SOBRE SÃO GONÇALO
SOBRE NÓS COM ELE
Estas
linhas resumem o que disse na apresentação do belo livro de José Pedro Sobreiro
(ilustração) e Luís Filipe Rodrigues (texto), São Gonçalo de Lagos a Torres Vedras, no
passado dia 21 de outubro.
Em tempo de comemorações gonçalinas, foi
um excelente contributo para a divulgação duma figura que bem merece ser
recordada, do passado para o futuro.
Da época em que viveu entre nós, até 1422
ou mesmo 1445, o que nos resta em Torres Vedras? Antes de mais nós mesmos, os
que ainda descendemos de quem cá vivia então, ou dos muitos que chegaram
depois. Ouvimos histórias familiares ou mais largas, ganhámos hábitos locais,
reconhecemo-nos em monumentos e sítios.
Dessa altura, “falam-nos” as igrejas –
ainda que todas restauradas depois - as muralhas do castelo, o Chafariz dos
Canos, alguma nomenclatura… Referências paroquiais, militares e civis do que
era a vida de então.
Será bom conhecer a terra a partir daqui,
do que resta do que foi. Ir a cada uma das igrejas e perceber que era nelas e
ao seu redor que a vida social começava e terminava, do batistério à sepultura.
Não esquecer a ida à igreja de Nossa Senhora do Amial, ao Choupal, onde
provavelmente se reuniam os cristãos no período árabe e em que no tempo de São
Gonçalo persistia o culto.
Na antiga Rua dos Mercadores, passar onde
era o seu desaparecido convento. Subir depois ao castelo e alargar a vista,
como ele o fez certamente. Descer ao Chafariz dos Canos e admirar, como ele
também admiraria, uma obra civil que juntava beleza e utilidade.
Depois, com tempo e atenção, visitar a
antiga portaria do convento novo, na igreja da Graça, onde magníficos painéis
de azulejos nos “falam” da vida e dos milagres de São Gonçalo. Admire-se o
excelente desenho, mas leiam-se com atenção as legendas, para compreender bem a
figuração. Obra de setecentos, apresenta o que a tradição gonçalina foi
somando, do século XV em diante, de episódios e milagres, como é próprio das
memórias vivas.
Tradição que nos apresenta São Gonçalo
como homem de Culto, Caridade e Cultura. De Culto, “em espírito e verdade”,
como o jovem Gonçalo o encontrou e celebrou entre os Eremitas de Santo
Agostinho – em Lisboa, São Lourenço dos Francos, Santarém e Torres Vedras. De
Caridade, partilhando o muito que sabia com os trabalhadores que voltavam do
campo e com as crianças que brincavam nas praças; e o pouco de que dispunha,
com quem o procurasse ou ele mesmo buscasse. E de Cultura, pois cultivava a
palavra e copiava livros de coro, para que o louvor divino se entoasse com
verdade e beleza. Uma pintura quinhentista ou de pouco depois retrata-nos S.
Gonçalo orlado com notas musicais, aludindo a este seu ofício.
Assim ficou Gonçalo na memória do povo.
Sepultado no chão do convento, logo começou a romagem dos que pediam a sua
ajuda celestial. Tocavam a terra onde jazera, mesmo quando os seus confrades
lhe puseram os ossos num cofre mais resguardado. A terra foi depois conservada
num sepulcro de pedra.
Sumariemos as trasladações: A primeira essa
mesma, em 1492, no convento velho, quando as ossadas foram guardadas num cofre;
em 1518 fez-se o referido sepulcro de pedra, com a sua imagem, guardando terra
do primeiro sepultamento, que se podia tocar por uma abertura.
É neste sepulcro que encontraremos a mais
sólida comprovação da memória certa que logo deixou. Se faleceu em meados do
século XV, não passou muito tempo para lhe reconhecerem a santidade, assim
gravada em pedra: «Esta sepultura é do bem-aventurado frei gº de lagos feita no
mês de Janº de 1518». Entretanto, já em 1495 a Câmara de Torres Vedras o tomara
por como padroeiro da vila e termo.
Em 1559 começou a demolição do convento
velho, repetidamente alagado pelas cheias. O cofre com os ossos veio para a
gafaria de Santo André, para onde os frades se transferiram e onde começou a
construção do convento novo. Depois veio também o sepulcro de pedra.
Em 1580 já se puderam colocar o cofre das ossadas
e o sepulcro de pedra na nova igreja da Graça, num nicho mandado fazer pela
Câmara, ao lado do altar do Crucifixo. Uma inscrição em tábua referia «o corpo
do Beato Gonçalo de Lagos por muitos conhecido de grandes milagres».
Em 1640 o cofre e ao sepulcro foram
transferidos para outro nicho, na capela-mor, com a legenda em azulejos que
continuamos a ver: S. DO SANTO PADRE FREI GONÇALO DE LAGOS PRIOR QUE FOI DESTE
CONVENTO Q[UE] EM VIDA FLORECEO EM VIRTUDES E NA MORTE RESPLANDECE EM MILAGRES.
Finalmente, em 1784, as ossadas, colocadas
em novo cofre, são mudadas para o altar de São Gonçalo, ficando o sepulcro de
pedra no local anterior.
É neste que podemos encontrar a mais certa
imagem do que ele foi e da memória da sua figura, mesmo que toscamente esculpida.
Dali sobressai um frade agostinho, com o seu próprio hábito e correia à
cintura, com um capuz que já é uma auréola, com tonsura e barba, olhos
expressivos e boca a falar, mãos que lhe acompanham pregação e um livro ao de
cima, de Evangelho anunciado.
Guardemos-lhe esta imagem, tão verosímil
que é. Não temos outra de alguém desse tempo, convivente aqui. Traz-nos o
melhor de então, para o sermos hoje.