CASTELO DE TORRES – RECONSTRUIR OU CONSERVAR? (1ª parte)
José Pedro Sobreiro | Joaquim Moedas Duarte
Na campanha para as recentes eleições
autárquicas, o tema do “Castelo de Torres Vedras” foi abordado por algumas
forças políticas. A ideia essencial era de que aquelas ruínas estavam
abandonadas e esquecidas, havia que recuperá-las e procurar ideias criativas
para o seu uso.
Não há nada de reprovável nisto, antes
pelo contrário, revela preocupação com o nosso Património construído e o desejo
de o ver valorizado – ideias que compartilhamos.
A abordagem que aqui fazemos não
pretende contestar, antes contribuir para uma reflexão mais sustentada e
informada acerca do mais visível monumento torriense, aquela silhueta única que
todos os dias atrai o nosso olhar, quando caminhamos nas ruas da velha urbe.
Santa Maria do Castelo, o torreão e as paredes do palácio dos alcaides – que
impropriamente chamamos de “castelo” – são a marca de muitos séculos e das
gerações que nos precederam.
LONGA
HISTÓRIA
Na região de Torres Vedras, durante a Pré-História, fixaram-se
numerosos núcleos de população agro-pastoril, que viviam em castros, pequenos
povoados no cimo dos montes. A colina
onde hoje assenta o nosso Castelo terá sido ocupada por um desses castros. A
orografia do lugar permite defesa eficaz e garante abastecimento de água, que
lhe corre no sopé. Posteriormente, todos os povos que o correr da História
trouxe à Península Ibérica ocuparam aquele monte, tanto mais que a sua encosta
sul, de pendente mais suave e voltada ao sol, convidava à fixação humana. Com a
ocupação romana no século II a.C., os povos primitivos foram subjugados. Seis
séculos depois, seria a ocupação romana a extinguir-se, com a chegada dos
Suevos e Visigodos, também estes substituídos pela ocupação árabe a partir do
início do séc. VIII. A colina fortificada viria a cair na posse dos
reconquistadores cristãos no tempo de D. Afonso Henriques, já em pleno século
XII e, com este, a integrar o novo reino de Portugal. Os primeiros reis
sediavam-se na alcáçova, quando por aqui passavam, substituindo-a, nos finais
do séc. XIII, por um Paço mais abaixo, já fora da cerca castelar.
No
tempo de D. Manuel I, reconstruiu-se a muralha da cerca defensiva do morro e
erigiu-se a nova fortaleza que se tornou a residência dos Soares
Alarcão, família que deteve a alcaidaria da vila por várias gerações,
abandonando o Paço do Patim, onde anteriormente residia. Para além da defesa
militar, a fortaleza passou a ter função residencial, daí chamar-se Paço dos Alcaides à parte superior do
castelo. Tratava-se então de uma residência senhorial, construída sobre as
paredes de uma anterior construção – um castelejo medieval, com a sua torre de
menagem, do qual nada se sabe. O novo edifício foi adaptado às funções
residenciais da nobreza, que na época procurava já um certo tipo de conforto e
uma afirmação de poder pela ostentação. Daí os grandes janelões com conversadeiras
que, vistos cá de baixo, parecem ameias. Sabemos, por um documento do séc.
XVII, que o Paço tinha imponência,
mas, infelizmente, não chegou até nós nenhuma imagem. O que dele resta – as quatro paredes e, sobretudo, o grande torreão
com uma silhueta única que não se parece com mais nenhuma do país – marca
a transição do castelo do tipo medieval para uma fortaleza renascentista,
caracterizada por novas formas de lidar com a prática da pirobalística. Em
Portugal conhecem-se apenas os casos do castelo de Évora Monte e Vila Viçosa,
atribuídos a Francisco de Arruda que projectou, antes destes, o Paço do castelo
de Torres Vedras, no início do séc. XVI.
Foi esta construção que o terramoto de 1755 arruinou e que nunca mais foi reconstruída. Em
1810, o castelo foi utilizado como base de canhoneiras, durante as invasões
francesas, o que exigiu grandes alterações na estrutura das muralhas –
na parte norte foram retiradas as ameias – para o adaptar ao tipo de artilharia
pesada praticada no séc XIX. Em
1846, num episódio de guerra civil, foi lugar de acampamento militar com duas
bocas de artilharia. Posteriormente, aquele morro perdeu relevância militar e
centralidade cívica. A decadência e o abandono acentuaram-se. Muitas das suas
pedras foram retiradas pela população para construção das casas próximas – o
que levou a Câmara Municipal, por várias vezes, a publicar editais a proibir
tal prática.
