25 fevereiro 2021

Ainda os frontais de altar em guadameci da igreja da Misericórdia de Torres Vedras

 PÁGINA «PATRIMÓNIOS» NO JORNAL "BADALADAS" | 29 JANEIRO 2021


Ainda os frontais de altar em guadameci

da igreja da Misericórdia de Torres Vedras




 

Franklin Pereira, reconhecido investigador desta área particular da História da Arte, apontou alguns erros e imprecisões do nosso artigo, publicado em Novembro passado. Por solicitação nossa, escreveu o texto que ora se publica. É uma colaboração que honra o Badaladas e que agradecemos. | Joaquim Moedas Duarte

 

Publicado na edição de 27 de Novembro do ano anterior, o artigo sobre estes frontais apresenta alguns erros.

Não está documentada qualquer referência ao guadameci em países árabes; apesar da fixação da folha de ouro ou prata sobre couro ser um método milenar – já existia na Egipto faraónico –, não é isso que torna uma peça trabalhada pela técnica do guadameci, pois há outros procedimentos acrescidos, apenas desenvolvidos na Ibéria islâmica. Também a descrição técnica apresentada nesse artigo é relativa ao método ibérico (que não é o dos frontais em causa), cuja existência nos faz recuar ao século XII.

Ora a fama da manufactura – não só de Córdova, mas de outras cidades, como Lisboa e Évora – espalhava-se pela Europa nobre e eclesiástica. A produção lusitana atingia ainda a Itália, o Brasil, Moçambique, Goa, Diu e mesmo o Japão, no século XVI.

A técnica ibérica, elaborada recorrendo a rectângulos de couro de carneiro, criava painéis lisos cobertos com folha de prata, pintura a óleo e texturação e, em particular, a cor dourada dada por um verniz resultado da cozedura de ingredientes vegetais. A texturação por punções de pouco recorte (para não danificar a superfície prateada) chama-se “granido” em Portugal (de acordo com o regimento dos guadamecileiros, no famoso Livro dos Regimentos, de Lisboa, de 1572) ou “picado” em Espanha da mesma época. O termo “lavrado” diz respeito a outra arte do couro, aquela que apresenta desenhos de algum modo vincados na superfície. Na época românica e gótica, o couro era lavrado por incisão; desde o Renascimento, foi a cadeira portuguesa encourada a peça mais saliente (e famosa na Europa nobre), e o couro bovino era lavrado por cinzéis não-cortantes.

Em poucas palavras, os motivos dos guadamecis derivavam inicialmente da arte mudéjar tardia (vulgo “arabescos”), mas sobretudo de desenhos florais (ditos “ao brocado”); o Renascimento impôs motivos “ao grotesco” e, por vezes, a encomenda personalizada incluía pintura devocional (a “imaginária”), heráldica e paisagens. Entre os chamados “ofícios mecânicos”, os guadamecileiros eram uma elite, não só devido ao processo complexo e luxuoso de elaboração, mas por terem como compradores a classe poderosa; a par de ourives e tapeceiros, permaneciam na esfera do poder régio, havendo dados que atestam o cargo de “guadamecileiro do rei” no tempo de D. Manuel e D. João III. As obrigações dos ofícios – os regimentos – eram rígidas, e um mestre estava vinculado ao seu trabalho, com diploma oficializado pela câmara municipal. Podia um mestre ter “tenda”/oficina aberta e receber ajudantes (oficiais), mas ter apenas um aprendiz, geralmente um adolescente.

 Terá sido devido ao comércio via Feitoria da Flandres e à permanência de artífices portugueses em Amesterdão em inícios do século XVII que mestres locais criaram oficinas nos Países Baixos; estas seguiam inicialmente os métodos que deram fama à península.

O ano de 1628 marca uma viragem acentuada: a invenção, em Haia e Amesterdão, de uma prensa e moldes em madeira talhada permitiu dar relevo ao couro (já não carneiro, mas bezerro) e adaptá-lo a novos desenhos do Barroco. A repetição acelerava a produção, e as novas fábricas empregavam dezenas de artífices e consumiam centenas de peles. A famosa “L’Encyclopédie: recueil de planches sur les sciences, les arts libéraux et les arts méchaniques, avec leur explication: Arts du Cuir”, de  Diderot e Alembert, de  1771, tem duas gravuras relativas a este trabalho industrial.  A novidade e atracção destes motivos expandiu-se e, importados pela Península, contribuíram para o drástico declinar da produção.

