Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS de 30 de Abril de 2021
“SALVAGUARDAR”: UM HOSPITAL DE BENS CULTURAIS
Texto: Joaquim Moedas Duarte
Em 23 de Junho do ano passado, lia-se no Diário de Notícias:
«Mais um restauro desastroso de uma obra de arte em Espanha –
O quadro de Bartolomé Esteban Murillo mostrava a Virgem Maria mas ficou
irreconhecível depois do restauro feito por um amador. Especialistas pedem
legislação mais apertada para conservação do património». E recordava o que se
havia passado em 2012: «o restauro por parte de uma paroquiana idosa de um
fresco na Igreja do Santuário da Misericórdia em Borja (Aragão) teve resultados
desastrosos».
Tal como em Espanha, o nosso país está repleto de obras de
arte que necessitam de restauro: esculturas, móveis, pinturas, talha de
madeira, azulejos, etc… E também por cá existem pessoas com boa vontade mas sem
preparação técnica. A procura de soluções baratas leva a resultados calamitosos
e, quase sempre, irreparáveis.
No concelho de Torres Vedras a situação tem vindo a
melhorar. Escrevemos nesta página, em Junho de 2019, a propósito de uma
exposição de Arte Sacra no Turcifal, organizada pela Paróquia, que «há cada vez
mais a consciência de que o Estado não tem meios suficientes para garantir a
preservação deste vasto património. Como consequência, as populações,
organizadas em torno de Comissões ou da Paróquia, com o apoio das Juntas de
Freguesia e da Câmara Municipal, têm sido os principais interventores na
procura de soluções para a inevitável degradação do Património cultural». Foi
nessa exposição que apreciámos pela primeira vez os trabalhos da
“Salvaguardar”, de que falaremos adiante.
UM BOM EXEMPLO
Há dias, fomos contactados por um investigador de História
da Arte, no âmbito da Universidade de Coimbra, interessado em obter informações
sobre um escultor do séc. XVI que trabalhou para a Infanta D. Maria, filha do
rei D. Manuel I. Essa Infanta foi a fundadora e financiadora do Convento dos
frades arrábidos, no Barro, arredores de T Vedras, para o qual terá encomendado
ao dito escultor uma imagem de Nª Srª das Dores, a qual, aquando da implantação
da República, foi levada, por precaução, para a aldeia do Carvalhal, de onde já
não saiu. O investigador pedia-nos fotografias da imagem. Sim, tínhamos fotos
antigas mas quisemos actualizá-las e, para isso, procurámos o pároco, P. Paulo Antunes,
que já conhecíamos como homem dedicado à conservação do património de arte
sacra das suas paróquias. Foi ele que nos disse que a referida imagem baixara
ao hospital para restauro.
A metáfora do hospital é nossa. Tal como nós, os objectos de
arte deterioram-se com o tempo. Os de madeira, dado que esta é um material
orgânico, são influenciados pelas condições ambientais – humidade, temperatura
e outras – e por agentes bióticos como as bactérias, os fungos ou os insectos
xilófagos. O mesmo acontece às telas de pintura antiga, e a tudo o mais.
Perante a nossa curiosidade, P. Paulo levou-nos à aldeia de
Caixaria (Dois Portos) onde encontrámos o tal hospital: numa antiga Escola
Primária, agora devoluta e cedida para o efeito, está sediada a “Salvaguardar”,
uma pequena empresa de “Conservação e Restauro de Bens Culturais”, onde exercem
a sua profissão de Conservadoras – Restauradoras a Milene Santos e a Daniela
Morgadinho. Lá fomos encontrar as duas jovens, luvas nas mãos, a tratarem, com
eficiência e desvelo, a imagem de Nª Srª dos Anjos.
Na antiga sala de aula, transformada em oficina, viam-se
muitas outras peças de arte sacra, em diversas fases do processo restaurador:
imagens de terracota, molduras de talha dourada, imagens de roca ou estofadas,
móveis de madeira, crucifixos com imagens de marfim. Isto implica conhecimento
teórico e elevada competência técnica. Já sabíamos que assim era quando
observámos o notável trabalho de restauro, realizado em 2018/19 por estas duas
profissionais nas quatro telas do séc. XVIII, dos “Doutores da Igreja” que
podemos admirar na capela mór da Igreja de Santiago, em Torres Vedras. O
relatório final que nos facultaram é um registo impressionante daquele
notabilíssimo trabalho.
AS MÃOS QUE CURAM
Daniela Morgadinho e Milene Santos têm Licenciatura e
Mestrado em Conservação e Restauro, formação que foram completando com
passagens por experiências especializadas em Madrid, entre outras.
A opção profissional não foi casual. No caso da Daniela,
resultou do gosto precoce pela preservação na área das madeiras, que a levou à
especialização no mobiliário (Mestrado), talha e escultura. Milene, não vendo
futuro na arqueologia e egiptologia, áreas da sua paixão, dedicou-se à
conservação e restauro com especialização na área de pintura de cavalete. Uma e
outra sentem-se bem entre obras de arte, antigas ou mais recentes, que
necessitem dos cuidados especializados de quem as sabe e gosta de tratar.
Começaram por trabalhar em diversas empresas, mas a
experiência adquirida bem como os contactos estreitos que mantêm com
professores e formadores, deram-lhes alento para, em 2016, se lançarem no
projecto próprio que designaram por “Salvaguardar – Conservação e Restauro de
Bens Culturais”. Em 2019 fundaram a
TENTO – Associação de Conservação e Restauro de Torres Vedras, o que
proporcionou uma parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras. Desta
colaboração resultou a cedência da antiga Escola Primária da Caixaria onde
exercem o seu trabalho.
Da qualidade e extensão do seu labor falam os registos das
muitas intervenções na nossa região. Sem sermos exaustivos, para além das
citadas telas do Doutores da Igreja, referimos: Senhor Jesus Morto, escultura
policromada do séc. XVIII, do Turcifal; património móvel (escultura e
mobiliário) e imóvel (pintura mural e azulejaria) no Convento de Charnais, na
Merceana; dois quadros magníficos de pintura sobre tábua, do séc. XVI –
Baptismo de Cristo e Pentecostes – do Turcifal.
Milene e Daniela não se limitam à realização material. Assim
o disseram: «No futuro pretendemos criar parcerias com outras Associações e
entidades relacionadas com o património; fortalecer a ligação com a comunidade
e as escolas através do serviço educativo com acções de formação para a
preservação e valorização do património; e realização de investigações, estudos
e intercâmbios, relacionados com a cultura e o património».
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