Página «PATRIMÓNIOS» no jornal "BADALADAS" | 26 FEVEREIRO 2021
CARNAVAL DE TORRES VEDRAS A PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DA HUMANIDADE?
O Diário da República, 2ª Série, de 13 de
Janeiro p. passado publicou um Anúncio de Consulta Pública, pelo prazo de 30
dias, “para efeitos de inscrição do «Carnaval de Torres Vedras» no Inventário
Nacional do Património Cultural Imaterial”. Mal andaria esta Associação do
Património se não interviesse nesta consulta e, por isso, enviámos à
Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) – entidade que organiza o processo
– o nosso parecer devidamente fundamentado. Sendo um texto longo, não caberá
aqui transcrevê-lo, mas consideramos nosso dever dar conta do essencial da
nossa posição discordante acerca daquela pretensão.
Observação preliminar: como torrienses, partilhamos com os nossos concidadãos o gosto pelos divertimentos carnavalescos, uma prática festiva que há muito faz parte da nossa convivência social. Muitos recordarão que, durante 21 anos, publicámos na semana de Carnaval a Revista O BARRETE, que se distinguiu pela sátira mordaz e certeira, em cartoons e textos de reconhecida graça e projecção local. Gostamos de brincar ao Carnaval!
A nossa perspectiva de abordagem pauta-se pela legislação
nacional sobre Património Cultural e os documentos internacionais sobre esta
matéria, nomeadamente a “Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural
Imaterial”, aprovada pela UNESCO na sua reunião de Paris em 17 de Outubro de
2003.
A iniciativa municipal em apreciação resulta de uma ideia
apresentada pelo então Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, Carlos
Miguel, ao jornal local Badaladas, em
11 de Julho de 2014, que informava ter sido formalizada, no início daquele ano,
a candidatura do Carnaval de Torres à classificação de Património Cultural
Imaterial da Humanidade, conforme os cânones definidos pela UNESCO.
Verificamos que a ideia avançou e se transformou no processo que
esteve em consulta pública, dado que o procedimento de inventariação nacional,
no âmbito da legislação em vigor, é necessário para a posterior candidatura à
“Lista Representativa do Património Imaterial da Humanidade”.
Acolhido e defendido no seio da UNESCO, o conceito de Património
Cultural Imaterial visa muito justamente relevar a importância de certas
manifestações sociais e culturais da Humanidade em que se afirmam valores
culturais e humanos, que pela sua originalidade e representatividade histórica,
social, artística e cultural se impõe à admiração dos povos, reconhecendo-se a
importância de os valorizar com uma distinção qualificativa.
Será que os festejos carnavalescos de Torres Vedras se enquadram neste nível de práticas?
CRITÉRIOS DE APRECIAÇÃO
Em nosso entender, os critérios apontados no Artigo 10º do
Decreto-Lei nº 149/2015, devem forçosamente articular-se com o que dispõe o
Artigo 2º da Lei nº 107/2001, (que “estabelece as bases da política e do regime
de protecção e valorização do património cultural). Aí se aponta que “integram
o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de
civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser
objecto de especial protecção e valorização.”
Mais adiante afirma que “o interesse cultural relevante (…)
dos bens que integram o património cultural reflectirá valores de memória, antiguidade, autenticidade,
originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade. (sublinhado
nosso).
Não pondo em causa a significativa adesão da população
torriense aos festejos carnavalescos e a consideração de que estes se tornaram
prática anual a partir dos anos 20 do século XX, em vão procuramos neles a
expressão de muitos daqueles valores como sejam a autenticidade, a
originalidade, a raridade, a singularidade ou a exemplaridade. De norte a sul
do país encontramos festejos de Carnaval, com mais ou menos variantes, mas sem
diferenças significativas.
Na proposta apresentada à DGPC, salienta-se como ponto
decisivo a participação da comunidade torriense em todas as realizações
carnavalescas. Seria este, até, o critério decisivo para a sua inclusão no
inventário nacional do Património Cultural Imaterial. No entanto, bem sabemos
que se trata de uma actividade planeada e programada por profissionais que
garantem a produção de carros alegóricos, a organização dos corsos, a
contratação de grupos de bombos do Norte do país, a animação musical nocturna,
a recepção e cobrança de taxas dos inúmeros bares de ocasião, espalhados por
toda a cidade, e a garantia de segurança através de Seguradoras externas com
seu corpo de guardas. Todo este arsenal organizativo é garantido pela empresa
municipal Promotorres. E aquilo que
chegou a ter, há uns bons anos atrás, intuitos de beneficência, transformou-se
num negócio de muitos milhões de Euros. Leia-se, a este propósito, o oportuno
artigo de António Carneiro, publicado neste jornal na passada semana,
intitulado «Carnaval de Torres – Morte e ressurreição – Da “municipalização” do
evento».
