PÁGINA «PATRIMÓNIOS» NO JORNAL "BADALADAS" | 29 JANEIRO 2021
Ainda os frontais de
altar em guadameci
da igreja da
Misericórdia de Torres Vedras
Franklin Pereira, reconhecido
investigador desta área particular da História da Arte, apontou alguns erros e
imprecisões do nosso artigo, publicado em Novembro passado. Por solicitação
nossa, escreveu o texto que ora se publica. É uma colaboração que honra o
Badaladas e que agradecemos. | Joaquim Moedas Duarte
Publicado
na edição de 27 de Novembro do ano anterior, o artigo sobre estes frontais
apresenta alguns erros.
Não
está documentada qualquer referência ao guadameci em países árabes; apesar da
fixação da folha de ouro ou prata sobre couro ser um método milenar – já
existia na Egipto faraónico –, não é isso que torna uma peça trabalhada pela
técnica do guadameci, pois há outros procedimentos acrescidos, apenas
desenvolvidos na Ibéria islâmica. Também a descrição técnica apresentada nesse
artigo é relativa ao método ibérico (que não é o dos frontais em causa), cuja
existência nos faz recuar ao século XII.
Ora
a fama da manufactura – não só de Córdova, mas de outras cidades, como Lisboa e
Évora – espalhava-se pela Europa nobre e eclesiástica. A produção lusitana
atingia ainda a Itália, o Brasil, Moçambique, Goa, Diu e mesmo o Japão, no
século XVI.
A
técnica ibérica, elaborada recorrendo a rectângulos de couro de carneiro,
criava painéis lisos cobertos com folha de prata, pintura a óleo e texturação
e, em particular, a cor dourada dada por um verniz resultado da cozedura de
ingredientes vegetais. A texturação por punções de pouco recorte (para não
danificar a superfície prateada) chama-se “granido”
em Portugal (de acordo com o regimento dos guadamecileiros, no famoso Livro dos
Regimentos, de Lisboa, de 1572) ou “picado”
em Espanha da mesma época. O termo “lavrado”
diz respeito a outra arte do couro, aquela que apresenta desenhos de algum modo
vincados na superfície. Na época românica e gótica, o couro era lavrado por
incisão; desde o Renascimento, foi a cadeira portuguesa encourada a peça mais
saliente (e famosa na Europa nobre), e o couro bovino era lavrado por cinzéis
não-cortantes.
Em
poucas palavras, os motivos dos guadamecis derivavam inicialmente da arte
mudéjar tardia (vulgo “arabescos”),
mas sobretudo de desenhos florais (ditos “ao
brocado”); o Renascimento impôs motivos “ao grotesco” e, por vezes, a encomenda personalizada incluía
pintura devocional (a “imaginária”),
heráldica e paisagens. Entre os chamados “ofícios
mecânicos”, os guadamecileiros eram uma elite, não só devido ao processo
complexo e luxuoso de elaboração, mas por terem como compradores a classe
poderosa; a par de ourives e tapeceiros, permaneciam na esfera do poder régio,
havendo dados que atestam o cargo de “guadamecileiro
do rei” no tempo de D. Manuel e D. João III. As obrigações dos ofícios – os
regimentos – eram rígidas, e um mestre estava vinculado ao seu trabalho, com
diploma oficializado pela câmara municipal. Podia um mestre ter “tenda”/oficina aberta e receber
ajudantes (oficiais), mas ter apenas um aprendiz, geralmente um adolescente.
Terá sido devido ao comércio via Feitoria da
Flandres e à permanência de artífices portugueses em Amesterdão em inícios do
século XVII que mestres locais criaram oficinas nos Países Baixos; estas
seguiam inicialmente os métodos que deram fama à península.
O
ano de 1628 marca uma viragem acentuada: a invenção, em Haia e Amesterdão, de
uma prensa e moldes em madeira talhada permitiu dar relevo ao couro (já não
carneiro, mas bezerro) e adaptá-lo a novos desenhos do Barroco. A repetição
acelerava a produção, e as novas fábricas empregavam dezenas de artífices e
consumiam centenas de peles. A famosa “L’Encyclopédie: recueil de planches sur les
sciences, les arts libéraux et les arts méchaniques, avec leur explication:
Arts du Cuir”, de Diderot e Alembert, de
1771, tem duas gravuras relativas a este trabalho industrial. A novidade e atracção destes motivos
expandiu-se e, importados pela Península, contribuíram para o drástico declinar
da produção.
OS
EXEMPLARES DA MISERICÓRDIA DE TORRES VEDRAS
É
neste contexto centro-europeu que são criados estes guadamecis vistos em Torres
Vedras: o desenho é atribuído ao francês Daniel Marot (1661-1752), arquitecto e
desenhador de ornamento, ido para os Países Baixos em 1685 para escapar à
intolerância religiosa, pois era huguenote. Os seus desenhos foram editados em
1702 e 1712, influenciando as artes decorativas de então, entre as quais a do
guadameci industrial.
Contrariamente
a outros guadamecis dos Países Baixos, estes exemplos foram estampados por
placa de metal; daí a texturação, que não foi realizada manualmente por
punções.
Esta
é a época mais repetitiva da prensagem dos guadamecis, com pouca variedade de
desenhos.
Este
frontal com catorze rectângulos – um número elevado e único pela quantidade
usada – em Torres Vedras data de 1703-1740, e carece, tal como outros, de um
estudo dos inventários eclesiásticos: quem comprava, de onde vinham, qual o
preço.
Os
motivos expostos têm dois padrões. Um deles mostra duas aves afrontadas, com
raminho no bico, sob uma estilização vegetalista em leque.
O
outro motivo mostra um vaso de flores encimado por uma cúpula com franjas,
entre estilizações florais e partes padronizadas. É este motivo que forma os
grandes rectângulos, encimados por sanefas ou quadrados, com o mesmo padrão ou
o descrito anteriormente, cortados e por vezes colados invertidos.
Padrões
semelhantes encontram-se em uso na Igreja de Miragaia (perto da Alfândega do
Porto), e na Igreja do Santuário de Balsamão (Trás-os-Montes). Um frontal
semelhante (motivo das aves) encontra-se na capela de Nossa Senhora do Carmo,
em Murfacém (Almada). Outros dois frontais (de ambos os motivos) estão no Museu
de Alberto Sampaio e vieram de Felgueiras, do Convento de Santa Maria Maior de
Pombeiro.
Ainda
a nível museológico, um frontal, existente nas reservas do Museu Nacional de
Arte Antiga, repete o motivo das aves e poderá ser um dos três que, entre os
cinco nas reservas, veio da capela do Forte da Ínsua, em Moledo do Minho – tal
facto mostra a expansão do guadameci por todo o país, expansão esta mais
saliente na época tardo-medieval e renascentista (período áureo da produção),
em particular a sul de Coimbra, zona de maior influência do período
islâmico/andalusí.
Outros
guadamecis com estes desenhos estão no Museu de Etnografia e História da Póvoa
de Varzim, e Museu Nogueira da Silva (Braga). Alguns estofos e biombos mostram
semelhantes obras prensadas.
Um
aspecto peculiar diz respeito à pintura manual, pois o artífice usou um pincel
plano, com alguns pelos cortados: de uma só passagem, pintava várias linhas. O
facto é particularmente visível nas pétalas das flores.
Tal
como aconteceu com outros rectângulos de guadameci relevado por prensa, a
montagem deveria ser feita após a sua importação por Espanha e Portugal, e
formavam, finalmente, frontais de altar, estofos e biombos.
Contudo,
a arte estava já à beira da extinção, devido às novas modas e padrões de
conforto nos interiores. Nas igrejas, a profusão da talha dourada relegou para
segundo plano o guadameci. Tudo isso explica a drástica falta de exemplares que
atestem a qualidade e diversidade desta arte, extinta em meados do século
XVIII.
Alguns
anos atrás, o Museu de Alberto Sampaio realizou um vídeo, onde explico o método
ibérico e apresento uma série de obras em guadameci, incluso os dois desenhos semelhantes
aos de Torres Vedras; o vídeo é de acesso livre e pode ser visionado em:
https://www.youtube.com/watch?v=413sMIxE5pQ
Franklin
Pereira – guadamecileiro e investigador do ARTIS-Instituto de História da Arte
/ Faculdade de Letras / Universidade de Lisboa
Sem comentários:
Enviar um comentário