edifício nesta rua permitiria também anular a empena que o n.º
3 da Rua Capitão João Figueirôa Rego gera sobre o terreno.

[ Fotos com indicações diversas]

(...)


4. Conclusão
Sugere-se que as intervenções nos edifícios e logradouro, obedeçam aos seguintes princípios:

Habitação – a intervenção deve ser mais ligeira, voltada para conservação e reabilitação, onde a quantidade de elementos originais justifica o seu reaproveitamento acompanhado pela reposição de elementos em falta: estrutura, soalho, azulejos, mosaicos, carpintarias, etc. Conseguir uma solução que garanta os princípios de autenticidade e reversibilidade do património existente. A futura intervenção não deve ser demasiado invasiva, aproveitando o máximo de compartimentos interiores, para a integridade estrutural não ficar comprometida.

Termas – exige uma reabilitação mais profunda, onde os elementos a aproveitar são em menor quantidade, não justificando recorrer a imitações.

Logradouro – ampliação/construção nova, cuja solução respeite a preexistência, mas que assuma a sua contemporaneidade