25 fevereiro 2021

CARNAVAL DE TORRES VEDRAS A PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE?

 

Página «PATRIMÓNIOS» no jornal "BADALADAS" | 26 FEVEREIRO 2021


CARNAVAL DE TORRES VEDRAS A PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE?



   O Diário da República, 2ª Série, de 13 de Janeiro p. passado publicou um Anúncio de Consulta Pública, pelo prazo de 30 dias, “para efeitos de inscrição do «Carnaval de Torres Vedras» no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial”. Mal andaria esta Associação do Património se não interviesse nesta consulta e, por isso, enviámos à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) – entidade que organiza o processo – o nosso parecer devidamente fundamentado. Sendo um texto longo, não caberá aqui transcrevê-lo, mas consideramos nosso dever dar conta do essencial da nossa posição discordante acerca daquela pretensão.

   Observação preliminar: como torrienses, partilhamos com os nossos concidadãos o gosto pelos divertimentos carnavalescos, uma prática festiva que há muito faz parte da nossa convivência social. Muitos recordarão que, durante 21 anos, publicámos na semana de Carnaval a Revista O BARRETE, que se distinguiu pela sátira mordaz e certeira, em cartoons e textos de reconhecida graça e projecção local.  Gostamos de brincar ao Carnaval!

A nossa perspectiva de abordagem pauta-se pela legislação nacional sobre Património Cultural e os documentos internacionais sobre esta matéria, nomeadamente a “Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial”, aprovada pela UNESCO na sua reunião de Paris em 17 de Outubro de 2003.

A iniciativa municipal em apreciação resulta de uma ideia apresentada pelo então Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, Carlos Miguel, ao jornal local Badaladas, em 11 de Julho de 2014, que informava ter sido formalizada, no início daquele ano, a candidatura do Carnaval de Torres à classificação de Património Cultural Imaterial da Humanidade, conforme os cânones definidos pela UNESCO.

Verificamos que a ideia avançou e se transformou no processo que esteve em consulta pública, dado que o procedimento de inventariação nacional, no âmbito da legislação em vigor, é necessário para a posterior candidatura à “Lista Representativa do Património Imaterial da Humanidade”.

Acolhido e defendido no seio da UNESCO, o conceito de Património Cultural Imaterial visa muito justamente relevar a importância de certas manifestações sociais e culturais da Humanidade em que se afirmam valores culturais e humanos, que pela sua originalidade e representatividade histórica, social, artística e cultural se impõe à admiração dos povos, reconhecendo-se a importância de os valorizar com uma distinção qualificativa.

Será que os festejos carnavalescos de Torres Vedras se enquadram neste nível de práticas?

CRITÉRIOS DE APRECIAÇÃO

Em nosso entender, os critérios apontados no Artigo 10º do Decreto-Lei nº 149/2015, devem forçosamente articular-se com o que dispõe o Artigo 2º da Lei nº 107/2001, (que “estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural). Aí se aponta que “integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização.”

Mais adiante afirma que “o interesse cultural relevante (…) dos bens que integram o património cultural reflectirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade. (sublinhado nosso).

Não pondo em causa a significativa adesão da população torriense aos festejos carnavalescos e a consideração de que estes se tornaram prática anual a partir dos anos 20 do século XX, em vão procuramos neles a expressão de muitos daqueles valores como sejam a autenticidade, a originalidade, a raridade, a singularidade ou a exemplaridade. De norte a sul do país encontramos festejos de Carnaval, com mais ou menos variantes, mas sem diferenças significativas.

Na proposta apresentada à DGPC, salienta-se como ponto decisivo a participação da comunidade torriense em todas as realizações carnavalescas. Seria este, até, o critério decisivo para a sua inclusão no inventário nacional do Património Cultural Imaterial. No entanto, bem sabemos que se trata de uma actividade planeada e programada por profissionais que garantem a produção de carros alegóricos, a organização dos corsos, a contratação de grupos de bombos do Norte do país, a animação musical nocturna, a recepção e cobrança de taxas dos inúmeros bares de ocasião, espalhados por toda a cidade, e a garantia de segurança através de Seguradoras externas com seu corpo de guardas. Todo este arsenal organizativo é garantido pela empresa municipal Promotorres. E aquilo que chegou a ter, há uns bons anos atrás, intuitos de beneficência, transformou-se num negócio de muitos milhões de Euros. Leia-se, a este propósito, o oportuno artigo de António Carneiro, publicado neste jornal na passada semana, intitulado «Carnaval de Torres – Morte e ressurreição – Da “municipalização” do evento».

