O Órgão
Histórico da Igreja da Misericórdia Celebra 250 Anos
(Primeira parte)
Daniel Oliveira
Organista titular, professor de Órgão no Conservatório Nacional de Lisboa
e no Conservatório de Música de Torres Vedras.
Um Testemunho Vivo do Património Musical e Histórico
Torreense
Os instrumentos musicais históricos despertam muitas vezes
fascínio e curiosidade e, sendo documentos vivos da sua época, conseguem por
vezes levar-nos por autênticas viagens pelas práticas musicais, culturais e
artísticas dessa mesma época e região.
O órgão de tubos da igreja da Misericórdia em Torres Vedras
é mais um fascinante exemplo de um instrumento do passado, que testemunha as
técnicas de construção desse tipo de instrumentos em Portugal, em particular na
região Oeste.
Este instrumento foi construído por Bento Fontanes em 1773,
celebrando, portanto, este ano, 250 anos de existência. Este construtor, em
linguagem organística designado por organeiro, pertencia a uma família de
organeiros oriundos da Galiza (Espanha) e que se fixaram em Portugal deixando
um significativo número de instrumentos no nosso país, atravessando várias
épocas e filosofias de construção. De referir que a família Fontanes trabalhou
em Portugal durante os séculos XVIII e XIX. Em 1765, João Fontanes de Maqueira,
pai de Bento Fontanes, constrói o grande órgão de São Vicente de Fora, em
Lisboa, um dos maiores exemplares da organaria ibérica.
Bento Fontanes fixou-se em Lisboa em meados do século XVIII,
onde tinha o seu atelier em Santa Engrácia e aí desenvolveu todo o seu
trabalho. A região Oeste conta com três exemplares adicionais deste organeiro
que, para além do Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia, construiu o órgão
da Igreja de Santa Maria em Óbidos e o instrumento que se encontra na Igreja da
Encarnação, pertencente ao concelho de Mafra.
O tipo de construção destes instrumentos era bastante
sofisticado, seleto e pormenorizado, denotando um profundo estudo dos espaços e
uma preocupação com a adequação acústica e estética aos locais onde estariam
inseridos.
Centrando-nos novamente no Órgão Histórico da Igreja da
Misericórdia, este foi alvo de um restauro bastante criterioso em 2008, pelo
mestre organeiro Dinarte Machado, respeitando toda a sua origem, desde a conservação
e manutenção dos materiais até à afinação e pressão do ar que o instrumento
possuía na altura.
Sendo que cada órgão tem uma personalidade própria, não
havendo seguramente dois instrumentos iguais, neste caso estamos perante um
instrumento com caraterísticas ibéricas, mas onde vemos claramente uma forma de
construção bastante influenciada pela escola italiana setecentista. É típico
dos instrumentos italianos terem os tubos da frente organizados em forma de
triângulo, aspeto visual que encontramos também claramente no órgão da Igreja
da Misericórdia.
Pormenor do Órgão Histórico da Igreja da Misericórdia onde vemos a montra dos tubos em forma de triângulo, típica da construção italiana no século XVIII
Durante os séculos XVIII e XIX, os instrumentos em Portugal,
Espanha e Itália tinham um aspecto em comum: a existência de apenas um teclado.
Dentro desta caraterística típica, havia um sistema que
permitia que, no mesmo teclado, fosse possível coexistirem duas sonoridades bem
distintas. Ou seja, a parte mais grave (mão esquerda) poderia ter o som de
flautas e, por sua vez, as partes média e aguda do teclado (mão direita)
poderiam ter um som completamente diferente como uma corneta, havendo assim a
possibilidade de criar obras musicais com vários contrastes sonoros e tudo isto
apenas com um teclado. Portugueses, Espanhóis e Italianos já aqui
“economizavam”, e este instrumento torreense é um testemunho claro dessa
filosofia de construção e, consequentemente, do repertório que por cá seria
executado.
Teclado único e registos laterais
O uso do instrumento na liturgia
Sabemos, através de alguns documentos pertencentes à Santa
Casa da Misericórdia de Torres Vedras que, em pleno século XVIII, o instrumento
servia particularmente os serviços
litúrgicos e que, nas maiores solenidades litúrgicas havia lugar à contratação
de músicos da Capela Patriarcal de Lisboa (grupo de músicos profissionais que
estava ao serviço da Patriarcal). Sabemos aínda que, este serviço foi extinto
aquando de uma crise financeira do hospital da Misericórdia (que funcionava na
atual sede da Santa Casa da Misericórdia), sendo que o orçamento destinado para
a contratação de músicos acabou por ter de ser utilizado para a compra de camas
e outros bens de primeira necessidade para o hospital. Desde então, o
instrumento não foi mais utilizado, acabando por se degradar até ao seu
restauro em 2008.
Hoje em dia, este instrumento está inteiramente integrado nas liturgias da igreja da Misericórdia, cumprindo a sua função na perfeição.
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