Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 29 ABRIL 2022
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Representação
de um casamento [quase] à primeira vista
Manuela
Catarino
Professora
/ Investigadora de História
Nas estórias antigas de
infância, princesas e príncipes encontravam-se de forma inesperada. Várias
peripécias depois, casavam-se. Inevitavelmente viviam felizes para sempre.
Nunca os pequenos ouvintes puseram em dúvida esses sucessos, nem mesmo quando,
já adultos, os (re)transmitiram aos filhotes, perpetuando memórias e
imaginação.
A História conta-nos
outras realidades: nas memórias de infantas destinadas a contrair matrimónio
com jovens completamente desconhecidos, em nome de interesses económicos,
políticos e estratégicos que a conjuntura das casas reinantes, a que
pertenciam, desenhava a seu bel-prazer, o final não foi sempre afortunado.
Recuemos à primeira
metade do século XV. Reinava então D. Duarte. Na terça feira amanhecente três oras depois da meia noite, 18 de
Setembro de 1434, a rainha Leonor de Aragão dava à luz, no paço da vila de
Torres Vedras, uma menina a quem foi dado o nome de Leonor. A infanta perderia
o pai quatro anos depois. A segunda perda viria a sofrê-la, estando doente, no
paço de Almeirim, quando a mãe optou pelo exílio em Castela, em 1440, ficando
aos cuidados de D. Guiomar de Castro.
Coube ao tio D. Pedro,
duque de Viseu, assegurar a regência do reino e ter a seu cargo o
acompanhamento dos infantes: o primogénito e herdeiro Afonso, bem como
Fernando, Leonor, Catarina e Joana, sobreviventes dos nove que constituíram a
prole régia. As jovens infantas viveram em casa própria e começaram a ser delineadas
futuras estratégias matrimoniais, perspetivando-se a união de Leonor ao
herdeiro do trono da França ou ao germânico Frederico, rei dos Romanos. Mas os
tempos que se aproximavam seriam conturbados. Em 1449, o confronto de
Alfarrobeira põe fim à vida de D. Pedro marcando definitivamente a assumpção do
poder pelo jovem rei Afonso V, que decidirá o enlace da irmã.
Primeiro, foi o retrato
da jovem infanta. Uma embaixada trouxe um pintor, ao reino português, cerca de 1448,
para o efeito. Depois a decisão. A proposta oficial de Frederico III era
formalizada nos inícios de 1450. Desenrolaram-se, de seguida, os procedimentos
diplomáticos – o contrato de casamento foi estipulado a 10 de Dezembro de 1450,
em Nápoles, perante seu tio D. Afonso, rei de Nápoles e Aragão.
Retrato de Leonor de Portugal, pintura anónima de princípio do séc. XVI
A jovem Leonor terá
começado a aprender a língua alemã e a preparar-se para a vida que a esperava
bem longe do reino em que nascera. Em Março de 1451, o rei dos Romanos enviou
dois embaixadores – Mestre Tiago Moetz e Nicolau Lanckman de Valckenstein – para,
em Portugal, desposarem em seu nome a infanta portuguesa, o que virá a ocorrer
no início de Agosto, na cidade de Lisboa. Vários são os relatos, quer do lado
português, quer dos enviados alemães, descrevendo as opulentas festas que
abrilhantaram acontecimento tão significativo.
Mas era necessário
preparar a partida de Leonor. Durante longos dias, de 13 a 25 de Outubro de
1451, realizaram-se banquetes, representações teatrais, desfiles, danças, justas,
jogos vários, touradas, caçadas, ofícios religiosos. Quase um verdadeiro conto
de fadas, se diria, se estivéssemos no reino da imaginação. Porém, bem concreto
nos custos que haviam levado Afonso V a reunir Cortes, em Santarém, para lançar
sobre o povo dois pedidos e meio e dízima e meia ao clero, a fim de fazer face às
despesas avultadas com o casamento e dote da noiva.
O trajecto estava
definido: de Lisboa, por mar, até ao porto de Siena como solicitado no contrato
nupcial. As peripécias vieram intrometer-se e os ventos contrários atrasaram a
partida. No Mediterrâneo não faltaram ataques de piratas, tempestades múltiplas,
que expuseram Leonor e a ampla comitiva a diversas e inusitadas experiências.
Saídos em finais de Novembro, aportaram a Livorno a 1 de Fevereiro de 1452,
após atribulada viagem marítima.
Informado Frederico,
enviou uma comitiva que escoltou Leonor e seu séquito a Pisa onde se
recompuseram antes de prosseguir caminho até Siena. Aí se viram os esposos,
pela primeira vez, a 24 de Fevereiro de 1452. Desse encontro existem vários
relatos, tanto portugueses como alemães, e, principalmente, uma representação
pictórica, posterior, muito interessante: nela se vê a jovem desposada, de 17
anos, a ser apresentada pelo bispo de Siena, Eneas Silvio Piccolomini, a
Frederico, e as saudações que trocaram perante os membros das respectivas
comitivas. O contraste físico não pode ser mais evidente. A jovem de estatura
mediana, olhos muito negros e luminosos,
boca pequena, faces harmoniosamente rosadas, o marido, de 36 anos de idade,
ao que parece com um porte que ultrapassava os dois metros de altura, detentor
de carácter que viria a pautar a vivência conjugal.
Mas o casal precisava
ainda de um momento especial. Separadamente, partiram para Roma onde
celebrariam na igreja de S. Pedro o casamento sob a bênção do papa Nicolau V a
16 de Março. Três dias depois, voltaram à mesma igreja para que fosse feita a
coroação de Frederico como imperador e de sua mulher como imperatriz. O
cerimonial teve o máximo esplendor e a consagração pelas mãos do papa.
Faltava a lua de mel. E,
mais uma vez, separadamente, os dois esposos partiram para o reino de Nápoles
onde o tio D. Afonso organizou festejos grandiosos embora se estivesse no
período quaresmal. Foi no domingo de Pascoela, que o imperador decidiu consumar
o casamento. Os relatos das fontes são elucidativos: depois de ter sido levada
ao quarto nupcial e, publicamente, ter trocado um beijo com o esposo, Leonor
regressou à sua câmara. Vieram buscá-la dois condes para a conduzir ao leito
nupcial. Recusou-se acompanhá-los, exigindo alguém de estrato social condizente
com o seu estado. Por cinco ou seis vezes novas embaixadas se deslocaram entre
um quarto e outro, por ela sucessivamente recusadas. Frederico acabou por vir,
em pessoa, buscá-la…
O imperador partiu para
Roma e Leonor ainda permaneceria em Nápoles até 24 de Abril. Reunir-se-iam em
Veneza para finalmente se dirigirem para Neustadt, onde chegariam a 19 de
Junho. Viveriam um casamento de cerca de quinze anos.
Apresentação
de D. Leonor a Frederico III em Siena.
Fresco
de Bernardino di Betti, chamado Pintoricchio.
Libreria
Piccolomini, Catedral de Siena.
Felizes
para sempre?
Mais uma vez as fontes,
em particular as cartas que D. Lopo de Almeida escreveu a D. Afonso V dando
notícias minuciosas do que a irmã vivia, no novo reino, não são muito
abonatórias para o imperador. A imperatriz conheceu o travo da guerra e das
revoltas que se desencadearam contra o Sacro Império Romano Germânico a que se
somaram as perdas de três, dos cinco filhos, que foi gerando. Acresceram as
ausências da maior parte dos membros portugueses do seu séquito, dado que
Frederico terá considerado constituírem um gravoso encargo financeiro a
suportar. Restaram-lhe dois filhos vivos – Maximiliano, futuro imperador e
Cunegundes, ainda menina – para perpetuarem a sua memória.
No mesmo mês de
nascimento se finou, em 1467, fizera 33 anos. Escolheu, como última morada, o
local onde havia enterrado os filhos, no coro do convento cisterciense, em
Neustadt. Ali, decerto saudosa de Portugal, a sua história chegou ao fim.
Referências
Bibliográficas
Leonor
de Portugal, imperatriz da Alemanha. Diário de viagem do embaixador Nicolau
Lanckman de Valckenstein, edição do texto latino e tradução de Aires A.
Nascimento et alli. Lisboa: Edição
Cosmos, 1992.
ALMEIDA, Adriana R. de.”Perspectiva
sobre a história das emoções. O casamento de D. Leonor de Portugal com o
imperador Frederico III” in RODRIGUES, Ana Maria; SILVA, Manuela Santos; FARIA,
Ana Leal de (Coords.) – Casamentos da
Família Real Portuguesa: diplomacia e cerimonial. Vol.1. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2017, pp.253-287.
COELHO, Maria Helena da
Cruz.” A política matrimonial da dinastia de Avis: Leonor e Frederico III da
Alemanha”. Revista Portuguesa de História.
t. XXXVI. vol.1. (2002-2003), pp.41-70.
DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Requiem por um rei triste. Temas
e Debates, 2007.
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