Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 27 MAIO 2022
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OS TECTOS MUDÉJARES DE TORRES VEDRAS
Joaquim Moedas Duarte
Professor / investigador de História
Nestas semanas mais recentes, depois da paragem de
tantos meses, exigida pela pandemia, voltámos a guiar visitas culturais de
muitas dezenas de pessoas que vieram até nós para conhecerem o Património
edificado torriense. Seja no Centro Histórico, seja noutros locais do concelho,
fomos ouvindo apreciações que, de forma espontânea, enalteciam o que se ia
observando. “Quantas vezes passei por Torres Vedras e nunca vi esta maravilha!”
– referindo os azulejos, a talha dos altares, os embrechados de mármore, as
telas pintadas, os vestígios pré-históricos, os claustros. Ou os muito raros tectos
mudéjares no Convento do Varatojo e na Igreja de Dois Portos.
Fixemo-nos hoje sobre esta preciosa particularidade
do nosso Património
A arte mudéjar
De que estamos a falar? Trata-se de uma herança
técnico-cultural da presença muçulmana na Península Ibérica que deixou marcas
notabilíssimas em Espanha (Córdova, Granada, Sevilha…) e, em menor escala, em
Portugal, onde ganhou maior notoriedade durante o reinado do rei D. Manuel I
(1495-1521). “Mudéjares” eram os mouros submetidos ao domínio cristão a partir da
guerra da Reconquista. Muitos foram-se deslocando ou fugindo para os
territórios ainda sob domínio islâmico, enquanto uma minoria se manteve nos
territórios conquistados. Mas, ao contrário do que uma certa visão redutora e
simplista da História durante anos propalou, esta convivência teve resultados
notáveis e frutuosos. Os Mouros, convertidos ou não ao cristianismo,
influenciaram a Ciência Náutica portuguesa, a Geografia e a Cartografia –
importantes nos Descobrimentos portugueses – e deixaram marcas indeléveis na
criação artística. De tal modo que foi possível aos historiadores de Arte
criarem o conceito de “arte mudéjar”, com manifestações mais relevantes na P.
Ibérica entre os séculos XII e XVI, nas quais se interpenetram formas de
construir e modos decorativos das culturas cristã e muçulmana.
Pedro Dias, na sua tentativa de sistematização sobre
este fenómeno, considera que “a arte mudéjar foi uma das mais notáveis criações
artísticas peninsulares e um dos nossos grandes contributos à estética
europeia”, sublinhando a importância dos contactos pacíficos entre cristãos e
muçulmanos durante mais de sete séculos. Tal coabitação tem vindo a ser
comprovada no Campo Arqueológico de Mértola, pela equipa dirigida pelo
arqueólogo Cláudio Torres. Décadas de investigação mostram que a memória
belicista que a historiografia privilegiou – cristãos contra infiéis – é a
expressão de uma visão parcelar, veiculada pelo culto da nobreza guerreira e
que ignora o quotidiano das populações laboriosas. Este tem sido, também, o
magistério incansável do decano dos nossos historiadores, António Borges
Coelho.
Os mestres artífices trocavam experiências nos modos
de fazer e de construir, que punham ao serviço dos mandantes das obras e dos
seus arquitectos. Por isso, tantos testemunhos desta arte mudéjar chegaram até
nós. Circunscrevendo-nos ao nosso território concelhio, e antes de falarmos dos
tectos, temos exemplos da azulejaria mudéjar – correntemente nomeada de mourisca
ou hispano-árabe – em S. Pedro da Cadeira, na Capela da Senhora da Cátela, e na Capela da Senhora do Amial, na cidade de
Torres Vedras.
Os tectos de Dois Portos e Varatojo
Comecemos por Dois Portos. Recorrendo à “Base de
dados de Património islâmico em Portugal” (em linha), transcrevemos parte da
ficha descritiva referente à Igreja de S. Pedro: «(…) o interior conserva a
tipologia original, conjugando o gosto classicista, patente nos capitéis, com
elementos decorativos mudéjares. Destaque para o tecto em madeira de cedro que
cobre dois terços da esteira da nave central, com trabalho de alfarge,
constituído por molduras cruzadas em arabescos que formam um entrelaçado de
linhas rectas e quebradas, laçaria essa policromada e dourada. Este tecto foi
restaurado em 1994. É uma das poucas igrejas do distrito de Lisboa a conservar
um tecto de alfarge». A observação das fotos ajuda a esclarecer a descrição.
Quanto ao Convento do Varatojo, o tecto mudéjar é o
do vestíbulo onde confluem as entradas para igreja, para o acesso ao claustro e
para a capela de Nª Srª do Sobreiro. Sobre ele, diz a referida “Base de dados”:
«(…) um tecto de laçaria extraordinariamente simples, plano e com entrelaçado
geométrico de ripas finas».
Este tipo de tecto, denominado de “laçaria de
madeira”, aparece muitas vezes referido como “de alfarge”, uma designação de
origem árabe (al-harj) que significa tecto de madeira lavrada. Trata-se, pois,
de um modo decorativo baseado num trabalho fino de carpintaria no qual os
artífices muçulmanos eram exímios e cuja arte foi aprendida e adoptada por
carpinteiros portugueses.
Refira-se, entretanto, que engenheiros e arquitectos
analisam com mais rigor as diversas tipologias de tectos. Chamam “alfarges” aos
tectos planos de viga à vista, sem decoração de laço. Quando são recobertos com
decoração de laço, usam o termo “Taujeles”. É o caso do “taujel” do Varatojo.
Convento do Varatojo, Torres Vedras
O mais antigo exemplar conhecido de tecto de laçaria é o da capela real do antigo Paço de Sintra, do século XV – enquanto que os de Dois Portos e Varatojo se situam na primeira metade do século XVI. A expressão mais fulgurante destes tectos encontra-se na Sé do Funchal e na igreja matriz de Caminha, também do século XVI.
Concluindo
Nestas visitas guiadas aos nossos monumentos, consolidamos a ideia de que não basta apreciar as formas artísticas que eles contêm. Se nos limitamos a olhar, não vemos em profundidade, imobilizados numa perspectiva formalista que pode ser esteticamente atractiva mas é limitada e empobrecedora. A verdade é que, por trás das formas há o vasto horizonte da História que nos ajuda a entender melhor o que elas são. A História da Arte não se limita a descrever, ela procura saber as razões e os contextos de cada forma artística. Essa pode ser a lição dos nossos tectos mudéjares.
Nota bibliográfica
MUDÉJAR, Arte – Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, vol. IV, Livraria Figueirinhas, Porto, 1981.
MOREIRA, Maria Irene – Tectos decorativos em madeira em edifícios patrimoniais portugueses. Dissertação de Mestrado, Fac. Engenharia da Universidade do Porto, Julho 2010. ( em linha: https://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/59666/1/000143516.pdf acedido em 22 de Maio 2022)
MARTINS, João Carlos S. – Tectos portugueses do séc. XV ao séc. XIX. Dissertação de Mestrado, Instituto Superior Técnico, Lisboa, Setembro 2008 (em linha: https://www.academia.edu/7412056/Tectos_Portugueses_do_Sec_XV_ao_Sec_XIX , acedido em 21 de Maio 2022)
DIAS, Pedro – “Arquitectura Mudéjar
Portuguesa: tentaiva de sistematização”. (em linha: http://www.cidehusdigital.uevora.pt/ophir-restaurada/mare-liberum/volume-8/arquitectura-mudejar-portuguesa-tentativa-de-sistematizacao?pag=85 , acedido em 21 de Maio 2022)
(Fotos J. Moedas Duarte)
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