Publicado no jornal BADALADAS (Torres Vedras), em 25 de Junho de 2021
A Dinâmica das Ruínas
Ezequiel Duarte (Texto e fotos)
Algures um círculo
de pedras num disfarce de ruínas. A memória popular apanha a forma e
transforma-a em imaginários que viajam sem qualquer mácula ao passado. Abrir
esta fronteira é uma maneira de dizer que o tempo enviará resposta e, paciente,
soletrará na ruína a sua figuração como intérprete da mudança.
As histórias
avolumam-se, cruzam-se enredos e a ruína é agora límpida, pronta a ser
respeitada por quem escuta as palavras dos moinhos.
Estágio após
estágio conhece-se o processo da ruína, o paradoxo do dinamismo da ruína. Na
nossa viagem, num instante, a alvura de um moinho num contraste de verde ou de
terra lavrada. Surpreendidos, percebemos que ainda há moinhos em movimento.
Seguem-se outros
usos, servem de pombais, de habitações, locais de merendas, vazadouros de
lixos, têm vértices geodésicos acoplados, outros têm como vizinhos antenas de
comunicações ou aerogeradores. Há aqueles que servem de suporte a torres de
vigia, ou aqueles que ficam apenas com o seu processo de ruína e de resistência
sem evocar qualquer uso. Alguns ainda conservam o mastro, por vezes também a
entrosga, como se esta fosse um metrónomo a preparar a queda das mós.
No meio de um
campo de cultivo surgem os seus vestígios, nalguns dos casos, amontoados, já
sem nexo construtivo. Marcam, contudo, um espaço diferenciado. Por respeito, os
arados contornam os moinhos e continuam a lavra e deixam naturalmente uma
serventia. Depois da seara crescida, transformam-se em monumentos, faltando-lhes,
em remota paragem, a “iluminação” suficiente para ascenderem à condição de um
acontecimento na paisagem.
É discurso
recorrente apelar à desgraça dos moinhos de vento, o quanto estão ao abandono,
sem ninguém que olhe por eles. Contudo é também o respeito por estas ruínas e
pela sua evolução que dá à questão do moinho de vento do Oeste o efeito de
monumentalidade, sustentado, não no seu valor individual, mas nos inúmeros
moinhos dispersos por este território representantes de vários estados de conservação:
“Aquele ainda tem
o frechal de pedra em bom estado. Neste as mós estão sustentadas pelos sobrados
onde permanecem o corvo e o tegão. Na colina em frente, encontra-se outro
moinho, ainda com o capelo, o mastro, a entrosga e com a engrenagem a acompanhar
a ruína da estrutura.”
Para as populações
o moinho é uma das principais referências do local. Por isso, um simples
círculo de pedras onde apenas são perceptíveis a forma e a soleira da porta do
moinho têm, mesmo assim, um vínculo patrimonial.
Basta ver o quanto
é importante o valor das ruínas, mesmo que escondidas na vegetação, mantém-se
vivas as recordações quando a transmissão oral e a imaginação assim o
determinam.
Antes de mais são
memoriais únicos ao trabalho, a uma função económica. São profundos símbolos do
labor humano, da actividade de moagem e da labuta pelo pão.
Um círculo de
pedras, quase imperceptível, traz histórias que transcendem o moinho e chegam às
épocas remotas desse “tempo dos mouros” através de ditos herdados.
Quase todas as
aldeias da região têm a referência de pelo menos um moinho que servia as
populações, referência que se cruza com as histórias das gentes e dos lugares.
Os moinhos têm o
seu ciclo de vida, também tomam novas funções, integram-se noutros contextos e pronunciam
outros usos. Apesar das ruínas, mantêm-se incólumes ao alimentarem imaginários
que saltam de aldeia em aldeia.
O
moinho de vento no alto das colinas da Região Oeste é função e símbolo em
simultâneo. O moinho ali está evocando o dinamismo da paisagem, desde a alvura
das velas até ao mais elementar estado de ruína.
É
neste contexto que os moinhos representam também o sentido de projecto que oscila
entre o sucesso e a ruína. Os moinhos podem gerar uma grande intensidade de
ideias, para que resultem algumas iniciativas com sucesso, sabendo que a ruína
é intrínseca ao empreendimento.
Para
inovar é necessário correr riscos e para isso há que conhecer e divulgar também
o insucesso, aprender a contemplá-lo como se fizesse parte da nossa invenção
diária e fosse a razão para celebrar as nossas melhores conquistas.
Saber
lidar com o insucesso, com a convicção que para inovar é preciso agarrar novas
ideias e transformá-las em projectos, alguns, necessariamente, poderão não
resultar, mas têm um alto valor enquanto instrumentos de aprendizagem.
VALORIZAÇÃO
DOS MOINHOS DE VENTO
A
leitura do moinho em ruínas não pode ser vista como um caso permanente de
insucesso, de projecto falhado, pelo contrário, o moinho de vento teve outros
tempos onde desempenhou um papel fulcral na história da humanidade e na
atualidade há que redobrar o esforço na sua valorização e conservação e de
perspetivar o seu futuro enquanto referencial para a consolidação do Oeste como
região.
Note-se
que sempre houve moinhos de vento em ruínas no território do Oeste. Conhece-se casos
de moinhos que se ficaram pela construção da torre em alvenaria e que por
alguma razão nunca avançaram para a construção dos elementos em madeira, outros
há, em que após a construção, constatou-se que os ventos no local não tinham a
intensidade e a regularidade para viabilizar a moagem, noutros sucedeu a quebra
na transmissão geracional da arte…
Na
atualidade, os saberes associados à construção dos moinhos e à sua laboração
não desapareceram apesar do reduzido número de entusiastas que ainda se prestam,
enquanto profissionais ou como voluntários, a recuperar moinhos e mesmo a
colocá-los a funcionar para a sua função original, a farinação.
Importa
referir que a maior parte das recuperações dos moinhos da Região Oeste têm sido
feitas para a função habitacional, mas não deixam de ocorrer iniciativas
municipais e de particulares de recuperação de moinhos de vento para a sua
função original ainda que longe do desejável.
Valendo-me
de documento elaborado por Fátima Nunes (dinamizadora de projeto de valorização
dos moinhos de vento na Moita dos Ferreiros assente na atividade moageira e na
sensibilização das populações para os saberes ligados ao moinho), poder-se-á
estruturar uma política de valorização dos moinhos de vento nos seguintes
eixos: Um, nos aspetos institucionais e normativos facilitadores da atividade
tradicional de moagem e da proteção dos moinhos e dos seus engenhos,
assegurando o direito ao vento; dois, na educação e formação em molinologia nas
mais diversas vertentes, com relevo na habilitação para a construção e
laboração dos moinhos; três, na integração dos moinhos em rotas de caminhos
pedestres e em projetos de turismo cultural e da natureza; quatro, na
viabilidade da atividade de moagem tradicional com base em cereais nacionais e
com a diferenciação do produto em pequenas escalas de produção.
Que se
comece pelas raízes e que se compreendam os projetos de reforço da identidade
regional, no caso, através da valorização dos moinhos, mas também da
continuidade do pontilhado das ruínas a marcar a paisagem e que deles extravase
toda a carga simbólica capaz de impulsionar o desenvolvimento local como um projeto
aglutinador das suas gentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário