UM MUSEU DE COMUNIDADE
Memórias do Ti’Alex na
Associação Recreativa e Cultural da
Praia
da Assenta
Joaquim Moedas Duarte
(Publicado na página PATRIMÓNIOS, semanário BADALADAS, Torres Vedras, 27 Agosto 2021)
Tenho nas mãos o Diploma que
atesta que Alexandre Afonso completou, em 5h. 41m. e 18s, a 1ª Maratona de
Torres Vedras, no dia 12 de Outubro de 1980. Espanto-me com a marca: é mais do
dobro que um atleta mediano demora a percorrer os 42,195 km da Maratona. A
explicação está numa nota manuscrita, no reverso do Diploma: «O atleta mais
idoso que percorreu a Maratona no nosso país. Alexandre Afonso um jovem
recordista português aos 68 anos. Mais do que um Diploma, o presente
certificado é um hino de louvor à eterna juventude de espírito». Assina, pela
Organização, António Fortunato – torriense que é hoje, quarenta e um anos
depois, o atleta veterano mais medalhado de Portugal.
Ti’ Alex em plena corrida, anos 80 (Espólio do Ti’Alex)
Este Diploma é um dos muitos
documentos que fazem parte do espólio doado por Alexandre Afonso – que todos
conheciam por Ti‘Alex – à Associação Recreativa e Cultural da Praia da Assenta,
povoação da freguesia de S. Pedro da Cadeira. Acto de doação que foi uma forma
de reconhecimento pela comunidade que o acolheu no crepúsculo da sua vida e
onde, pela primeira vez, já com 65 anos, participou numa corrida de atletismo
entre Cambelas e Assenta. Do espólio fazem parte vários dossiês que Ti’Alex foi
organizando ao longo da vida para guardar os programas das provas, as fotos e
os recortes de jornais que lhe faziam referência. E também dezenas de medalhas,
troféus, placas distintivas, recordações. Imagens do legítimo orgulho de um
homem que pintou a vida com as cores da alegria e da convivialidade, até ao dia
21 de Junho de 1989, quando a morte o levou à derradeira meta.
Durante algumas horas compulsei
este espólio magnífico, levado pela curiosidade e pelo fascínio. É que eu ainda
me lembrava de ter visto o Ti’Alex numa das Maratonas de Torres Vedras, meados
dos anos 80, no seu passo cadenciado, ar prazenteiro, já muito atrasado – era
quase sempre o último a chegar –feliz por competir e nunca desistir, de tal
modo que os organizadores das provas não permitiam que se fechassem as
classificações finais sem que ele chegasse. “Ninguém se vai embora, falta
chegar o Ti’Alex!”. E ele chegava, num cansaço controlado que lhe permitia
ainda fazer o seu número final: puxava de uma pequena “gaita de beiços” que
trazia no bolso e tocava duas ou três modinhas populares, por entre risos e
festejos de quem se encantava com este campeão da vida.
Os dossiês que referi acima não
dizem respeito apenas ao atletismo – até porque este chegou tardiamente à vida
de Alexandre Afonso – eles documentam a outra faceta notabilíssima deste homem,
a de músico. E a culpa foi do pai que lhe ofereceu, como prémio do exame da 4ª
classe, uma pequena harmónica bocal que o rapazito logo aprendeu a tocar com
grande perícia.
A ORQUESTRA ALDRABÓFONA
Em meados dos anos 30, em Lisboa,
cerca de vinte rapazes divertidos, um tanto extravagantes e executantes
musicais de instrumentos diversos, constituiu-se como agrupamento musical com o
nome de Orquestra Aldrabófona. Iam
para o palco e durante hora e meia, divertiam-se e divertiam o público com
peças musicais, piadas, anedotas, gagues e o mais que a inventiva criava em
cada momento. Durante esses anos e até meados dos anos 40 tiveram sucessos
estrondosos, actuando em Lisboa e por todo o país. Não aceitavam honorários,
divertiam-se e contribuíam, não raro, para festas de beneficência.
Alexandre Afonso fez parte deste
grupo, com a sua harmónica bocal. Destacava-se pelo virtuosismo da execução e
pela boa disposição permanente. Mais tarde, quando a orquestra se dissolveu,
associou-se com outro aldrabófono – Fernando Pires dos Santos –, também
“gaitista” de mérito, e constituíram o grupo Manos Alexandres. A fraternidade não era de sangue mas de
cumplicidade no gosto pela música. Durante vinte e cinco anos actuaram em
centenas de espectáculos, desde os mais singelos nas colectividades lisboetas
até aos Serões para Trabalhadores, da Emissora Nacional. E não ficaram por
aqui: lançaram-se numa carreira internacional e chegaram a ganhar um Campeonato
do Mundo de Harmónicas Bocais, na Suiça. O grupo terminou em apoteose numa
Festa de Homenagem no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, corria o ano de 1960.
MUSEUS DE COMUNIDADE
Também a nós, Associação do
Património, chega esta preocupação, que não se restringe ao que se passa na
Assenta mas em outros locais do nosso concelho, onde o amor pela salvaguarda de
testemunhos do passado levou à criação de pequenos “museus de comunidade”. Eles
subsistem enquanto os seus criadores estão vivos mas correm risco de se
perderem quando desaparecerem aqueles.
Não é fenómeno exclusivo de Torres
Vedras. Por todo o país, desde há muitos anos, têm surgido estes pequenos
museus que funcionam como lugares de memória onde as populações locais se revêm
e encontram laços de identificação comunitária. Não por acaso a Universidade de
Aveiro publicou em 2019 um livro intitulado “Museus de Comunidade: Manual de
Apoio à Gestão”, de Luís Mota Figueira e Dina Ramos, dois investigadores que
têm estudado este assunto. É uma reflexão teórica e um manancial de indicações
práticas que procura responder às preocupações dos guardadores de memórias.
Sendo certo que nas sedes de
muitos concelhos já existem Museus Municipais – como o nosso Museu Leonel
Trindade – parece-me que o seu papel não se deve limitar às existências
próprias mas pode alargar-se a outras expressões museológicas do espaço
concelhio, integrando os museus de comunidade num projecto de rede museológica
que contribua para o enriquecimento cultural das comunidades locais e garanta a
preservação dos espólios existentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário