Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS de 26 de Março de 2021
O CASO DE RUNA: DESRESPEITO PELA PAISAGEM E PELO SÍTIO?
Em Runa (Torres Vedras) a população
reagiu vigorosamente contra o projecto de construção de uma subestação
eléctrica praticamente dentro do aglomerado urbano. Havia alternativas quanto à
localização, mas parece que a opção teve em conta apenas critérios económicos,
pois é mais barato construir num lugar onde já existem acessos viários.
A Associação para a Defesa e Divulgação
do Património Cultural de Torres Vedras foi a Runa e falou com cidadãos que não
se conformam. Fizemos algumas perguntas:
- toda a população foi auscultada e
informada em tempo oportuno?
- a ocupação de terrenos de elevada
aptidão agrícola é economicamente sustentável?
- a comprovada existência de vestígios
arqueológicos, que atestam ocupação humana do Calcolítico e do tempo dos
Romanos, foi tida em conta?
A resposta a estas questões foi: NÃO!
Que tem uma Associação do Património a
ver com o problema? Tem e muito. O conceito de Património ultrapassou há muito
a limitação inicial que o ligava aos monumentos edificados e abarca hoje uma
multiplicidade de perspectivas que ninguém contesta. Uma delas é a ideia de que
as paisagens são Património que deve ser defendido e preservado; e as
características específicas de cada território devem ser abordadas como
elementos essenciais para a identidade e sentido de pertença das populações.
Isso mesmo o reconheceu a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura – UNESCO, que, na sua Conferência Geral realizada em Paris de 9 de
Novembro a 12 de Dezembro de 1962 aprovou uma Recomendação Sobre a Salvaguarda da Beleza e do Carácter das Paisagens
e dos Sítios. Neste documento, a Conferência Geral recomenda aos Estados
membros, de que Portugal faz parte, «que
apliquem as presentes disposições, adoptando (…) medidas com vista a fazer
cumprir, nos territórios sob a sua jurisdição, as normas e princípios
formulados na presente recomendação». Este importante documento – que faz
parte dos modernos fundamentos da planificação e ordenamento do território –
contém diversas especificações que é oportuno relembrar aqui. No Cap. II –
Princípios Gerais, diz expressamente:
«As medidas preventivas para a protecção das paisagens e dos sítios deverão
procurar protege-los contra os perigos que os ameaçam. Estas medidas deverão
incluir, especialmente, a fiscalização dos trabalhos e das actividades
susceptíveis de ameaçarem as paisagens e os sítios, nomeadamente:
(…)
c) Os cabos eléctricos de alta ou baixa
tensão, as instalações de produção e transporte de energia, os aeródromos, (…),
etc.». (sublinhado nosso)
O texto não podia ser mais claro. Vai direitinho ao que que se projecta para Runa: uma instalação eléctrica de alta potência com equipamentos destinados à transmissão e distribuição de energia eléctrica, além de instalações de proteção e controle, com postes de grande dimensão e densidade de cabos eléctricos que passarão a fazer parte da paisagem local, à beira da rua que liga Runa ao Penedo.
UM ATENTADO À PAISAGEM E AO SÍTIO?
Resta saber, portanto, se aquela
paisagem e aquele sítio onde vai ser construída a subestação, têm
características que os recomendem como lugares a salvaguardar.
Não temos dúvidas em afirmar que sim. A
quem as tenha, recomendamos uma visita vagarosa e atenta ao local. Adiantando
tal visita, traçamos desde já o esboço do que um olhar atento descobrirá.
Primeira surpresa: a subestação vai ser
construída sobre terrenos de elevadíssima aptidão agrícola, o característico
terreno de aluvião adjacente à margem de um curso fluvial – aqui, é um trecho
do rio Sizandro. Um homem já idoso, que nos acompanhava, dizia com desalento:
“constroem nestes terrenos tão ricos e qualquer dia comemos betão…”. A Leste, a
pouco mais de cem metros, desembocamos num lugar paradisíaco, ao som do canto
das aves, na faina da nidificação, e das águas do rio sobre o muro do açude onde,
poucos anos há, laborava uma azenha. Era ali que os gaiatos vinham nadar no
Verão, saltando da velha ponte, de perfil medieval, que liga as duas margens. A
Quinta da Granja, conhecida exploração agrícola, é mesmo ali ao lado. Mais
adiante, as ruínas da Quinta da Casa Boa.
