31 dezembro 2021

CASTELO DE TORRES – (1ª parte) Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS, 5 Novembro 2021

 

CASTELO DE TORRES – RECONSTRUIR OU CONSERVAR? (1ª parte)

José Pedro Sobreiro | Joaquim Moedas Duarte



Na campanha para as recentes eleições autárquicas, o tema do “Castelo de Torres Vedras” foi abordado por algumas forças políticas. A ideia essencial era de que aquelas ruínas estavam abandonadas e esquecidas, havia que recuperá-las e procurar ideias criativas para o seu uso.

Não há nada de reprovável nisto, antes pelo contrário, revela preocupação com o nosso Património construído e o desejo de o ver valorizado – ideias que compartilhamos.

A abordagem que aqui fazemos não pretende contestar, antes contribuir para uma reflexão mais sustentada e informada acerca do mais visível monumento torriense, aquela silhueta única que todos os dias atrai o nosso olhar, quando caminhamos nas ruas da velha urbe. Santa Maria do Castelo, o torreão e as paredes do palácio dos alcaides – que impropriamente chamamos de “castelo” – são a marca de muitos séculos e das gerações que nos precederam.

 

 



LONGA HISTÓRIA

Na região de Torres Vedras, durante a Pré-História, fixaram-se numerosos núcleos de população agro-pastoril, que viviam em castros, pequenos povoados no cimo dos montes. A  colina onde hoje assenta o nosso Castelo terá sido ocupada por um desses castros. A orografia do lugar permite defesa eficaz e garante abastecimento de água, que lhe corre no sopé. Posteriormente, todos os povos que o correr da História trouxe à Península Ibérica ocuparam aquele monte, tanto mais que a sua encosta sul, de pendente mais suave e voltada ao sol, convidava à fixação humana. Com a ocupação romana no século II a.C., os povos primitivos foram subjugados. Seis séculos depois, seria a ocupação romana a extinguir-se, com a chegada dos Suevos e Visigodos, também estes substituídos pela ocupação árabe a partir do início do séc. VIII. A colina fortificada viria a cair na posse dos reconquistadores cristãos no tempo de D. Afonso Henriques, já em pleno século XII e, com este, a integrar o novo reino de Portugal. Os primeiros reis sediavam-se na alcáçova, quando por aqui passavam, substituindo-a, nos finais do séc. XIII, por um Paço mais abaixo, já fora da cerca castelar.

No tempo de D. Manuel I, reconstruiu-se a muralha da cerca defensiva do morro e erigiu-se a nova fortaleza que se tornou a residência dos Soares Alarcão, família que deteve a alcaidaria da vila por várias gerações, abandonando o Paço do Patim, onde anteriormente residia. Para além da defesa militar, a fortaleza passou a ter função residencial, daí chamar-se Paço dos Alcaides à parte superior do castelo. Tratava-se então de uma residência senhorial, construída sobre as paredes de uma anterior construção – um castelejo medieval, com a sua torre de menagem, do qual nada se sabe. O novo edifício foi adaptado às funções residenciais da nobreza, que na época procurava já um certo tipo de conforto e uma afirmação de poder pela ostentação. Daí os grandes janelões com conversadeiras que, vistos cá de baixo, parecem ameias. Sabemos, por um documento do séc. XVII, que o Paço tinha imponência, mas, infelizmente, não chegou até nós nenhuma imagem. O que dele resta – as quatro paredes e, sobretudo, o grande torreão com uma silhueta única que não se parece com mais nenhuma do país – marca a transição do castelo do tipo medieval para uma fortaleza renascentista, caracterizada por novas formas de lidar com a prática da pirobalística. Em Portugal conhecem-se apenas os casos do castelo de Évora Monte e Vila Viçosa, atribuídos a Francisco de Arruda que projectou, antes destes, o Paço do castelo de Torres Vedras, no início do séc. XVI.

Foi esta construção que o terramoto de 1755 arruinou e que nunca mais foi reconstruída. Em 1810, o castelo foi utilizado como base de canhoneiras, durante as invasões francesas, o que exigiu grandes alterações na estrutura das muralhas – na parte norte foram retiradas as ameias – para o adaptar ao tipo de artilharia pesada praticada no séc XIX. Em 1846, num episódio de guerra civil, foi lugar de acampamento militar com duas bocas de artilharia. Posteriormente, aquele morro perdeu relevância militar e centralidade cívica. A decadência e o abandono acentuaram-se. Muitas das suas pedras foram retiradas pela população para construção das casas próximas – o que levou a Câmara Municipal, por várias vezes, a publicar editais a proibir tal prática.

Durante a primeira metade do séc. XX o castelo sofreu algumas intervenções, como a abertura de um fosso ligado a uma das cisternas, para abastecimento de água à vila, de que a abertura rasgada a meio da vertente leste do morro que sustenta o paço é testemunho. Mais tarde, também se procedeu ao preenchimento de grandes vazios em partes da parede do paço, a norte e a leste. Esta última apresentava uma abertura larga que permitia ver os jogos do Torriense ao domingo. De resto, o castelo servia de palco às brincadeiras dos catraios e aos acampamentos da Mocidade Portuguesa, no 28 de Maio.

Por alturas de meados do mesmo século e sob o ímpeto comemorativo dos centenários, o então presidente da Câmara, Rogério de Figueiroa Rego, decidiu, sem qualquer base histórica, mandar reconstruir as ameias do torreão, e lá colocar um enorme brasão de Torres, com lâmpadas eléctricas, que ali permaneceu durante muitos anos. É ainda desta época a plantação de arvoredo na encosta norte do morro, com a finalidade de segurar as terras e embelezar o monumento – acabando esta última intenção por ter efeito contrário, pois ocultou-o da nossa vista.

 

UMA POUSADA NO CASTELO?

Nos primeiros tempos da Associação do Património, – início dos anos 80 – era frequente alguém perguntar porque é que ela não elegia a reconstrução do Paço do castelo como uma das suas prioridades. A resposta tinha de ser, invariavelmente, que não se sabia como ele era na sua origem. Todos gostaríamos de ter um Castelo inteiro e bem conservado na nossa terra, mas a dedicação à causa do património tem, como premissa básica, o respeito pela verdade histórica e a rejeição de fantasias.

Cabe aqui lembrar o episódio da “pousada “nos anos 80 do século passado. O vereador da cultura e turismo de então, António Carneiro, um dos fundadores desta Associação, propôs-se eleger como um dos objectivos da sua acção a construção de uma pousada no Castelo de Torres Vedras, ideia que logo granjeou entusiasmo junto de alguns torrienses. A Direcção da Associação  decidiu alertar o vereador para as dificuldades que se apresentavam: não se sabia como era o Paço e sendo assim, não seria razoável tal desiderato, a menos que se desrespeitasse a preocupação com o rigor, atitude necessária a estes empreendimentos.

Sabendo ouvir quem considerava ser conhecedor da História e das práticas responsáveis nesta matéria, António Carneiro solicitou à Direcção que agendasse um encontro com um responsável da Direção Geral de Turismo (DGT), que apoiava a ideia da pousada, a fim de lhe explicar as  objecções. Essa reunião ocorreu em Lisboa e nela participaram José Pedro Sobreiro e Carlos Cunha, a quem foram mostrados alguns estudos do respectivo anteprojeto (pois já estava nessa fase). Os desenhos apresentavam elementos medievalistas típicos – arcos ogivais, abóbadas de nervuras, etc. – sem qualquer ligação com os elementos construtivos visíveis no terreno. Não tinha sido feita a mínima pesquisa histórica e o que viram era um autêntico delírio de fantasia. Foi essa opinião que defenderam, com conhecimento de causa e argumentos ponderáveis. Decorrido algum tempo, veio a saber-se que a DGT tinha desistido do projecto da pousada. Para além da falta de sustentabilidade documental e histórica, terão contribuído para tal decisão factores físicos evidentes: a inexistência de uma segunda porta, vias estreitas e íngremes, e reduzido espaço exterior para estacionamento de veículos de acesso e de abastecimento. Uma unidade hoteleira, ou qualquer edifício de serviços, exigiria amplos espaços envolventes, além dos custos incomportáveis de infra-estruturas, de águas, saneamento e equipamentos imprescindíveis ao seu funcionamento. Os anos passaram. A consciência de que as condições turísticas actuais, em que a Pousada não é um equipamento de turismo de massas, antes pelo contrário, levou ao abandono da ideia que parecia ter viabilidade há trinta anos atrás.

Hoje, é plausível duvidar-se que a comunidade torriense aceite de bom grado a destruição da imagem histórica que tantas gerações se habituaram a olhar – a velha igreja de duas torres encostada às ruínas do palácio e ao torreão manuelino – venerável ícone simbólico da identidade torriense.

(2ª Parte a publicar em 26 de Novembro de 2021)




25 setembro 2021

MURALHA DE TORRES VEDRAS

 

MURALHA DE TORRES VEDRAS

Como salvaguardar os seus vestígios?

...

Joaquim Moedas Duarte

 


O BADALADAS  de 10 de Setembro deste ano, publicou a seguinte nota: «Uma atenta e sensível leitora ligou-nos para que pedíssemos à Câmara, ao Museu ou à Associação do Património para olharem com outros olhos e cuidarem do que resta de uma das antigas muralhas da vetusta Turres Veteras, a qual está hoje numa montra de vidro sujo e com ervas daninhas quase da sua altura. O pedido está formulado!»

Respondemos a este pedido com todo o gosto. É que nós, Associação do Património, há muito que estamos preocupados com esta questão. Sucintamente, recordemos alguns factos.

No início de 1997, aquando da iminente demolição do stand de automóveis do Sr. Adelino Sousa, situado frente ao Chafariz dos Canos, a Associação do Património solicitou “à Câmara Municipal, com a maior urgência, a realização de uma curta intervenção de pesquisa arqueológica, em articulação com o Museu Municipal Leonel Trindade, no sentido de averiguar eventuais vestígios da antiga muralha da vila que, segundo documentação antiga, por ali passaria e da qual não se conheciam, à data, quaisquer testemunhos”. Esta iniciativa foi reforçada por um artigo no Badaladas, em 18 de Abril daquele ano, da autoria de Manuel Clemente - actual Patriarca de Lisboa e sócio, desde sempre, da Associação – no qual se faziam sugestões e recomendações pertinentes sobre a “necessidade de conservar e valorizar este importante e excepcional património”.

Dada a proximidade de um monumento nacional – o Chafariz dos Canos – os trâmites legais de autorização e definição de condicionantes para a realização da obra demorou algum tempo, mas acabou por iniciar-se, com a intervenção simultânea de uma equipa de arqueólogos e técnicos do Museu Municipal, que procederam às sondagens, investigação local e recolha de informações. Os trabalhos arqueológicos foram concluídos em Junho de 2001 e, das várias conclusões e informações a que chegaram, destacamos a confirmação da “existência da muralha tardo-medieval – sobre cuja efectiva construção existiam ainda muitas dúvidas – e da sua porta situada na antiga Rua da Corredoura, atestada pela confluência da estrutura com a rua. A porta situar-se-ia a meio da rua e dela já dificilmente restarão quaisquer vestígios”. O relatório dos trabalhos arqueológicos sublinhava que “a partir do momento em que se verificou a imponência e monumentalidade da estrutura descoberta e se percebeu o seu valor histórico, a direcção científica dos trabalhos chamou ao processo a Divisão de Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Torres Vedras e o então IPPAR, a fim de se estudar a possibilidade de integrar a estrutura na nova construção, quer salvaguardando-a integralmente, quer mantendo a sua memória no futuro imóvel, de forma adequada”.

Em reuniões posteriores, entre os promotores da obra, a Câmara Municipal e representantes do IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico), ficou decidido salvaguardar o troço da muralha medieval que fora descoberto.

O processo parecia bem encaminhado, mas o facto de a loja com os vestígios da muralha ser propriedade privada e o proprietário exigir, naturalmente, ser ressarcido, mas apresentando valores incomportáveis, levou a um impasse sobre a necessária intervenção valorizadora daquele património histórico. E os anos foram passando. Inconformada com a situação, a Associação do Património de Torres Vedras contactou a Junta de Freguesia de S. Pedro e Santiago, bem como os serviços camarários e, em 20 de Julho de 2011, apresentou um Memorando no qual se disponibilizava para colaborar numa solução que dignificasse aquele espaço. Tal iniciativa ia ao encontro das preocupações da Junta de Freguesia que, correndo o risco de abuso indevido – como chegou a ser acusada pelo proprietário – procedia regularmente à limpeza daquele espaço. Esse Memorando foi também publicado no blogue desta Associação (ver:

 https://patrimoniodetorresvedras.blogspot.com/2011/07/o-que-resta-da-velha-muralha.html )

 

IDEIAS PARA UM CENTRO INTERPRETATIVO DA CORREDOURA (CIC)

 

(Primeiro esboço, desenho de José Pedro Sobreiro)


(Segundo esboço, desenho de José Pedro Sobreiro)

Resumidamente, a proposta que apresentámos e que continuamos a defender, tem como objectivo a valorização do único vestígio da muralha medieval da Vila de Torres Vedras, posto a descoberto em 2001, que se encontra situado na cave de um edifício em frente do Chafariz dos Canos. Este pequeno troço de muralha situa-se nas imediações do que seria a chamada Porta da Corredoura, Sendo difícil conciliar a sua presença e visibilidade com outras funções, designadamente comerciais, a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras (ADDPCTV) propõe a criação naquele espaço de um pequeno centro interpretativo da Muralha Medieval assim como do Chafariz dos Canos, existente naquele largo, recentemente restaurado. Criar-se- á, assim, um motivo de interesse pedagógico para a história da cidade que valorizará também o monumento mais singular de Torres Vedras.

A proposta, ainda em esboço, assenta na ideia da construção de uma plataforma parcial ao nível do piso térreo, em L, que permita o acesso público (condicionado) a um espaço expositivo onde através de painéis infográficos, fotografias e maquete tridimensional, se dê a conhecer a história e as características do monumento e da muralha/vila medieval. Sobre a abertura ao público, a ideia é, pelo menos da nossa parte, que esta seja condicionada a visitas previamente solicitadas (escolas, grupos, visitantes especiais,etc), assumindo esta associação o compromisso de assegurar o seu acompanhamento.

Considera-se que a sua abertura diária não se justificará, pelos encargos decorrentes. Mesmo assim, cremos que a proposta terá um efeito positivo em termos de informação pois que todo o dispositivo ficará visível do exterior (tal com agora, de resto)

A ADDPCTV disponibiliza-se para assegurar os conteúdos históricos do Centro Interpretativo, bem como para ministrar Formação e dar apoio ao seu funcionamento.

Do documento, então apresentado, fazia parte um esboço de intervenção, ao qual se juntaria outro, algum tempo depois, ambos da autoria de José Pedro Sobreiro.

 

 

(A Porta da Corredoura, hipótese interpretativa em desenho de José Pedro Sobreiro)


(O que resta da muralha – foto de 2011)

 

UM DOCUMENTO NOTÁVEL

         No texto principal desta página PATRIMÓNIOS transcrevemos algumas frases que retirámos do relatório intitulado “Porta da Corredoura, Torres Vedras: Resultados dos Trabalhos Arqueológicos”, da autoria de Isabel Luna e Guilherme Cardoso, consultado em 21/09/2021 aqui: https://historiasdetorresvedras.wordpress.com/2012/09/27/porta-da-corredoura/

Trata-se de um documento notável. Ali estão bem patentes as fases de uma campanha arqueológica, a metodologia seguida, a contextualização histórica, a enumeração exaustiva dos elementos recolhidos com as correspondentes imagens, bem como as conclusões e recomendações para aplicação futura.

Dos mesmos autores está também disponível outro texto que completa as informações do primeiro sobre a vila medieval, que consultámos na mesma data:

“A urbe de Torres Vedras e a sua cerca medieva” in: Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI) - Volume I, Coord. - Isabel Cristina Ferreira Fernandes, Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola. Disponível in:

https://www.academia.edu/9229797/LUNA_Isabel_e_CARDOSO_Guilherme_A_urbe_de_Torres_Vedras_e_a_sua_cerca_medieva



UM MUSEU DE COMUNIDADE - Memórias do Ti’Alex

 

UM MUSEU DE COMUNIDADE 

Memórias do Ti’Alex na Associação  Recreativa e Cultural da Praia

da Assenta

Joaquim Moedas Duarte

 (Publicado na página PATRIMÓNIOS, semanário BADALADAS, Torres Vedras, 27 Agosto 2021)

Tenho nas mãos o Diploma que atesta que Alexandre Afonso completou, em 5h. 41m. e 18s, a 1ª Maratona de Torres Vedras, no dia 12 de Outubro de 1980. Espanto-me com a marca: é mais do dobro que um atleta mediano demora a percorrer os 42,195 km da Maratona. A explicação está numa nota manuscrita, no reverso do Diploma: «O atleta mais idoso que percorreu a Maratona no nosso país. Alexandre Afonso um jovem recordista português aos 68 anos. Mais do que um Diploma, o presente certificado é um hino de louvor à eterna juventude de espírito». Assina, pela Organização, António Fortunato – torriense que é hoje, quarenta e um anos depois, o atleta veterano mais medalhado de Portugal.  


Ti’ Alex em plena corrida, anos 80 (Espólio do Ti’Alex)


Este Diploma é um dos muitos documentos que fazem parte do espólio doado por Alexandre Afonso – que todos conheciam por Ti‘Alex – à Associação Recreativa e Cultural da Praia da Assenta, povoação da freguesia de S. Pedro da Cadeira. Acto de doação que foi uma forma de reconhecimento pela comunidade que o acolheu no crepúsculo da sua vida e onde, pela primeira vez, já com 65 anos, participou numa corrida de atletismo entre Cambelas e Assenta. Do espólio fazem parte vários dossiês que Ti’Alex foi organizando ao longo da vida para guardar os programas das provas, as fotos e os recortes de jornais que lhe faziam referência. E também dezenas de medalhas, troféus, placas distintivas, recordações. Imagens do legítimo orgulho de um homem que pintou a vida com as cores da alegria e da convivialidade, até ao dia 21 de Junho de 1989, quando a morte o levou à derradeira meta.

Durante algumas horas compulsei este espólio magnífico, levado pela curiosidade e pelo fascínio. É que eu ainda me lembrava de ter visto o Ti’Alex numa das Maratonas de Torres Vedras, meados dos anos 80, no seu passo cadenciado, ar prazenteiro, já muito atrasado – era quase sempre o último a chegar –feliz por competir e nunca desistir, de tal modo que os organizadores das provas não permitiam que se fechassem as classificações finais sem que ele chegasse. “Ninguém se vai embora, falta chegar o Ti’Alex!”. E ele chegava, num cansaço controlado que lhe permitia ainda fazer o seu número final: puxava de uma pequena “gaita de beiços” que trazia no bolso e tocava duas ou três modinhas populares, por entre risos e festejos de quem se encantava com este campeão da vida.