 

 OS EXEMPLARES DA MISERICÓRDIA DE TORRES VEDRAS

 

É neste contexto centro-europeu que são criados estes guadamecis vistos em Torres Vedras: o desenho é atribuído ao francês Daniel Marot (1661-1752), arquitecto e desenhador de ornamento, ido para os Países Baixos em 1685 para escapar à intolerância religiosa, pois era huguenote. Os seus desenhos foram editados em 1702 e 1712, influenciando as artes decorativas de então, entre as quais a do guadameci industrial. 

Contrariamente a outros guadamecis dos Países Baixos, estes exemplos foram estampados por placa de metal; daí a texturação, que não foi realizada manualmente por punções.

Esta é a época mais repetitiva da prensagem dos guadamecis, com pouca variedade de desenhos. 

Este frontal com catorze rectângulos – um número elevado e único pela quantidade usada – em Torres Vedras data de 1703-1740, e carece, tal como outros, de um estudo dos inventários eclesiásticos: quem comprava, de onde vinham, qual o preço.

Os motivos expostos têm dois padrões. Um deles mostra duas aves afrontadas, com raminho no bico, sob uma estilização vegetalista em leque.

O outro motivo mostra um vaso de flores encimado por uma cúpula com franjas, entre estilizações florais e partes padronizadas. É este motivo que forma os grandes rectângulos, encimados por sanefas ou quadrados, com o mesmo padrão ou o descrito anteriormente, cortados e por vezes colados invertidos.

Padrões semelhantes encontram-se em uso na Igreja de Miragaia (perto da Alfândega do Porto), e na  Igreja do Santuário de Balsamão (Trás-os-Montes). Um frontal semelhante (motivo das aves) encontra-se na capela de Nossa Senhora do Carmo, em Murfacém (Almada). Outros dois frontais (de ambos os motivos) estão no Museu de Alberto Sampaio e vieram de Felgueiras, do Convento de Santa Maria Maior de Pombeiro.

Ainda a nível museológico, um frontal, existente nas reservas do Museu Nacional de Arte Antiga, repete o motivo das aves e poderá ser um dos três que, entre os cinco nas reservas, veio da capela do Forte da Ínsua, em Moledo do Minho – tal facto mostra a expansão do guadameci por todo o país, expansão esta mais saliente na época tardo-medieval e renascentista (período áureo da produção), em particular a sul de Coimbra, zona de maior influência do período islâmico/andalusí.

Outros guadamecis com estes desenhos estão no Museu de Etnografia e História da Póvoa de Varzim, e Museu Nogueira da Silva (Braga). Alguns estofos e biombos mostram semelhantes obras prensadas.

Um aspecto peculiar diz respeito à pintura manual, pois o artífice usou um pincel plano, com alguns pelos cortados: de uma só passagem, pintava várias linhas. O facto é particularmente visível nas pétalas das flores.

Tal como aconteceu com outros rectângulos de guadameci relevado por prensa, a montagem deveria ser feita após a sua importação por Espanha e Portugal, e formavam, finalmente, frontais de altar, estofos e biombos. 

Contudo, a arte estava já à beira da extinção, devido às novas modas e padrões de conforto nos interiores. Nas igrejas, a profusão da talha dourada relegou para segundo plano o guadameci. Tudo isso explica a drástica falta de exemplares que atestem a qualidade e diversidade desta arte, extinta em meados do século XVIII.

Alguns anos atrás, o Museu de Alberto Sampaio realizou um vídeo, onde explico o método ibérico e apresento uma série de obras em guadameci, incluso os dois desenhos semelhantes aos de Torres Vedras; o vídeo é de acesso livre e pode ser visionado em:

https://www.youtube.com/watch?v=413sMIxE5pQ

 

Franklin Pereira – guadamecileiro e investigador do ARTIS-Instituto de História da Arte / Faculdade de Letras / Universidade de Lisboa

 








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