Caminhemos agora para Norte. Um pouco
adiante chegamos ao Penedo. Do lado esquerdo, as ruínas da Quinta das
Pederneiras, na base do formoso monte onde, há cerca de 4 500 anos, viveu
uma comunidade da Idade do Cobre, abundantemente documentada pelas prospecções
arqueológicas de Aurélio Ricardo Belo, Leonel Trindade e Konrad Spindler que
desenterraram centenas de peças, hoje
guardadas no Museu Municipal de Torres Vedras. Outras pesquisas locais de Ricardo
Belo trouxeram à luz do dia um espólio arqueológico do início da nossa era que
nos permite inferir que a povoação do Penedo assenta sobre uma villa rustica ou mesmo um pequeno
povoado Romano, tanto mais que por aqui passavam importantes vias romanas. Uma
hipótese plausível é a existência de vestígios dessas vias no próprio local
onde se projecta a subestação eléctrica.
Parando no sopé do monte do Penedo,
olhando para poente, descortinamos outra várzea riquíssima que vai até ao
antigo Lar de Veteranos Militares, mandado construir pela princesa Dona
Francisca Benedita, filha do rei D. José. Lá está o grande edifício dos séculos
XVIII/XIX, bem visível ao longe, na antiga Quinta de Alcobaça. Sobranceira a
ele, ergue-se a colina onde alvejam as velas do moinho do Duque e, a meia
encosta, os muros do pequeno cemitério em que repousam antigos combatentes da
primeira Guerra Mundial.
Se alongarmos a vista pela linha do
horizonte, vamos descortinando as elevações do Barrigudo e da Portucheira, por
entre as quais passam a estrada, o rio e o caminho de ferro, a caminho da
cidade de Torres Vedras. Ali perto existem dois antigos fornos de cal,
exemplares magníficos de património industrial. Mais para Sudoeste, o alto do
Figueiredo e, na sequência, as colinas que bordejam a estrada para a Caixaria,
Ribaldeira e Dois Portos, mais a Sul.
Milénios de História humana contemplam o
visitante!
Pode contestar-se que esta visão
panorâmica excede em muito o local onde se projecta a construção da subestação.
É verdade, mas o que pretendemos mostrar é que um sítio nunca se limita ao
espaço físico mas implica envolvência, extensão contextualizadora. Amplidão de
olhar que pode ser irremediavelmente comprometida com um detalhe dissonante.
A este propósito, um habitante local,
conhecedor desta História, dizia-nos: “Para as povoações de Runa e Penedo, a
História e a envolvente paisagística são o melhor activo para o futuro. Foi
feito o Parque de lazer, pensamos num Parque de autocaravanas, projectamos um
roteiro pedestre que ligue os diversos pontos de interesse… Há pessoas de fora
que procuram casas para recuperar e aqui viverem, fartos da fealdade suburbana
de Lisboa. Não vão querer viver à beira de uma subestação eléctrica. Temos de
defender o potencial histórico e paisagístico que é uma esperança para os
nossos filhos.”
Paulo Carvalho, investigador dos
fenómenos de transformação e sustentabilidade do mundo rural confirma:
«A definição e promoção de uma imagem territorial de individualidade e
especificidade, alicerçada em características únicas e exclusivas, e de
qualidade, em muito centrada nas identidades e recursos simbólicos de cada
lugar, (…) é um caminho de revalorização dos territórios onde se redescobrem
novas centralidades com base na qualidade, e afinal a afirmação das teses
territorialistas de desenvolvimento, as que melhor respondem às maiores
exigências sociais e de cidadania participativa».(in: “O Ecomuseu da Serra da Lousã: desafio ou utopia?”. 1º Congresso de
Estudos Rurais, Vila Real, 2001)
A MELHOR DECISÃO?
A decisão de ali construir a subestação eléctrica foi da
empresa Infraestruturas de Portugal. Houve um período de consulta pública mas,
como é costume, para além do edital costumeiro, não se fez publicidade sobre o
mesmo. Fez-se uma sessão restrita nos Paços do Concelho, mas não se organizaram
sessões de esclarecimento e de auscultação pública com participação alargada. O
período de consulta pública caducou e a população foi posta perante uma decisão
que a afronta e lhe desagrada profundamente.
No processo de decisão foi ouvida a Agência Portuguesa do Ambiente que levantou sérias questões sobre a pertinência daquela localização, mas foi ignorada, o seu parecer não era vinculativo – como nada é, quando as decisões são tomadas nos gabinetes e as consultas públicas não passam de pró-formas para iludir a democracia...
Acabámos o passeio por estes lugares, exemplares magníficos
do que a UNESCO considera necessário salvaguardar. É aqui, meus senhores, às portas das
antiquíssimas povoações de Runa e do Penedo, que se situam as paisagens e os
sítios que uma prosaica subestação eléctrica pode macular de modo irreversível.
A Direcção
da Associação para a Defesa e Divulgação
do Património Cultural de Torres Vedras.
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