Os dossiês que referi acima não dizem respeito apenas ao atletismo – até porque este chegou tardiamente à vida de Alexandre Afonso – eles documentam a outra faceta notabilíssima deste homem, a de músico. E a culpa foi do pai que lhe ofereceu, como prémio do exame da 4ª classe, uma pequena harmónica bocal que o rapazito logo aprendeu a tocar com grande perícia.

 

A ORQUESTRA ALDRABÓFONA

Em meados dos anos 30, em Lisboa, cerca de vinte rapazes divertidos, um tanto extravagantes e executantes musicais de instrumentos diversos, constituiu-se como agrupamento musical com o nome de Orquestra Aldrabófona. Iam para o palco e durante hora e meia, divertiam-se e divertiam o público com peças musicais, piadas, anedotas, gagues e o mais que a inventiva criava em cada momento. Durante esses anos e até meados dos anos 40 tiveram sucessos estrondosos, actuando em Lisboa e por todo o país. Não aceitavam honorários, divertiam-se e contribuíam, não raro, para festas de beneficência.

Alexandre Afonso fez parte deste grupo, com a sua harmónica bocal. Destacava-se pelo virtuosismo da execução e pela boa disposição permanente. Mais tarde, quando a orquestra se dissolveu, associou-se com outro aldrabófono – Fernando Pires dos Santos –, também “gaitista” de mérito, e constituíram o grupo Manos Alexandres. A fraternidade não era de sangue mas de cumplicidade no gosto pela música. Durante vinte e cinco anos actuaram em centenas de espectáculos, desde os mais singelos nas colectividades lisboetas até aos Serões para Trabalhadores, da Emissora Nacional. E não ficaram por aqui: lançaram-se numa carreira internacional e chegaram a ganhar um Campeonato do Mundo de Harmónicas Bocais, na Suiça. O grupo terminou em apoteose numa Festa de Homenagem no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, corria o ano de 1960.

 Orquestra Aldrabófona (in: https://radio.hypotheses.org)


MUSEUS DE COMUNIDADE


 De tudo o que atrás se escreveu dá conta o espólio do Ti’ Alex, à guarda da Associação  Recreativa e Cultural da Praia da Assenta. Dona Maria dos Anjos Ruivo foi quem nos guiou na visita, zeladora daquelas memórias mas receosa dos novos tempos que afastam a juventude destas preocupações patrimoniais. Que será deste manancial quando ela já não puder visitá-lo? Quando os admiradores do Ti’Alex se despedirem da vida e já ninguém sentir o apelo da preservação da memória?

Também a nós, Associação do Património, chega esta preocupação, que não se restringe ao que se passa na Assenta mas em outros locais do nosso concelho, onde o amor pela salvaguarda de testemunhos do passado levou à criação de pequenos “museus de comunidade”. Eles subsistem enquanto os seus criadores estão vivos mas correm risco de se perderem quando desaparecerem aqueles.

Não é fenómeno exclusivo de Torres Vedras. Por todo o país, desde há muitos anos, têm surgido estes pequenos museus que funcionam como lugares de memória onde as populações locais se revêm e encontram laços de identificação comunitária. Não por acaso a Universidade de Aveiro publicou em 2019 um livro intitulado “Museus de Comunidade: Manual de Apoio à Gestão”, de Luís Mota Figueira e Dina Ramos, dois investigadores que têm estudado este assunto. É uma reflexão teórica e um manancial de indicações práticas que procura responder às preocupações dos guardadores de memórias.

Sendo certo que nas sedes de muitos concelhos já existem Museus Municipais – como o nosso Museu Leonel Trindade – parece-me que o seu papel não se deve limitar às existências próprias mas pode alargar-se a outras expressões museológicas do espaço concelhio, integrando os museus de comunidade num projecto de rede museológica que contribua para o enriquecimento cultural das comunidades locais e garanta a preservação dos espólios existentes.

 


Manos Alexandres num espectáculo em 1942 (Espólio do Ti’Alex)

 





 

VALORIZAÇÃO DO MONUMENTO MEGALÍTICO DO BARRO

 

VALORIZAÇÃO DO MONUMENTO MEGALÍTICO DO BARRO

Joaquim Moedas Duarte (Texto e fotos)

 (Publicado na página PATRIMÓNIOS, semanário BADALADAS, Torres Vedras, 30 de Julho de 2021)

 


ARQUEOLOGIA, SINAIS DO PASSADO

Imaginemos que o leitor tem um terreno agrícola na área rural ou um prédio numa zona histórica. Um dia, na plantação de bacelos ou numa obra de restauro, encontra vestígios de grande antiguidade: pontas de seta, fragmentos de cerâmica enegrecidos pelo tempo, um alinhamento inesperado de pedras sugerindo construção de outros tempos. Que faz o leitor? Pega numa picareta e começa a esburacar, na esperança de encontrar algum tesouro? Tapa tudo para evitar incómodos? Ou sinaliza o sítio e vai falar com alguém que perceba do assunto, o Museu Municipal, por exemplo?

Qualquer uma destas situações já ocorreu perto de nós, em tempos recentes. Há uns anos, um Monumento Nacional pré-histórico foi vandalizado e praticamente destruído por curiosos, à procura de tesouros “dos Mouros”. Vestígios de construções medievais foram encobertos para se evitarem pesquisas que atrasariam a obra. Mas a terceira hipótese foi, frequentemente, a escolhida por pessoas esclarecidas, que deram conhecimento de achados importantes. Foi assim que se descobriu o Castro do Zambujal, nos anos 30 do século passado, quando Leonel Trindade – o grande arqueólogo torriense -  foi alertado e se deslocou até lá. Como este, muitos outros casos, cujo estudo e publicação de resultados mostram exuberantemente que o espaço concelhio de Torres Vedras é habitado desde há milhares de anos.  

A Arqueologia ocupa-se da procura e estudo de vestígios materiais do passado humano. Mas não é desporto ou ocupação de tempos livres, que possa ser feito por qualquer pessoa, por mais gosto que tenha pelas coisas antigas. É Ciência: aplicação de técnicas específicas de registo e recolha metódica, estudo e comparação de dados, recurso a análises laboratoriais complexas. Exige formação académica e experiência, com abordagens multidisciplinares das ciências humanas, das ciências biológicas, das ciências da terra, e até das ciências exatas. E deve respeitar legislação específica, que regulamenta a sua prática. Uma exploração feita por amadores é sempre catastrófica, pois os objectos são retirados do contexto histórico, o único que permite a sua datação e interpretação, destruindo irreparavelmente o que o passado nos legou.

