28 maio 2021

“SALVAGUARDAR”: UM HOSPITAL DE BENS CULTURAIS

 Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS de 30 de Abril de 2021


“SALVAGUARDAR”: UM HOSPITAL DE BENS CULTURAIS

Texto: Joaquim Moedas Duarte

 

Em 23 de Junho do ano passado, lia-se no Diário de Notícias:

«Mais um restauro desastroso de uma obra de arte em Espanha – O quadro de Bartolomé Esteban Murillo mostrava a Virgem Maria mas ficou irreconhecível depois do restauro feito por um amador. Especialistas pedem legislação mais apertada para conservação do património». E recordava o que se havia passado em 2012: «o restauro por parte de uma paroquiana idosa de um fresco na Igreja do Santuário da Misericórdia em Borja (Aragão) teve resultados desastrosos».

Tal como em Espanha, o nosso país está repleto de obras de arte que necessitam de restauro: esculturas, móveis, pinturas, talha de madeira, azulejos, etc… E também por cá existem pessoas com boa vontade mas sem preparação técnica. A procura de soluções baratas leva a resultados calamitosos e, quase sempre, irreparáveis.

No concelho de Torres Vedras a situação tem vindo a melhorar. Escrevemos nesta página, em Junho de 2019, a propósito de uma exposição de Arte Sacra no Turcifal, organizada pela Paróquia, que «há cada vez mais a consciência de que o Estado não tem meios suficientes para garantir a preservação deste vasto património. Como consequência, as populações, organizadas em torno de Comissões ou da Paróquia, com o apoio das Juntas de Freguesia e da Câmara Municipal, têm sido os principais interventores na procura de soluções para a inevitável degradação do Património cultural». Foi nessa exposição que apreciámos pela primeira vez os trabalhos da “Salvaguardar”, de que falaremos adiante.

 

UM BOM EXEMPLO

Há dias, fomos contactados por um investigador de História da Arte, no âmbito da Universidade de Coimbra, interessado em obter informações sobre um escultor do séc. XVI que trabalhou para a Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I. Essa Infanta foi a fundadora e financiadora do Convento dos frades arrábidos, no Barro, arredores de T Vedras, para o qual terá encomendado ao dito escultor uma imagem de Nª Srª das Dores, a qual, aquando da implantação da República, foi levada, por precaução, para a aldeia do Carvalhal, de onde já não saiu. O investigador pedia-nos fotografias da imagem. Sim, tínhamos fotos antigas mas quisemos actualizá-las e, para isso, procurámos o pároco, P. Paulo Antunes, que já conhecíamos como homem dedicado à conservação do património de arte sacra das suas paróquias. Foi ele que nos disse que a referida imagem baixara ao hospital para restauro.

A metáfora do hospital é nossa. Tal como nós, os objectos de arte deterioram-se com o tempo. Os de madeira, dado que esta é um material orgânico, são influenciados pelas condições ambientais – humidade, temperatura e outras – e por agentes bióticos como as bactérias, os fungos ou os insectos xilófagos. O mesmo acontece às telas de pintura antiga, e a tudo o mais.

Perante a nossa curiosidade, P. Paulo levou-nos à aldeia de Caixaria (Dois Portos) onde encontrámos o tal hospital: numa antiga Escola Primária, agora devoluta e cedida para o efeito, está sediada a “Salvaguardar”, uma pequena empresa de “Conservação e Restauro de Bens Culturais”, onde exercem a sua profissão de Conservadoras – Restauradoras a Milene Santos e a Daniela Morgadinho. Lá fomos encontrar as duas jovens, luvas nas mãos, a tratarem, com eficiência e desvelo, a imagem de Nª Srª dos Anjos.


Na antiga sala de aula, transformada em oficina, viam-se muitas outras peças de arte sacra, em diversas fases do processo restaurador: imagens de terracota, molduras de talha dourada, imagens de roca ou estofadas, móveis de madeira, crucifixos com imagens de marfim. Isto implica conhecimento teórico e elevada competência técnica. Já sabíamos que assim era quando observámos o notável trabalho de restauro, realizado em 2018/19 por estas duas profissionais nas quatro telas do séc. XVIII, dos “Doutores da Igreja” que podemos admirar na capela mór da Igreja de Santiago, em Torres Vedras. O relatório final que nos facultaram é um registo impressionante daquele notabilíssimo trabalho.


Agora, na oficina, víamos ao vivo como se tratam as doenças de tantos bens culturais. A imagem que procurávamos ali estava, com as mazelas bem à vista mas preservando a beleza secular que tantas gerações veneraram.






AS MÃOS QUE CURAM

 

Daniela Morgadinho e Milene Santos têm Licenciatura e Mestrado em Conservação e Restauro, formação que foram completando com passagens por experiências especializadas em Madrid, entre outras.

A opção profissional não foi casual. No caso da Daniela, resultou do gosto precoce pela preservação na área das madeiras, que a levou à especialização no mobiliário (Mestrado), talha e escultura. Milene, não vendo futuro na arqueologia e egiptologia, áreas da sua paixão, dedicou-se à conservação e restauro com especialização na área de pintura de cavalete. Uma e outra sentem-se bem entre obras de arte, antigas ou mais recentes, que necessitem dos cuidados especializados de quem as sabe e gosta de tratar.

Começaram por trabalhar em diversas empresas, mas a experiência adquirida bem como os contactos estreitos que mantêm com professores e formadores, deram-lhes alento para, em 2016, se lançarem no projecto próprio que designaram por “Salvaguardar – Conservação e Restauro de Bens Culturais”. Em 2019 fundaram a  TENTO – Associação de Conservação e Restauro de Torres Vedras, o que proporcionou uma parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras. Desta colaboração resultou a cedência da antiga Escola Primária da Caixaria onde exercem o seu trabalho.

Da qualidade e extensão do seu labor falam os registos das muitas intervenções na nossa região. Sem sermos exaustivos, para além das citadas telas do Doutores da Igreja, referimos: Senhor Jesus Morto, escultura policromada do séc. XVIII, do Turcifal; património móvel (escultura e mobiliário) e imóvel (pintura mural e azulejaria) no Convento de Charnais, na Merceana; dois quadros magníficos de pintura sobre tábua, do séc. XVI – Baptismo de Cristo e Pentecostes – do Turcifal.

Milene e Daniela não se limitam à realização material. Assim o disseram: «No futuro pretendemos criar parcerias com outras Associações e entidades relacionadas com o património; fortalecer a ligação com a comunidade e as escolas através do serviço educativo com acções de formação para a preservação e valorização do património; e realização de investigações, estudos e intercâmbios, relacionados com a cultura e o património».






Voltando à metáfora do hospital, a "Salvaguardar" não faz apenas medicina curativa, preocupa-se também com a preventiva. A bem do nosso Património Cultural Material.









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