26 maio 2022

TECTOS MUDÉJARES DE TORRES VEDRAS

 Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 27 MAIO 2022

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OS TECTOS MUDÉJARES DE TORRES VEDRAS 

Joaquim Moedas Duarte 

Professor / investigador de História

 

Nestas semanas mais recentes, depois da paragem de tantos meses, exigida pela pandemia, voltámos a guiar visitas culturais de muitas dezenas de pessoas que vieram até nós para conhecerem o Património edificado torriense. Seja no Centro Histórico, seja noutros locais do concelho, fomos ouvindo apreciações que, de forma espontânea, enalteciam o que se ia observando. “Quantas vezes passei por Torres Vedras e nunca vi esta maravilha!” – referindo os azulejos, a talha dos altares, os embrechados de mármore, as telas pintadas, os vestígios pré-históricos, os claustros. Ou os muito raros tectos mudéjares no Convento do Varatojo e na Igreja de Dois Portos.

Fixemo-nos hoje sobre esta preciosa particularidade do nosso Património

 

A arte mudéjar 

De que estamos a falar? Trata-se de uma herança técnico-cultural da presença muçulmana na Península Ibérica que deixou marcas notabilíssimas em Espanha (Córdova, Granada, Sevilha…) e, em menor escala, em Portugal, onde ganhou maior notoriedade durante o reinado do rei D. Manuel I (1495-1521). “Mudéjares” eram os mouros submetidos ao domínio cristão a partir da guerra da Reconquista. Muitos foram-se deslocando ou fugindo para os territórios ainda sob domínio islâmico, enquanto uma minoria se manteve nos territórios conquistados. Mas, ao contrário do que uma certa visão redutora e simplista da História durante anos propalou, esta convivência teve resultados notáveis e frutuosos. Os Mouros, convertidos ou não ao cristianismo, influenciaram a Ciência Náutica portuguesa, a Geografia e a Cartografia – importantes nos Descobrimentos portugueses – e deixaram marcas indeléveis na criação artística. De tal modo que foi possível aos historiadores de Arte criarem o conceito de “arte mudéjar”, com manifestações mais relevantes na P. Ibérica entre os séculos XII e XVI, nas quais se interpenetram formas de construir e modos decorativos das culturas cristã e muçulmana.

Pedro Dias, na sua tentativa de sistematização sobre este fenómeno, considera que “a arte mudéjar foi uma das mais notáveis criações artísticas peninsulares e um dos nossos grandes contributos à estética europeia”, sublinhando a importância dos contactos pacíficos entre cristãos e muçulmanos durante mais de sete séculos. Tal coabitação tem vindo a ser comprovada no Campo Arqueológico de Mértola, pela equipa dirigida pelo arqueólogo Cláudio Torres. Décadas de investigação mostram que a memória belicista que a historiografia privilegiou – cristãos contra infiéis – é a expressão de uma visão parcelar, veiculada pelo culto da nobreza guerreira e que ignora o quotidiano das populações laboriosas. Este tem sido, também, o magistério incansável do decano dos nossos historiadores, António Borges Coelho.

Os mestres artífices trocavam experiências nos modos de fazer e de construir, que punham ao serviço dos mandantes das obras e dos seus arquitectos. Por isso, tantos testemunhos desta arte mudéjar chegaram até nós. Circunscrevendo-nos ao nosso território concelhio, e antes de falarmos dos tectos, temos exemplos da azulejaria mudéjar – correntemente nomeada de mourisca ou hispano-árabe – em S. Pedro da Cadeira, na Capela da Senhora da Cátela,  e na Capela da Senhora do Amial, na cidade de Torres Vedras.

 

Os tectos de Dois Portos e Varatojo

Comecemos por Dois Portos. Recorrendo à “Base de dados de Património islâmico em Portugal” (em linha), transcrevemos parte da ficha descritiva referente à Igreja de S. Pedro: «(…) o interior conserva a tipologia original, conjugando o gosto classicista, patente nos capitéis, com elementos decorativos mudéjares. Destaque para o tecto em madeira de cedro que cobre dois terços da esteira da nave central, com trabalho de alfarge, constituído por molduras cruzadas em arabescos que formam um entrelaçado de linhas rectas e quebradas, laçaria essa policromada e dourada. Este tecto foi restaurado em 1994. É uma das poucas igrejas do distrito de Lisboa a conservar um tecto de alfarge». A observação das fotos ajuda a esclarecer a descrição.



Igreja de Dois Portos, conc. de Torres Vedras


Quanto ao Convento do Varatojo, o tecto mudéjar é o do vestíbulo onde confluem as entradas para igreja, para o acesso ao claustro e para a capela de Nª Srª do Sobreiro. Sobre ele, diz a referida “Base de dados”: «(…) um tecto de laçaria extraordinariamente simples, plano e com entrelaçado geométrico de ripas finas».

Este tipo de tecto, denominado de “laçaria de madeira”, aparece muitas vezes referido como “de alfarge”, uma designação de origem árabe (al-harj) que significa tecto de madeira lavrada. Trata-se, pois, de um modo decorativo baseado num trabalho fino de carpintaria no qual os artífices muçulmanos eram exímios e cuja arte foi aprendida e adoptada por carpinteiros portugueses.

Refira-se, entretanto, que engenheiros e arquitectos analisam com mais rigor as diversas tipologias de tectos. Chamam “alfarges” aos tectos planos de viga à vista, sem decoração de laço. Quando são recobertos com decoração de laço, usam o termo “Taujeles”. É o caso do “taujel” do Varatojo.



Convento do Varatojo, Torres Vedras


O mais antigo exemplar conhecido de tecto de laçaria é o da capela real do antigo Paço de Sintra, do século XV – enquanto que os de Dois Portos e Varatojo se situam na primeira metade do século XVI. A expressão mais fulgurante destes tectos encontra-se na Sé do Funchal e na igreja matriz de Caminha, também do século XVI. 

Concluindo

Nestas visitas guiadas aos nossos monumentos, consolidamos a ideia de que não basta apreciar as formas artísticas que eles contêm. Se nos limitamos a olhar, não vemos em profundidade, imobilizados numa perspectiva formalista que pode ser esteticamente atractiva mas é limitada e empobrecedora. A verdade é que, por trás das formas há o vasto horizonte da História que nos ajuda a entender melhor o que elas são. A História da Arte não se limita a descrever, ela procura saber as razões e os contextos de cada forma artística. Essa pode ser a lição dos nossos tectos mudéjares.

Nota bibliográfica

MUDÉJAR, Arte – Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, vol. IV, Livraria Figueirinhas, Porto, 1981.

MOREIRA, Maria Irene – Tectos decorativos em madeira em edifícios patrimoniais portugueses. Dissertação de Mestrado, Fac. Engenharia da Universidade do Porto, Julho 2010. ( em linha:  https://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/59666/1/000143516.pdf acedido em 22 de Maio 2022)

MARTINS, João Carlos S. – Tectos portugueses do séc. XV ao séc. XIX. Dissertação de Mestrado, Instituto Superior Técnico, Lisboa, Setembro 2008 (em linha: https://www.academia.edu/7412056/Tectos_Portugueses_do_Sec_XV_ao_Sec_XIX , acedido em 21 de Maio 2022)

DIAS, Pedro – “Arquitectura Mudéjar Portuguesa: tentaiva de sistematização”. (em linha: http://www.cidehusdigital.uevora.pt/ophir-restaurada/mare-liberum/volume-8/arquitectura-mudejar-portuguesa-tentativa-de-sistematizacao?pag=85 , acedido em 21 de Maio 2022)


(Fotos J. Moedas Duarte)

 

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