 

CAMPANHA ARQUEOLÓGICA

Esta introdução vem a propósito da mais recente campanha arqueológica realizada no nosso concelho, que incidiu sobre um arqueossítio já conhecido e investigado há muitos anos. Trata-se do sepulcro megalítico de falsa cúpula (conhecido como “tholos”), situado no alto do Monte da Pena.  Foi o arqueólogo e pré-historiador Padre Paul Bouvier-Lapierre quem identificou aquela estrutura em 1909, depois de, no ano anterior, ali terem sido encontrados e recolhidos outros vestígios pré-históricos, quando se fazia a construção da plataforma para colocação de uma imagem da Virgem Maria.

O local foi escavado e estudado pouco depois da descoberta. A sua dimensão e características de construção, bem como o espólio votivo nele encontrado, levaram à sua classificação como Monumento Nacional, logo em 1910. Mas o tempo passou – mais de cem anos! – e nunca mais ali se fizeram investigações, para além do registo, em 1971, de um corte resultante da exploração de uma antiga pedreira.

A Câmara Municipal de Torres Vedras promoveu agora uma nova campanha de trabalhos arqueológicos, que decorreu entre 14 de Junho e 2 de Julho passado. No comunicado que temos presente, informa-se que o objectivo foi “a caracterização arquitectónica, estratigráfica e cronométrica deste monumento com as mais recentes metodologias científicas”, bem como “uma avaliação patrimonial rigorosa do monumento, para futuras acções de vedação e valorização”.

É de sublinhar que os princípios de actuação que acima enumerámos, como exigíveis para os trabalhos arqueológicos, foram rigorosamente seguidos. Começando, desde logo, com o “Pedido de Autorização de Trabalhos Arqueológicos” apresentado à Direcção Geral do Património Cultural, sem o qual nada poderia ser feito. Depois, com a constituição de uma vasta equipa especializada. Na Direcção científica: Ana Catarina de Sousa, arqueóloga, professora da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora da UNIARQ (Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa); Isabel Luna, arqueóloga, Conservadora do Museu Municipal Leonel Trindade, de Torres Vedras; Ana Maria Silva, antropóloga, professora da Universidade de Coimbra. Como Consultores: Victor Gonçalves, professor catedrático jubilado, investigador da UNIARQ; Michael Kunst, arqueólogo jubilado do Instituto Arqueológico Alemão, de Madrid; Rui Parreira, arqueólogo, da Direcção Regional de Cultura do Algarve.

Outros elementos se juntaram a esta equipa, nomeadamente o geólogo torriense, João C. Duarte, investigador e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, André Texugo, investigador da UNIARQ, encarregado da fotogrametria e drones e Cátia Delicado, da UNIARQ, além de alunos mestrandos e doutorandos, de universidades portuguesas e espanholas.

Este trabalho foi acompanhado, apoiado e financiado pelo Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Torres Vedras. A Associação para Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras esteve presente, apoiando dentro das suas possibilidades.

 





PERSPECTIVAS DE FUTURO

A estreita colaboração agora iniciada entre a academia – sob a coordenação da Faculdade de Letras de Lisboa – e o município – Câmara Municipal e Junta de Freguesia – abre perspectivas para a prossecução e desenvolvimento, com carácter regular, da investigação e da valorização do património arqueológico torriense.

 Há condições excelentes para isso: por um lado, o concelho de Torres Vedras é rico em jazidas arqueológicas de todos os períodos, com expressão mais notável ao nível do Calcolítico, com várias dezenas de arqueossítios identificados, de que o mais emblemático é o Castro do Zambujal; por outro lado, a proximidade de centros de investigação da Universidade de Lisboa, e a centralidade geográfica de Torres Vedras em relação a outras universidades do país, constituem factores de atracção para os currículos de estudo que encontram aqui um terreno fértil para a formação académica prática.

A disponibilidade do Pelouro da Cultura foi um factor determinante para o êxito desta campanha arqueológica, que teve como sustentação institucional um protocolo de colaboração celebrado em 2019, entre o município e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Registe-se a preocupação de sensibilizar a comunidade local para estes trabalhos, através da organização de um “dia aberto”, inserido nas Jornadas Europeias da Arqueologia, no dia 20 de Junho.

 Os trabalhos terão continuidade nos próximos meses, com o processamento e a análise dos dados recolhidos, prevendo-se a sua apresentação e publicação em data oportuna.





25 junho 2021

MOINHOS - A DINÂMICA DAS RUÍNAS

 Publicado no jornal BADALADAS (Torres Vedras), em 25 de Junho de 2021


A Dinâmica das Ruínas 

Ezequiel Duarte (Texto e fotos)





Algures um círculo de pedras num disfarce de ruínas. A memória popular apanha a forma e transforma-a em imaginários que viajam sem qualquer mácula ao passado. Abrir esta fronteira é uma maneira de dizer que o tempo enviará resposta e, paciente, soletrará na ruína a sua figuração como intérprete da mudança.

As histórias avolumam-se, cruzam-se enredos e a ruína é agora límpida, pronta a ser respeitada por quem escuta as palavras dos moinhos.

Estágio após estágio conhece-se o processo da ruína, o paradoxo do dinamismo da ruína. Na nossa viagem, num instante, a alvura de um moinho num contraste de verde ou de terra lavrada. Surpreendidos, percebemos que ainda há moinhos em movimento. 

Seguem-se outros usos, servem de pombais, de habitações, locais de merendas, vazadouros de lixos, têm vértices geodésicos acoplados, outros têm como vizinhos antenas de comunicações ou aerogeradores. Há aqueles que servem de suporte a torres de vigia, ou aqueles que ficam apenas com o seu processo de ruína e de resistência sem evocar qualquer uso. Alguns ainda conservam o mastro, por vezes também a entrosga, como se esta fosse um metrónomo a preparar a queda das mós.

No meio de um campo de cultivo surgem os seus vestígios, nalguns dos casos, amontoados, já sem nexo construtivo. Marcam, contudo, um espaço diferenciado. Por respeito, os arados contornam os moinhos e continuam a lavra e deixam naturalmente uma serventia. Depois da seara crescida, transformam-se em monumentos, faltando-lhes, em remota paragem, a “iluminação” suficiente para ascenderem à condição de um acontecimento na paisagem.

É discurso recorrente apelar à desgraça dos moinhos de vento, o quanto estão ao abandono, sem ninguém que olhe por eles. Contudo é também o respeito por estas ruínas e pela sua evolução que dá à questão do moinho de vento do Oeste o efeito de monumentalidade, sustentado, não no seu valor individual, mas nos inúmeros moinhos dispersos por este território representantes de vários estados de conservação:

“Aquele ainda tem o frechal de pedra em bom estado. Neste as mós estão sustentadas pelos sobrados onde permanecem o corvo e o tegão. Na colina em frente, encontra-se outro moinho, ainda com o capelo, o mastro, a entrosga e com a engrenagem a acompanhar a ruína da estrutura.”

Para as populações o moinho é uma das principais referências do local. Por isso, um simples círculo de pedras onde apenas são perceptíveis a forma e a soleira da porta do moinho têm, mesmo assim, um vínculo patrimonial.

Basta ver o quanto é importante o valor das ruínas, mesmo que escondidas na vegetação, mantém-se vivas as recordações quando a transmissão oral e a imaginação assim o determinam.

Antes de mais são memoriais únicos ao trabalho, a uma função económica. São profundos símbolos do labor humano, da actividade de moagem e da labuta pelo pão.

Um círculo de pedras, quase imperceptível, traz histórias que transcendem o moinho e chegam às épocas remotas desse “tempo dos mouros” através de ditos herdados.

Quase todas as aldeias da região têm a referência de pelo menos um moinho que servia as populações, referência que se cruza com as histórias das gentes e dos lugares.

Os moinhos têm o seu ciclo de vida, também tomam novas funções, integram-se noutros contextos e pronunciam outros usos. Apesar das ruínas, mantêm-se incólumes ao alimentarem imaginários que saltam de aldeia em aldeia.

O moinho de vento no alto das colinas da Região Oeste é função e símbolo em simultâneo. O moinho ali está evocando o dinamismo da paisagem, desde a alvura das velas até ao mais elementar estado de ruína.

É neste contexto que os moinhos representam também o sentido de projecto que oscila entre o sucesso e a ruína. Os moinhos podem gerar uma grande intensidade de ideias, para que resultem algumas iniciativas com sucesso, sabendo que a ruína é intrínseca ao empreendimento.

Para inovar é necessário correr riscos e para isso há que conhecer e divulgar também o insucesso, aprender a contemplá-lo como se fizesse parte da nossa invenção diária e fosse a razão para celebrar as nossas melhores conquistas.

Saber lidar com o insucesso, com a convicção que para inovar é preciso agarrar novas ideias e transformá-las em projectos, alguns, necessariamente, poderão não resultar, mas têm um alto valor enquanto instrumentos de aprendizagem.


 


VALORIZAÇÃO DOS MOINHOS DE VENTO

 

A leitura do moinho em ruínas não pode ser vista como um caso permanente de insucesso, de projecto falhado, pelo contrário, o moinho de vento teve outros tempos onde desempenhou um papel fulcral na história da humanidade e na atualidade há que redobrar o esforço na sua valorização e conservação e de perspetivar o seu futuro enquanto referencial para a consolidação do Oeste como região.

Note-se que sempre houve moinhos de vento em ruínas no território do Oeste. Conhece-se casos de moinhos que se ficaram pela construção da torre em alvenaria e que por alguma razão nunca avançaram para a construção dos elementos em madeira, outros há, em que após a construção, constatou-se que os ventos no local não tinham a intensidade e a regularidade para viabilizar a moagem, noutros sucedeu a quebra na transmissão geracional da arte…

Na atualidade, os saberes associados à construção dos moinhos e à sua laboração não desapareceram apesar do reduzido número de entusiastas que ainda se prestam, enquanto profissionais ou como voluntários, a recuperar moinhos e mesmo a colocá-los a funcionar para a sua função original, a farinação.

Importa referir que a maior parte das recuperações dos moinhos da Região Oeste têm sido feitas para a função habitacional, mas não deixam de ocorrer iniciativas municipais e de particulares de recuperação de moinhos de vento para a sua função original ainda que longe do desejável.

Valendo-me de documento elaborado por Fátima Nunes (dinamizadora de projeto de valorização dos moinhos de vento na Moita dos Ferreiros assente na atividade moageira e na sensibilização das populações para os saberes ligados ao moinho), poder-se-á estruturar uma política de valorização dos moinhos de vento nos seguintes eixos: Um, nos aspetos institucionais e normativos facilitadores da atividade tradicional de moagem e da proteção dos moinhos e dos seus engenhos, assegurando o direito ao vento; dois, na educação e formação em molinologia nas mais diversas vertentes, com relevo na habilitação para a construção e laboração dos moinhos; três, na integração dos moinhos em rotas de caminhos pedestres e em projetos de turismo cultural e da natureza; quatro, na viabilidade da atividade de moagem tradicional com base em cereais nacionais e com a diferenciação do produto em pequenas escalas de produção.

Que se comece pelas raízes e que se compreendam os projetos de reforço da identidade regional, no caso, através da valorização dos moinhos, mas também da continuidade do pontilhado das ruínas a marcar a paisagem e que deles extravase toda a carga simbólica capaz de impulsionar o desenvolvimento local como um projeto aglutinador das suas gentes.

 

FOTO DA PÁGINA NO BADALADAS



29 maio 2021

RESTAURO DAS PINTURAS PERTENCENTES À IGREJA DE SÃO TIAGO

 Página PATRIMÓNIOS, jornal BADALADAS, 28 de maio 2021


DA ESCURIDÃO À LUZ ! A CONSERVAÇÃO E RESTAURO DAS PINTURAS PERTENCENTES À IGREJA DE SÃO TIAGO 

Texto e fotos de 

Milene Santos

Daniela Morgadinho

 

Nota inicial: Na página PATRIMÓNIOS, do passado mês de Abril, demos a conhecer a empresa Salvaguardar que se dedica à conservação e restauro de bens culturais. Lá se fazia referência ao notável restauro das quatro telas da Igreja de São Tiago, em Torres Vedras. Na página de hoje são as próprias autoras que relatam, de forma sucinta, os passos daquele trabalho.

No âmbito de um protocolo realizado, no ano de 2018, entre a Paróquia de Torres Vedras e o Projeto Salvaguardar (projeto dedicado à preservação, conservação e restauro de bens culturais), foi realizada a intervenção de um conjunto de quatro pinturas de cavalete, esquecidas no tempo, pertencentes à Igreja de São Tiago em Torres Vedras, com a representação dos quatro Doutores da Igreja Latina – “São Jerónimo”, “Santo Agostinho”, “Santo Ambrósio” e “São Gregório Magno”.

