09 agosto 2023

IGREJA DE S. MIGUEL DE TORRES VEDRAS | Jornal BADALADAS 31 MARÇO 2023

 

Igreja Matriz de S. Miguel de Torres Vedras 

Em busca da memória perdida

 

Manuela Catarino

 

“Longe da vista, longe do coração” reza a sabedoria popular a propósito de alguém, ou de algo, que se fasta da nossa convivência e se vai esvaindo inexoravelmente em direcção ao esquecimento. Aos contornos nítidos da sua presença vão sucedendo sombras, mais ou menos fugazes e, por fim, um total olvido que quase surpreende que houvera existido.

A evolução do tempo, práticas humanas, sensibilidades culturais e outros factores têm sido os agentes das alterações que na paisagem urbana foram acontecendo ao longo dos séculos e, com maior ou menor mudanças, chegaram até ao tempo presente.  Sinais de evolução, de transformações ávidas de futuro.  No entanto, aqui e ali descortinam-se algumas marcas antigas, indícios de outras vivências, relembrando as comunidades antecessoras que escolheram o mesmo espaço para se fixarem, viverem e nele baixarem à derradeira morada.

Caminhe-se no vagar de uma qualquer tarde de sol primaveril pela cidade de Torres Vedras. Do parque da várzea, a norte, no morro sobranceiro, os olhos avistam a vetusta silhueta da Igreja matriz de Santa Maria do Castelo, aconchegada ao que resta de um outrora proeminente paço dos alcaides. Adentrando-nos no casario, no coração antigo da urbe, vamos encontrar a Igreja matriz de Santiago, hoje sem funções religiosas, ostentando, porém, um património digno de cuidada visita.

Pelas ruas do centro histórico, as marcas da toponímia prendem-nos a atenção. São acenos de estórias e de História comum. Os passos irão dar à Igreja matriz de S. Pedro, plena de ricos elementos patrimoniais que justificam longa paragem e um olhar pormenorizadamente apreciativo. A tarde ainda convida a que a caminhada continue. À sombra da colina do castelo busquemos as águas do Sizandro. Os documentos antigos dão conta da existência, nos tempos idos, de quatro igrejas matrizes em Torres Vedras. Já notámos três, falta-nos uma quarta…a de S. Miguel.

Quando nos acercamos da margem esquerda do rio Sizandro, desembrulhamos um mapa de 1882. Nele, o arquitecto sinalizou o que, ao tempo, ainda restava da Igreja de S. Miguel. Também a antiga ponte, do mesmo nome, que dava acesso á circulação de homens e bens em direção aos lados do mar.  A ponte moderna, ampliada, não se situa no sitio da anterior e o próprio rio sofreu alterações para que as catástrofes das cheias não voltassem a sobressaltar os torrienses. Todavia, olhando em redor, não encontramos qualquer menção à antiga matriz, nem um ínfimo sinal. No espaço que ocupou, estão automóveis estacionados. Sinais dos tempos hodiernos.

 

MEMÓRIAS ESCRITAS

Será apenas nas memórias escritas que a Igreja matriz de S. Miguel de Torres Vedras ainda se perpetua. Por elas lhe percebemos a antiguidade, remontando ao século XIII, contemporânea das outras três paroquiais da antiga vila. Entendemos a sua localização, próxima do rio, fonte de problemas incessantes pela devastação que as cheias produziam, tendo os poderes religiosos equacionado a transferência para lugar mais seguro, o que nunca se efectivou. Compreendemos a sua organização de igreja paroquial e da Colegiada que lhe era inerente, com o colégio constituído pelo seu prior, raçoeiros e outros clérigos necessários à organização interna que asseguravam o seu funcionamento.

Pelos testemunhos escritos perpassam igualmente notas de incúria que os olhos dos paroquianos detectaram, a que nem as admoestações dos visitadores eclesiásticos sempre garantiram atempadas reparações. São da primeira metade do século XVI essas notícias onde respigamos a menção a problemas no edificado:  a chuva entrava na igreja já que o madeiramento do tecto estava podre e com goteiras; o campanário, destelhado, sujeito a infiltrações faziam perigar as porcas dos sinos; também falta de objectos de culto: inexistência de paramentos e de cortinas de altares adequados aos ofícios religiosos, cálices em mau estado assim como a penúria de cera;  e inexistência de livros para as devidas anotações da comunidade religiosa. Queixas que se foram repetindo sem remédio, a que acrescia a ausência dos beneficiados a quem cumpria a cura das almas dos fregueses e que a desleixavam de forma reiterada.

A Igreja teve cinco altares: o altar-mor, dedicado ao orago Arcanjo S. Miguel, celebrado a vinte e nove de Setembro. Dois dedicados ao Menino Jesus e a Santo Anastácio, do lado do Evangelho. Do lado da Epístola, outros dois, sendo um para o evangelista S. Marcos e o restante para S. Bento. Com o terramoto de 1755, viria a sofrer danos consideráveis, à semelhança das congéneres torrienses, tendo caído o tecto em abóbada, o campanário com os sinos e sofrido estragos o coro da Igreja.

Perante a necessidade de obras de reconstrução, a Colegiada teve de arcar com as despesas. Nessa sequência, foram feitas algumas modificações ainda visíveis no século XIX: o corpo da igreja, de uma só nave, passou a ser coberto por um tecto de madeira, todo pintado, com as armas reais no meio; o coro passou a situar-se no piso inferior, na capela-mor; quanto à torre sineira, na parte norte da Igreja, só seria refeita em 1822.

A Igreja Matriz de S. Miguel parecia ganhar nova vida. São as fontes escritas que, mais uma vez, nos dão a conhecer essa realidade: a igreja, com a porta principal virada a poente, tinha de fundo 150 palmos, de largo 36, e a capela mor, 26 de largo. Os arcos e mesas dos altares eram de “variados marmores”, havendo na Sacristia uma mesa igualmente de mármore destinada aos cálices. Continuavam a existir cinco altares, mantendo o altar-mor a dedicação a S. Miguel, cuja imagem estava “do lado do Evangelho em sua peanha na parede, e do lado da Epístola a de S. Bernardo”, nas paredes do coro “seis painéis dos Passos do Senhor em madeira “. Do lado do Evangelho, o segundo altar, “dedicado ao Menino Jesus, e Privilegiado, é a Capella do SS. Sacramento”. Seguia-se, nesse lado, o terceiro altar, de S. Bento com a respectiva imagem. Do lado da Epístola, o quarto altar, de Nossa Senhora dos Remédios enquanto que o quinto era de Jesus Cristo crucificado.

Não foi tão duradoura a existência da reconstruída matriz de S. Miguel. Logo em 1859, por decreto de 4 de Novembro, do cardeal patriarca D. Manuel Bento Rodrigues se extinguia a sua freguesia, sendo anexada à de Santa Maria do Castelo. Sucederam as inundações do Sizandro e os consecutivos estragos do imóvel. O abandono tornou-se inevitável. Em 1877, pela Lei de 9 de Abril, era concedido à Camara Municipal de Torres Vedras o edifício em ruínas da “antiga igreja de S. Miguel da mesma vila, a fim de ser demolido, e empregados nas obras da ponte de S. Miguel e outras obras municipaes indispensáveis os materiaes que poderem ser aproveitados.”

O sol da tarde vai declinando nos outeiros e surgem as primeiras sombras. O Sizandro a nossos pés alonga-se entre as reestruturadas margens. O trânsito de pessoas e viaturas intensifica-se na área envolvente. Repegamos no mapa de 1882.  Fixamos o olhar nas linhas desenhadas e nos sinais convencionais. Por instantes, a memória da antiga matriz de S. Miguel identifica-se no espaço físico a que pertenceu. Voltará a pertencer-lhe algum dia?


Pormenor de mapa da Vila de Torres Vedras, 1882- assinalada a lo


Localização da igreja de S. Miguel de Torres Vedras (AMTVD, Obras Municipais: Melhoramentos no rio Sizandro perto de Torres Vedras, 1882-1938, Cx.62, nº720)


 Leituras de base

Pereira, Isaías da Rosa – “Visitações da Igreja de S. Miguel de Torres Vedras (1462-1524)”, Separata de Lusitania Sacra, 2ª série (7), 1995.

Rodrigues, Ana Maria Seabra de Almeida - Torres Vedras. A Vila e o Termo nos finais da Idade Média, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica,1995.

Torres, Manuel Agostinho Madeira - Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, reprodução do fac-simile da 2ª edição de 1862, Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras, 1988.

Vieira, Júlio - Torres Vedras Antiga e Moderna, 2ª edição, LIVRODODIA Editores, 2011.


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