Durante
a primeira metade do séc. XX o castelo sofreu algumas intervenções, como a
abertura de um fosso ligado a uma das cisternas, para abastecimento de água à
vila, de que a abertura rasgada a meio da vertente leste do morro que sustenta o
paço é testemunho. Mais tarde, também se procedeu ao preenchimento de grandes
vazios em partes da parede do paço, a norte e a leste. Esta última apresentava
uma abertura larga que permitia ver os jogos do Torriense ao domingo. De resto,
o castelo servia de palco às brincadeiras dos catraios e aos acampamentos da
Mocidade Portuguesa, no 28 de Maio.
Por
alturas de meados do mesmo século e sob o ímpeto comemorativo dos centenários,
o então presidente da Câmara, Rogério de Figueiroa Rego, decidiu, sem
qualquer base histórica, mandar reconstruir as ameias do torreão, e lá colocar
um enorme brasão de Torres, com lâmpadas eléctricas, que ali permaneceu durante
muitos anos. É ainda desta época a plantação de arvoredo na encosta norte do
morro, com a finalidade de segurar as terras e embelezar o monumento – acabando
esta última intenção por ter efeito contrário, pois ocultou-o da nossa vista.
UMA
POUSADA NO CASTELO?
Nos
primeiros tempos da Associação do
Património, – início dos anos 80 – era frequente alguém perguntar porque é
que ela não elegia a reconstrução do Paço do castelo como uma das suas prioridades.
A resposta tinha de ser, invariavelmente, que não se sabia como ele era na sua
origem. Todos gostaríamos de ter um Castelo inteiro e bem conservado na nossa terra,
mas a dedicação à causa do património tem, como premissa básica, o respeito
pela verdade histórica e a rejeição de fantasias.
Cabe
aqui lembrar o episódio da “pousada “nos anos 80 do século passado. O vereador
da cultura e turismo de então, António Carneiro, um dos fundadores desta Associação, propôs-se eleger como um dos
objectivos da sua acção a construção de uma pousada no Castelo de Torres
Vedras, ideia que logo granjeou entusiasmo junto de alguns torrienses. A
Direcção da Associação decidiu alertar o vereador para as dificuldades
que se apresentavam: não se sabia como era o Paço e sendo assim, não seria
razoável tal desiderato, a menos que se desrespeitasse a preocupação com o
rigor, atitude necessária a estes empreendimentos.
Sabendo
ouvir quem considerava ser conhecedor da História e das práticas responsáveis
nesta matéria, António Carneiro solicitou à Direcção que agendasse um encontro
com um responsável da Direção Geral de Turismo (DGT), que apoiava a ideia da
pousada, a fim de lhe explicar as
objecções. Essa reunião ocorreu em Lisboa e nela participaram José Pedro
Sobreiro e Carlos Cunha, a quem foram mostrados alguns estudos do respectivo
anteprojeto (pois já estava nessa fase). Os desenhos apresentavam elementos
medievalistas típicos – arcos ogivais, abóbadas de nervuras, etc. – sem
qualquer ligação com os elementos construtivos visíveis no terreno. Não tinha
sido feita a mínima pesquisa histórica e o que viram era um autêntico delírio
de fantasia. Foi essa opinião que defenderam, com conhecimento de causa e
argumentos ponderáveis. Decorrido algum tempo, veio a saber-se que a DGT tinha
desistido do projecto da pousada. Para além da falta de sustentabilidade
documental e histórica, terão contribuído para tal decisão factores físicos
evidentes: a inexistência de uma segunda porta, vias estreitas e íngremes, e
reduzido espaço exterior para estacionamento de veículos de acesso e de
abastecimento. Uma unidade hoteleira, ou qualquer edifício de serviços,
exigiria amplos espaços envolventes, além dos custos incomportáveis de
infra-estruturas, de águas, saneamento e equipamentos imprescindíveis ao seu
funcionamento. Os anos passaram. A consciência de que as condições turísticas
actuais, em que a Pousada não é um equipamento de turismo de massas, antes pelo
contrário, levou ao abandono da ideia que parecia ter viabilidade há trinta
anos atrás.
Hoje, é plausível duvidar-se que a comunidade torriense aceite de bom grado a destruição da imagem histórica que tantas gerações se habituaram a olhar – a velha igreja de duas torres encostada às ruínas do palácio e ao torreão manuelino – venerável ícone simbólico da identidade torriense.
(2ª Parte a publicar em 26 de Novembro de
2021)
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