28 novembro 2023

SOBRE SÃO GONÇALO | Jornal BADALADAS 24 NOVEMBRO 2023

 

SOBRE SÃO GONÇALO

SOBRE NÓS COM ELE

       Manuel Clemente, Patriarca Emérito de Lisboa          

 

Estas linhas resumem o que disse na apresentação do belo livro de José Pedro Sobreiro (ilustração) e Luís Filipe Rodrigues (texto), São Gonçalo de Lagos a Torres Vedras, no passado dia 21 de outubro.

Em tempo de comemorações gonçalinas, foi um excelente contributo para a divulgação duma figura que bem merece ser recordada, do passado para o futuro.

Da época em que viveu entre nós, até 1422 ou mesmo 1445, o que nos resta em Torres Vedras? Antes de mais nós mesmos, os que ainda descendemos de quem cá vivia então, ou dos muitos que chegaram depois. Ouvimos histórias familiares ou mais largas, ganhámos hábitos locais, reconhecemo-nos em monumentos e sítios.

Dessa altura, “falam-nos” as igrejas – ainda que todas restauradas depois - as muralhas do castelo, o Chafariz dos Canos, alguma nomenclatura… Referências paroquiais, militares e civis do que era a vida de então.

Será bom conhecer a terra a partir daqui, do que resta do que foi. Ir a cada uma das igrejas e perceber que era nelas e ao seu redor que a vida social começava e terminava, do batistério à sepultura. Não esquecer a ida à igreja de Nossa Senhora do Amial, ao Choupal, onde provavelmente se reuniam os cristãos no período árabe e em que no tempo de São Gonçalo persistia o culto.

Na antiga Rua dos Mercadores, passar onde era o seu desaparecido convento. Subir depois ao castelo e alargar a vista, como ele o fez certamente. Descer ao Chafariz dos Canos e admirar, como ele também admiraria, uma obra civil que juntava beleza e utilidade.

Depois, com tempo e atenção, visitar a antiga portaria do convento novo, na igreja da Graça, onde magníficos painéis de azulejos nos “falam” da vida e dos milagres de São Gonçalo. Admire-se o excelente desenho, mas leiam-se com atenção as legendas, para compreender bem a figuração. Obra de setecentos, apresenta o que a tradição gonçalina foi somando, do século XV em diante, de episódios e milagres, como é próprio das memórias vivas.

Tradição que nos apresenta São Gonçalo como homem de Culto, Caridade e Cultura. De Culto, “em espírito e verdade”, como o jovem Gonçalo o encontrou e celebrou entre os Eremitas de Santo Agostinho – em Lisboa, São Lourenço dos Francos, Santarém e Torres Vedras. De Caridade, partilhando o muito que sabia com os trabalhadores que voltavam do campo e com as crianças que brincavam nas praças; e o pouco de que dispunha, com quem o procurasse ou ele mesmo buscasse. E de Cultura, pois cultivava a palavra e copiava livros de coro, para que o louvor divino se entoasse com verdade e beleza. Uma pintura quinhentista ou de pouco depois retrata-nos S. Gonçalo orlado com notas musicais, aludindo a este seu ofício.





Assim ficou Gonçalo na memória do povo. Sepultado no chão do convento, logo começou a romagem dos que pediam a sua ajuda celestial. Tocavam a terra onde jazera, mesmo quando os seus confrades lhe puseram os ossos num cofre mais resguardado. A terra foi depois conservada num sepulcro de pedra.

Sumariemos as trasladações: A primeira essa mesma, em 1492, no convento velho, quando as ossadas foram guardadas num cofre; em 1518 fez-se o referido sepulcro de pedra, com a sua imagem, guardando terra do primeiro sepultamento, que se podia tocar por uma abertura.

É neste sepulcro que encontraremos a mais sólida comprovação da memória certa que logo deixou. Se faleceu em meados do século XV, não passou muito tempo para lhe reconhecerem a santidade, assim gravada em pedra: «Esta sepultura é do bem-aventurado frei gº de lagos feita no mês de Janº de 1518». Entretanto, já em 1495 a Câmara de Torres Vedras o tomara por como padroeiro da vila e termo.

Em 1559 começou a demolição do convento velho, repetidamente alagado pelas cheias. O cofre com os ossos veio para a gafaria de Santo André, para onde os frades se transferiram e onde começou a construção do convento novo. Depois veio também o sepulcro de pedra.

Em 1580 já se puderam colocar o cofre das ossadas e o sepulcro de pedra na nova igreja da Graça, num nicho mandado fazer pela Câmara, ao lado do altar do Crucifixo. Uma inscrição em tábua referia «o corpo do Beato Gonçalo de Lagos por muitos conhecido de grandes milagres».

Em 1640 o cofre e ao sepulcro foram transferidos para outro nicho, na capela-mor, com a legenda em azulejos que continuamos a ver: S. DO SANTO PADRE FREI GONÇALO DE LAGOS PRIOR QUE FOI DESTE CONVENTO Q[UE] EM VIDA FLORECEO EM VIRTUDES E NA MORTE RESPLANDECE EM MILAGRES.

Finalmente, em 1784, as ossadas, colocadas em novo cofre, são mudadas para o altar de São Gonçalo, ficando o sepulcro de pedra no local anterior.

É neste que podemos encontrar a mais certa imagem do que ele foi e da memória da sua figura, mesmo que toscamente esculpida. Dali sobressai um frade agostinho, com o seu próprio hábito e correia à cintura, com um capuz que já é uma auréola, com tonsura e barba, olhos expressivos e boca a falar, mãos que lhe acompanham pregação e um livro ao de cima, de Evangelho anunciado. 

Guardemos-lhe esta imagem, tão verosímil que é. Não temos outra de alguém desse tempo, convivente aqui. Traz-nos o melhor de então, para o sermos hoje.

 






Sem comentários:

Enviar um comentário