Página PATRIMÓNIOS, jornal BADALADAS, 28 de maio 2021
DA ESCURIDÃO À LUZ ! A CONSERVAÇÃO E RESTAURO DAS PINTURAS PERTENCENTES À IGREJA DE SÃO TIAGO
Texto e fotos de
Milene Santos
Daniela Morgadinho
Nota inicial: Na
página PATRIMÓNIOS, do passado mês de Abril, demos a conhecer a empresa
Salvaguardar que se dedica à conservação e restauro de bens culturais. Lá se
fazia referência ao notável restauro das quatro telas da Igreja de São Tiago, em
Torres Vedras. Na página de hoje são as próprias autoras que relatam, de forma
sucinta, os passos daquele trabalho.
No âmbito de um protocolo realizado, no ano de 2018, entre a
Paróquia de Torres Vedras e o Projeto Salvaguardar (projeto dedicado à
preservação, conservação e restauro de bens culturais), foi realizada a
intervenção de um conjunto de quatro pinturas de cavalete, esquecidas no tempo,
pertencentes à Igreja de São Tiago em Torres Vedras, com a representação dos
quatro Doutores da Igreja Latina – “São Jerónimo”, “Santo Agostinho”, “Santo
Ambrósio” e “São Gregório Magno”.
O precursor desta iniciativa foi o responsável pelo
património religioso de Torres Vedras, na pessoa do Padre Daniel Henriques,
atual Bispo Auxiliar de Lisboa, que no ano de 2018 nos convidou para esta
parceria, que proporcionou uma intervenção de urgência para a salvaguarda
destas pinturas, pois esta Igreja já não se encontra ao culto há alguns anos,
tendo adquirido outras funções que acabaram por desvirtuar o espaço.
A Igreja de São Tiago resulta da reconstrução de um edifício
primitivo do séc. XVI que sofreu várias obras também no séc. XVIII. É uma Igreja
com um espólio muito importante: azulejos do séc. XVIII; retábulos barrocos;
frisos com mármores embutidos; pia batismal do séc. XVI e um cadeiral no coro
alto, datado de 1640, maravilhoso exemplar em talha maneirista. As pinturas em
estudo encontram-se nos retábulos laterais pertencentes ao altar-mor,
totalmente repintados, que ocultam belíssimos marmoreados.
Esta intervenção teve início com um exaustivo levantamento
do estado de conservação através do registo fotográfico, mapeamentos de danos e
patologias e recolha de amostras para análise (identificação das fibras do
suporte têxtil; identificação da camada de preparação, pigmentos e aglutinantes
presentes na composição das tintas). Após este levantamento, estipulou-se a
metodologia de intervenção e os materiais mais adequados, para este conjunto
pictórico, respeitando os princípios éticos da profissão do
Conservador-restaurador. Estes princípios são pautados pela atuação em
conservação, flexíveis e variáveis no que respeita às metodologias e aos materiais
a utilizar, com o intuito de salvaguardar a integridade do valor cultural do
objeto, restabelecendo a sua unidade potencial, sem falsificações históricas e
artísticas, ou seja, sem anular as preciosas marcas do tempo. Deste modo,
qualquer intervenção, implica um grande sentido de responsabilidade,
renunciando qualquer atuação criadora, porque o Conservador-restaurador não é
um artista!
A
intervenção começou com a desmontagem das molduras e das pinturas do retábulo
onde estas se encontram inseridas. De seguida, foram acondicionadas e
transportadas para atelier, onde se realizaram os tratamentos de conservação e
restauro.
Após registo fotográfico e recolha de amostras, começou-se por realizar uma pré-fixação e uma proteção pontual das camadas pictóricas, para dar início aos tratamentos mais “agressivos” do suporte, evitando danos na superfície. De seguida, procedeu-se a uma limpeza mecânica e superficial do verso da pintura, para libertar o suporte de sujidades soltas e dar continuidade aos restantes tratamentos: planificação do suporte (estas pinturas encontravam-se bastante desidratadas e com deformações); limpeza mecânica do verso (limpeza mais aprofundada, com o intuito de remover as intervenções anteriores e as sujidades mais impregnadas nas fibras têxteis); tratamentos de lacunas, rasgões e aplicação de bandas. Este conjunto de procedimentos realizados no verso, conferiram a estabilidade, outrora perdida, necessária a estes suportes têxteis.
Realizou-se de seguida, o tratamento mais desafiante e revelador - a limpeza química da superfície. Após vários testes de limpeza, concluímos que estávamos perante um repinte integral, que ocultava a originalidade de uma fantástica pintura neoclássica de extrema qualidade, comparada com o repinte presente. Esta limpeza foi realizada em três fases, uma primeira, onde foi removida uma camada de sujidades impregnadas (fuligem de velas e substâncias oleosas) permitindo a observação clara dos repintes.
Numa segunda fase, foi removido o repinte de fraca qualidade, pondo a descoberta a pintura original e por último, removeu-se o verniz original amarelecido, que desvirtuava a paleta cromática do artista. Este tratamento foi muito revelador, porque no caso particular de “São Jerónimo” era possível observar este Santo num ambiente “caseiro” e vestido com hábito cardinalício, antes do tratamento da limpeza e após o levantamento do repinte a representação passou a ser numa gruta e semi-nu (representação esta também muito comum). Nos restantes Doutores da Igreja, foram revelados alguns dos atributos que os identificam e caracterizam.
Por último foram realizados os preenchimentos ao nível das camadas de preparação nas lacunas para posterior reintegração cromática (retoques de cor apenas nas áreas de lacuna, através de um método diferenciado) e aplicação de uma camada de proteção de origem natural (verniz). Foi necessário a realização de grades extensíveis (inexistentes, as telas encontravam-se pregadas diretamente a painéis de madeira, o que conferiu danos acentuados nas pinturas).
O engradamento permitiu uma correta extensão do
suporte, prevenindo futuras deformações. Após a intervenção as pinturas foram
novamente recolocadas no retábulo, assim como as suas molduras em talha
dourada, que também passaram por um processo de conservação e restauro.
No decorrer deste estudo, em contacto com o Doutor Vítor
Serrão (Historiador de arte), veio confirmar-se a qualidade destas pinturas,
datando-as dos finais do séc. XVIII - estilo neoclássico, possivelmente da mão
de Manuel António de Góis, contudo é um trabalho ainda em investigação, sendo
necessário uma interdisciplinaridade entre diversos especialistas de várias
áreas, que permitam concluir mais sobre este conjunto.
Foi no dia 25 de julho de 2018, no “Recital de Música
Barroca e Renascentista” – evento realizado na Igreja de São Tiago, que foram
apresentadas duas das pinturas já intervencionadas, com uma breve explicação
dos tratamentos realizados, ao público presente.
Por último gostaríamos de salientar o programa “ISA -
Património”, promovido pela Câmara de Torres Vedras, que permite que este local
de interesse público esteja aberto, convidando todos a visitarem estas
fantásticas pinturas ao vivo.
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