O “Carnaval mais português de Portugal” – frase
propagandística que pegou e é glosada exaustivamente desde há alguns anos – tem
uma grande participação popular, mais ou menos espontânea, de muitos foliões e
forasteiros que se mascaram, desfilam, dançam e, sobretudo, bebem muito. No
fundo, divertem-se… Mas configurará isto uma candidatura a Património
Imaterial?
Recuperando os requisitos da UNESCO, no documento acima
referido, não se lhe conhece nenhuma expressão artística específica de
representação, dança, expressão musical ou artefacto com características
identitárias.
Mesmo como prática social, o fenómeno das “matrafonas” –
homens mascarados de mulheres – apresentado como a grande originalidade do
Carnaval de Torres Vedras, não cabe na categoria de manifestação cultural
singular e original pois encontramo-lo, com muitas variações, em festejos
carnavalescos de outros lugares do país. A matrafona não foi inventada em
Torres Vedras, é uma prática entrudesca, exemplo do “mundo virado ao contrário”,
característico de antiquíssimos festejos, anteriores à nacionalidade e com
representações comprovadas, pelo menos, desde a Idade Média, em diversas
manifestações.
A criatividade está condicionada superiormente pela empresa
organizadora e pela autarquia que deliberam sobre o TEMA de cada carnaval,
aprovam os conteúdos dos carros alegóricos, subsidiam grupos de mascarados
sobre esse tema, premiando-os em concursos, desincentivando assim outras
iniciativas e até a espontaneidade individual. Registe-se, igualmente, que todo
o património material associado ao festejo não tem carácter tradicional. Tanto
os carros alegóricos como o “monumento ao Carnaval”, erigido no ponto mais
central da cidade, são de fibra de vidro, produzidos industrialmente em empresas
especializadas em cenários e produções publicitárias.
EM CONCLUSÃO
Em nosso entender, o Carnaval de Torres Vedras não integra,
manifestamente, o conceito de Património Cultural Imaterial pois não
corresponde aos critérios enumerados na legislação nacional, pelo que não vemos
tais festejos com características que suportem a sua inscrição no Inventário
Nacional do Património Cultural Imaterial.
Estes festejos, ainda
que possam ter algumas características diferenciadoras em relação a outros
congéneres, também não se enquadram no conjunto de parâmetros definidos na
Convenção da UNESCO para uma classificação a Património Cultural Imaterial da
Humanidade, dado que as práticas e os valores que põe em jogo se referem muito
mais à contemporaneidade do que a tradições identitárias que reflictam um modo
cultural próprio de vivências específicas de uma comunidade. No nosso concelho
há outras manifestações culturais que, essas sim, poderiam ajustar-se aos
critérios exigidos.
Esta candidatura será uma ousada operação de marketing, como temos ouvido, mais que
uma vez, aos nossos autarcas. Que a Câmara Municipal a protagonize, é natural e
resulta de uma bem compreensível intenção de rentabilizar um Carnaval cada vez
mais oneroso e exigente. Mas daí a transformá-lo em Património Cultural
Imaterial da Humanidade parece-nos inteiramente desajustado e irrealista.
A DIRECÇÃO DA
ASSOCIAÇÃO PARA A DEFESA E DIVULGAÇÃO
DO PATRIMÓNIO CULTURAL DE TORRES VEDRAS
26 Fevereiro 2021
Numa cidade que se deixa morrer, desgarrada de todo e qualquer projecto cultural inclusivo e consistente, mobilizador de todos; onde se deixou fugir até o seu Hospital em valências prioritárias (já não se nasce torrense, mas caldense); em que os lugares de algum culto e tradição são abandonados, esquecidos, mal amados?...Não será um pobre poeta que se alegre com essa ideia peregrina de lançar um carnaval de beberrões e matrafonas para tal nível de distinção. A ideia aparenta nascer de um pensamento escarnecedor. Nem o antigo Carnaval, desinteressado de ganâncias materiais, se atreveria a tanto. Eram outras cabeças.
ResponderEliminarAgora é a fúria de ganhar dinheiro, fechando o «corso», trazendo ruído e vulgaridade para alguns massacrados moradores do trajecto. E lucros apenas para alguns. Afrontoso. Mesquinho. Minha terra, meus antepassados e conterrâneos não merecem tamanha desfeita, para além do descaso a que já vem sendo votada. Maria Laura Madeira -26 de Fevereiro de 2021
Perfeitamente de acordo. Não é hora nem tem mérito. para
ResponderEliminartão honorífico título. Vão com calma....,há outras prioridades e com mérito.
É só uma opinião, a valer o que vale...