Barros e Cunha: publicista e político
Álvaro Costa de Matos*
Recordamos que a figura do
ilustre torriense Barros e Cunha foi tema de uma tertúlia na Garrafeira
Venceslau (Mercado Municipal), no passado dia 2 de Março. O seu autor aceitou o
nosso convite para resumir a sua palestra para a página PATRIMÓNIOS, o que
agradecemos.| JMD
Aquando da morte de João Gualberto de Barros e Cunha, a 10 de Janeiro de 1882, os jornais, mesmo aqueles que o combateram politicamente, traçaram um retrato consensual acerca da sua vida e obra. O Diário Ilustrado, órgão do Partido Regenerador Liberal, caracteriza Barros e Cunha “como homem de acção”, um self-made man que “chegou à mais alta posição social, tendo apenas a acompanhá-lo nesse longo trajecto uma vontade tenaz e uma audácia sem igual.” A revista O Ocidente fala dum “estadista”, que “foi incontestavelmente um homem de trabalho e de estudo”, um progressista cujo nome foi dos “que mais excitaram as paixões políticas do nosso país”. Vejamos como este retrato jornalístico se encaixa com o seu percurso histórico.
Vida & Obra
Barros e Cunha nasceu a 10 de Outubro de 1826, em Runa, no concelho de Torres Vedras. Era filho de Maria Rita de Barros e Cunha e de António Luís Pereira da Cunha (tenente-coronel do exército). Começou por tentar uma carreira literária como poeta, mas falhou. Escreveu regularmente artigos de opinião na imprensa, teve uma importante carreira política, sobretudo parlamentar, e publicou vários livros: Hoje (1868), História da Liberdade em Portugal (1869), A dívida de Mr. Lowe (1870), Os factos (1870), Da Fazenda Pública (1871), Real d’Água. Discurso proferido na câmara electiva (1872), Pântanos e irrigação. Relatório e projecto de lei apresentado à câmara dos senhores deputados (1876) e Lourenço Marques (1881).
Publicista
Barros e Cunha foi articulista em vários jornais e revistas, sendo de destacar a sua colaboração literária n’A Revolução de Setembro, um dos principais jornais do liberalismo monárquico, na Gazeta do Povo, com escritos políticos, e n’A Semana de Lisboa, com poesia. Participou em algumas polémicas nacionais, “onde se manifestou contra o iberismo, apreciou a evolução da política internacional, discutiu a introdução do sistema de representação de minorias no parlamento inglês e condenou veementemente a Saldanhada de 1870”[1], golpe militar que levou à demissão do governo de Loulé. Barros e Cunha não fez da escrita em periódicos o seu modo de vida, profissão e, consequentemente, principal fonte de rendimento. Foi essencialmente um publicista, usando a imprensa como uma tribuna para divulgar as suas ideias políticas e uma rampa de lançamento para uma auspiciosa carreira política.
Político
Seguindo
as pisadas do pai, Barros e Cunha alistou-se voluntariamente e combateu nas
fileiras das tropas populares durante a guerra civil da Patuleia (1846). A
partir daqui passou a desempenhar várias funções: foi secretário do duque de Loulé, vogal do Conselho Geral do Comércio,
Agricultura e Manufacturas (1865) e ministro das Obras Públicas no governo do marquês de Ávila
(5/III/1877 a 29/I/1878). Como ministro, assumiu-se como o braço direito de Ávila, sendo-lhe confiada
a condução geral da política do governo.
Segundo carta da altura de Emídio Navarro a José Luciano de Castro, Barros e
Cunha “estava ministro de todas as
pastas”! E na leitura de Pinheiro Chagas, era o representante do
“partido progressista” no ministério[2], que
ficou conhecido como “mientras vuelve”, já que em Espanha se noticiou que este
governo se manteria em funções até que regressasse Fontes Pereira de Melo – o
que aconteceu com a queda de Ávila no final de Janeiro de 1878.
Barros e Cunha começou por filiar-se no Partido Histórico, que reunia os liberais
progressistas de “esquerda” e absorveu os setembristas, liderado por Loulé. Em
1876 afastou-se deste partido e aproximou-se do Partido Reformista, que congregava os liberais moderados. Alinhou,
depois, com o grupo político de Ávila,
que juntava os liberais conservadores (cartistas), o que acabou por o levar ao
governo. Em suma: Barros e Cunha evoluiu do setembrismo (liberalismo progressista)
para o cartismo (liberalismo
conservador). Ordem acima da desordem e
da transformação social radical.
Sem surpresa, vai envolver-se em várias controvérsias
com os seus adversários políticos: o conflito
com Espanha relacionado com uma questão de pescarias no Algarve, o
inquérito às obras da Penitenciária de
Lisboa, que deu origem a uma viva polémica na imprensa, nas Cortes e
acabou por causar a queda do governo (29/I/1878), ou o Tratado de Lourenço Marques: apesar de anglófilo, Barros e Cunha
foi um dos seus mais vibrantes opositores, tendo até sido orador num comício
republicano (8/III/1881).
Se, como
ministro, teve uma experiência efémera, como deputado teve uma prática longa e prolífica:
foi eleito deputado pelo círculo de Torres Vedras
em 1864, pelo de Vila Franca de Xira em 1870, pelo de Silves em 1871 e 1874, pelo
Partido Histórico, pelo de Lisboa em 1878, pelos “avilistas”, e pelo círculo do
Cadaval e Lisboa em 1879, pelo Partido Progressista, então no poder. Era um
orador prolixo e exuberante, um parlamentar temível e polémico, como o atesta o
obituário d’O Ocidente (11/II/1882): “Eleito
deputado, enfileirou-se nas hostes progressistas,
e foi um dos campeões mais enérgicos desse partido. A sua voz, vibrante e
cortante, a sua grande verbosidade, davam-lhe, nas lutas do parlamento, uma vantagem sobre muitos dos seus
adversários, com quem travou frequentemente duelos mortais, porque a sua palavra, incisiva e violenta, acendia
muitas vezes a paixão política nos
mais plácidos debates.” Pertenceu a várias
comissões, trabalhando com afinco na Comissão de Verificação de Poderes para o Parlamento, e proferiu extensos discursos sobre as mais
diversas matérias: abolição de todos os privilégios de isenção de impostos
concedidos aos bancos, de modo a criar condições de igualdade entre os vários
agentes económicos e obstar à desordem social (1871); rejeição do projecto de
reforma da Carta Constitucional apresentado pelos reformistas (1871); discurso contra
o real de água, pois os impostos injustos eram outra das origens dos protestos
sociais (1872); defesa da colonização interna do Continente face à viragem para
África (1881); e homenagem em memória do duque de Ávila (1881).
Estes discursos mostram que Barros e Cunha tinha um conhecimento profundo dos problemas
domésticos e que estava a par do pensamento político, social e económico, não
só nacional como internacional, com citações de Dudley Baxter, Proudhon,
Frederic de Bastiat, Robert Peel, Thiers e doutros.
Em jeito de conclusão, importa reter cinco ideias que julgo
definirem o perfil político-ideológico de Barros Cunha: (1) um self-made man, que se elevou socialmente
pelos seus próprios méritos; (2) um homem de acção, de trabalho, mais do que de
doutrinação, embora actualizado na teoria; (3) um polemista temível, quer no parlamento quer nos meetings
públicos, respeitado até pelos
seus “inimigos políticos”; (4) um adepto da liberdade económica para combater a
desigualdade social; (5) uma figura
incontornável do parlamentarismo português nas décadas de 1860-70.
* Historiador.
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