O “Carnaval mais português de Portugal” – frase propagandística que pegou e é glosada exaustivamente desde há alguns anos – tem uma grande participação popular, mais ou menos espontânea, de muitos foliões e forasteiros que se mascaram, desfilam, dançam e, sobretudo, bebem muito. No fundo, divertem-se… Mas configurará isto uma candidatura a Património Imaterial?

Recuperando os requisitos da UNESCO, no documento acima referido, não se lhe conhece nenhuma expressão artística específica de representação, dança, expressão musical ou artefacto com características identitárias.

Mesmo como prática social, o fenómeno das “matrafonas” – homens mascarados de mulheres – apresentado como a grande originalidade do Carnaval de Torres Vedras, não cabe na categoria de manifestação cultural singular e original pois encontramo-lo, com muitas variações, em festejos carnavalescos de outros lugares do país. A matrafona não foi inventada em Torres Vedras, é uma prática entrudesca, exemplo do “mundo virado ao contrário”, característico de antiquíssimos festejos, anteriores à nacionalidade e com representações comprovadas, pelo menos, desde a Idade Média, em diversas manifestações.

A criatividade está condicionada superiormente pela empresa organizadora e pela autarquia que deliberam sobre o TEMA de cada carnaval, aprovam os conteúdos dos carros alegóricos, subsidiam grupos de mascarados sobre esse tema, premiando-os em concursos, desincentivando assim outras iniciativas e até a espontaneidade individual. Registe-se, igualmente, que todo o património material associado ao festejo não tem carácter tradicional. Tanto os carros alegóricos como o “monumento ao Carnaval”, erigido no ponto mais central da cidade, são de fibra de vidro, produzidos industrialmente em empresas especializadas em cenários e produções publicitárias.

 

EM CONCLUSÃO 

Em nosso entender, o Carnaval de Torres Vedras não integra, manifestamente, o conceito de Património Cultural Imaterial pois não corresponde aos critérios enumerados na legislação nacional, pelo que não vemos tais festejos com características que suportem a sua inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

 Estes festejos, ainda que possam ter algumas características diferenciadoras em relação a outros congéneres, também não se enquadram no conjunto de parâmetros definidos na Convenção da UNESCO para uma classificação a Património Cultural Imaterial da Humanidade, dado que as práticas e os valores que põe em jogo se referem muito mais à contemporaneidade do que a tradições identitárias que reflictam um modo cultural próprio de vivências específicas de uma comunidade. No nosso concelho há outras manifestações culturais que, essas sim, poderiam ajustar-se aos critérios exigidos.  

Esta candidatura será uma ousada operação de marketing, como temos ouvido, mais que uma vez, aos nossos autarcas. Que a Câmara Municipal a protagonize, é natural e resulta de uma bem compreensível intenção de rentabilizar um Carnaval cada vez mais oneroso e exigente. Mas daí a transformá-lo em Património Cultural Imaterial da Humanidade parece-nos inteiramente desajustado e irrealista.

 

A DIRECÇÃO DA

ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA E DIVULGAÇÃO

DO PATRIMÓNIO CULTURAL DE TORRES VEDRAS

26 Fevereiro 2021

 



 

 

 

                                       

 

                               


2 comentários:

  1. Numa cidade que se deixa morrer, desgarrada de todo e qualquer projecto cultural inclusivo e consistente, mobilizador de todos; onde se deixou fugir até o seu Hospital em valências prioritárias (já não se nasce torrense, mas caldense); em que os lugares de algum culto e tradição são abandonados, esquecidos, mal amados?...Não será um pobre poeta que se alegre com essa ideia peregrina de lançar um carnaval de beberrões e matrafonas para tal nível de distinção. A ideia aparenta nascer de um pensamento escarnecedor. Nem o antigo Carnaval, desinteressado de ganâncias materiais, se atreveria a tanto. Eram outras cabeças.
    Agora é a fúria de ganhar dinheiro, fechando o «corso», trazendo ruído e vulgaridade para alguns massacrados moradores do trajecto. E lucros apenas para alguns. Afrontoso. Mesquinho. Minha terra, meus antepassados e conterrâneos não merecem tamanha desfeita, para além do descaso a que já vem sendo votada. Maria Laura Madeira -26 de Fevereiro de 2021

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  2. Perfeitamente de acordo. Não é hora nem tem mérito. para
    tão honorífico título. Vão com calma....,há outras prioridades e com mérito.
    É só uma opinião, a valer o que vale...

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