O precursor desta iniciativa foi o responsável pelo património religioso de Torres Vedras, na pessoa do Padre Daniel Henriques, atual Bispo Auxiliar de Lisboa, que no ano de 2018 nos convidou para esta parceria, que proporcionou uma intervenção de urgência para a salvaguarda destas pinturas, pois esta Igreja já não se encontra ao culto há alguns anos, tendo adquirido outras funções que acabaram por desvirtuar o espaço.

A Igreja de São Tiago resulta da reconstrução de um edifício primitivo do séc. XVI que sofreu várias obras também no séc. XVIII. É uma Igreja com um espólio muito importante: azulejos do séc. XVIII; retábulos barrocos; frisos com mármores embutidos; pia batismal do séc. XVI e um cadeiral no coro alto, datado de 1640, maravilhoso exemplar em talha maneirista. As pinturas em estudo encontram-se nos retábulos laterais pertencentes ao altar-mor, totalmente repintados, que ocultam belíssimos marmoreados.

Esta intervenção teve início com um exaustivo levantamento do estado de conservação através do registo fotográfico, mapeamentos de danos e patologias e recolha de amostras para análise (identificação das fibras do suporte têxtil; identificação da camada de preparação, pigmentos e aglutinantes presentes na composição das tintas). Após este levantamento, estipulou-se a metodologia de intervenção e os materiais mais adequados, para este conjunto pictórico, respeitando os princípios éticos da profissão do Conservador-restaurador. Estes princípios são pautados pela atuação em conservação, flexíveis e variáveis no que respeita às metodologias e aos materiais a utilizar, com o intuito de salvaguardar a integridade do valor cultural do objeto, restabelecendo a sua unidade potencial, sem falsificações históricas e artísticas, ou seja, sem anular as preciosas marcas do tempo. Deste modo, qualquer intervenção, implica um grande sentido de responsabilidade, renunciando qualquer atuação criadora, porque o Conservador-restaurador não é um artista!

            A intervenção começou com a desmontagem das molduras e das pinturas do retábulo onde estas se encontram inseridas. De seguida, foram acondicionadas e transportadas para atelier, onde se realizaram os tratamentos de conservação e restauro.

            Após registo fotográfico e recolha de amostras, começou-se por realizar uma pré-fixação e uma proteção pontual das camadas pictóricas, para dar início aos tratamentos mais “agressivos” do suporte, evitando danos na superfície. De seguida, procedeu-se a uma limpeza mecânica e superficial do verso da pintura, para libertar o suporte de sujidades soltas e dar continuidade aos restantes tratamentos: planificação do suporte (estas pinturas encontravam-se bastante desidratadas e com deformações); limpeza mecânica do verso (limpeza mais aprofundada, com o intuito de remover as intervenções anteriores e as sujidades mais impregnadas nas fibras têxteis); tratamentos de lacunas, rasgões e aplicação de bandas. Este conjunto de procedimentos realizados no verso, conferiram a estabilidade, outrora perdida, necessária a estes suportes têxteis.

    Tratamento do suporte têxtil - remoção de intervenções anteriores


Realizou-se de seguida, o tratamento mais desafiante e revelador - a limpeza química da superfície. Após vários testes de limpeza, concluímos que estávamos perante um repinte integral, que ocultava a originalidade de uma fantástica pintura neoclássica de extrema qualidade, comparada com o repinte presente. Esta limpeza foi realizada em três fases, uma primeira, onde foi removida uma camada de sujidades impregnadas (fuligem de velas e substâncias oleosas) permitindo a observação clara dos repintes. 

Numa segunda fase, foi removido o repinte de fraca qualidade, pondo a descoberta a pintura original e por último, removeu-se o verniz original amarelecido, que desvirtuava a paleta cromática do artista. Este tratamento foi muito revelador, porque no caso particular de “São Jerónimo” era possível observar este Santo num ambiente “caseiro” e vestido com hábito cardinalício, antes do tratamento da limpeza e após o levantamento do repinte a representação passou a ser numa gruta e semi-nu (representação esta também muito comum). Nos restantes Doutores da Igreja, foram revelados alguns dos atributos que os identificam e caracterizam. 

  

                            Limpeza química e mecânica da pintura "São Jerónimo"

  

Por último foram realizados os preenchimentos ao nível das camadas de preparação nas lacunas para posterior reintegração cromática (retoques de cor apenas nas áreas de lacuna, através de um método diferenciado) e aplicação de uma camada de proteção de origem natural (verniz). Foi necessário a realização de grades extensíveis (inexistentes, as telas encontravam-se pregadas diretamente a painéis de madeira, o que conferiu danos acentuados nas pinturas). 

O engradamento permitiu uma correta extensão do suporte, prevenindo futuras deformações. Após a intervenção as pinturas foram novamente recolocadas no retábulo, assim como as suas molduras em talha dourada, que também passaram por um processo de conservação e restauro.



                  Antes e após intervenção da pintura "São Jerónimo"

No decorrer deste estudo, em contacto com o Doutor Vítor Serrão (Historiador de arte), veio confirmar-se a qualidade destas pinturas, datando-as dos finais do séc. XVIII - estilo neoclássico, possivelmente da mão de Manuel António de Góis, contudo é um trabalho ainda em investigação, sendo necessário uma interdisciplinaridade entre diversos especialistas de várias áreas, que permitam concluir mais sobre este conjunto.

Foi no dia 25 de julho de 2018, no “Recital de Música Barroca e Renascentista” – evento realizado na Igreja de São Tiago, que foram apresentadas duas das pinturas já intervencionadas, com uma breve explicação dos tratamentos realizados, ao público presente.

Por último gostaríamos de salientar o programa “ISA - Património”, promovido pela Câmara de Torres Vedras, que permite que este local de interesse público esteja aberto, convidando todos a visitarem estas fantásticas pinturas ao vivo.

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A página no BADALADAS:



           

28 maio 2021

“SALVAGUARDAR”: UM HOSPITAL DE BENS CULTURAIS

 Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS de 30 de Abril de 2021


“SALVAGUARDAR”: UM HOSPITAL DE BENS CULTURAIS

Texto: Joaquim Moedas Duarte

 

Em 23 de Junho do ano passado, lia-se no Diário de Notícias:

«Mais um restauro desastroso de uma obra de arte em Espanha – O quadro de Bartolomé Esteban Murillo mostrava a Virgem Maria mas ficou irreconhecível depois do restauro feito por um amador. Especialistas pedem legislação mais apertada para conservação do património». E recordava o que se havia passado em 2012: «o restauro por parte de uma paroquiana idosa de um fresco na Igreja do Santuário da Misericórdia em Borja (Aragão) teve resultados desastrosos».

Tal como em Espanha, o nosso país está repleto de obras de arte que necessitam de restauro: esculturas, móveis, pinturas, talha de madeira, azulejos, etc… E também por cá existem pessoas com boa vontade mas sem preparação técnica. A procura de soluções baratas leva a resultados calamitosos e, quase sempre, irreparáveis.

No concelho de Torres Vedras a situação tem vindo a melhorar. Escrevemos nesta página, em Junho de 2019, a propósito de uma exposição de Arte Sacra no Turcifal, organizada pela Paróquia, que «há cada vez mais a consciência de que o Estado não tem meios suficientes para garantir a preservação deste vasto património. Como consequência, as populações, organizadas em torno de Comissões ou da Paróquia, com o apoio das Juntas de Freguesia e da Câmara Municipal, têm sido os principais interventores na procura de soluções para a inevitável degradação do Património cultural». Foi nessa exposição que apreciámos pela primeira vez os trabalhos da “Salvaguardar”, de que falaremos adiante.

 

UM BOM EXEMPLO

Há dias, fomos contactados por um investigador de História da Arte, no âmbito da Universidade de Coimbra, interessado em obter informações sobre um escultor do séc. XVI que trabalhou para a Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I. Essa Infanta foi a fundadora e financiadora do Convento dos frades arrábidos, no Barro, arredores de T Vedras, para o qual terá encomendado ao dito escultor uma imagem de Nª Srª das Dores, a qual, aquando da implantação da República, foi levada, por precaução, para a aldeia do Carvalhal, de onde já não saiu. O investigador pedia-nos fotografias da imagem. Sim, tínhamos fotos antigas mas quisemos actualizá-las e, para isso, procurámos o pároco, P. Paulo Antunes, que já conhecíamos como homem dedicado à conservação do património de arte sacra das suas paróquias. Foi ele que nos disse que a referida imagem baixara ao hospital para restauro.

A metáfora do hospital é nossa. Tal como nós, os objectos de arte deterioram-se com o tempo. Os de madeira, dado que esta é um material orgânico, são influenciados pelas condições ambientais – humidade, temperatura e outras – e por agentes bióticos como as bactérias, os fungos ou os insectos xilófagos. O mesmo acontece às telas de pintura antiga, e a tudo o mais.

Perante a nossa curiosidade, P. Paulo levou-nos à aldeia de Caixaria (Dois Portos) onde encontrámos o tal hospital: numa antiga Escola Primária, agora devoluta e cedida para o efeito, está sediada a “Salvaguardar”, uma pequena empresa de “Conservação e Restauro de Bens Culturais”, onde exercem a sua profissão de Conservadoras – Restauradoras a Milene Santos e a Daniela Morgadinho. Lá fomos encontrar as duas jovens, luvas nas mãos, a tratarem, com eficiência e desvelo, a imagem de Nª Srª dos Anjos.


Na antiga sala de aula, transformada em oficina, viam-se muitas outras peças de arte sacra, em diversas fases do processo restaurador: imagens de terracota, molduras de talha dourada, imagens de roca ou estofadas, móveis de madeira, crucifixos com imagens de marfim. Isto implica conhecimento teórico e elevada competência técnica. Já sabíamos que assim era quando observámos o notável trabalho de restauro, realizado em 2018/19 por estas duas profissionais nas quatro telas do séc. XVIII, dos “Doutores da Igreja” que podemos admirar na capela mór da Igreja de Santiago, em Torres Vedras. O relatório final que nos facultaram é um registo impressionante daquele notabilíssimo trabalho.


Agora, na oficina, víamos ao vivo como se tratam as doenças de tantos bens culturais. A imagem que procurávamos ali estava, com as mazelas bem à vista mas preservando a beleza secular que tantas gerações veneraram.






AS MÃOS QUE CURAM

 

Daniela Morgadinho e Milene Santos têm Licenciatura e Mestrado em Conservação e Restauro, formação que foram completando com passagens por experiências especializadas em Madrid, entre outras.

A opção profissional não foi casual. No caso da Daniela, resultou do gosto precoce pela preservação na área das madeiras, que a levou à especialização no mobiliário (Mestrado), talha e escultura. Milene, não vendo futuro na arqueologia e egiptologia, áreas da sua paixão, dedicou-se à conservação e restauro com especialização na área de pintura de cavalete. Uma e outra sentem-se bem entre obras de arte, antigas ou mais recentes, que necessitem dos cuidados especializados de quem as sabe e gosta de tratar.

Começaram por trabalhar em diversas empresas, mas a experiência adquirida bem como os contactos estreitos que mantêm com professores e formadores, deram-lhes alento para, em 2016, se lançarem no projecto próprio que designaram por “Salvaguardar – Conservação e Restauro de Bens Culturais”. Em 2019 fundaram a  TENTO – Associação de Conservação e Restauro de Torres Vedras, o que proporcionou uma parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras. Desta colaboração resultou a cedência da antiga Escola Primária da Caixaria onde exercem o seu trabalho.

Da qualidade e extensão do seu labor falam os registos das muitas intervenções na nossa região. Sem sermos exaustivos, para além das citadas telas do Doutores da Igreja, referimos: Senhor Jesus Morto, escultura policromada do séc. XVIII, do Turcifal; património móvel (escultura e mobiliário) e imóvel (pintura mural e azulejaria) no Convento de Charnais, na Merceana; dois quadros magníficos de pintura sobre tábua, do séc. XVI – Baptismo de Cristo e Pentecostes – do Turcifal.

Milene e Daniela não se limitam à realização material. Assim o disseram: «No futuro pretendemos criar parcerias com outras Associações e entidades relacionadas com o património; fortalecer a ligação com a comunidade e as escolas através do serviço educativo com acções de formação para a preservação e valorização do património; e realização de investigações, estudos e intercâmbios, relacionados com a cultura e o património».






Voltando à metáfora do hospital, a "Salvaguardar" não faz apenas medicina curativa, preocupa-se também com a preventiva. A bem do nosso Património Cultural Material.