26 maio 2022

REPRESENTAÇÃO DE UM CASAMENTO [QUASE] À PRIMEIRA VISTA

 

Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 29 ABRIL 2022

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Representação de um casamento [quase] à primeira vista

Manuela Catarino

Professora / Investigadora de História

 

 

Nas estórias antigas de infância, princesas e príncipes encontravam-se de forma inesperada. Várias peripécias depois, casavam-se. Inevitavelmente viviam felizes para sempre. Nunca os pequenos ouvintes puseram em dúvida esses sucessos, nem mesmo quando, já adultos, os (re)transmitiram aos filhotes, perpetuando memórias e imaginação.

A História conta-nos outras realidades: nas memórias de infantas destinadas a contrair matrimónio com jovens completamente desconhecidos, em nome de interesses económicos, políticos e estratégicos que a conjuntura das casas reinantes, a que pertenciam, desenhava a seu bel-prazer, o final não foi sempre afortunado.

Recuemos à primeira metade do século XV. Reinava então D. Duarte. Na terça feira amanhecente três oras depois da meia noite, 18 de Setembro de 1434, a rainha Leonor de Aragão dava à luz, no paço da vila de Torres Vedras, uma menina a quem foi dado o nome de Leonor. A infanta perderia o pai quatro anos depois. A segunda perda viria a sofrê-la, estando doente, no paço de Almeirim, quando a mãe optou pelo exílio em Castela, em 1440, ficando aos cuidados de D. Guiomar de Castro.

Coube ao tio D. Pedro, duque de Viseu, assegurar a regência do reino e ter a seu cargo o acompanhamento dos infantes: o primogénito e herdeiro Afonso, bem como Fernando, Leonor, Catarina e Joana, sobreviventes dos nove que constituíram a prole régia. As jovens infantas viveram em casa própria e começaram a ser delineadas futuras estratégias matrimoniais, perspetivando-se a união de Leonor ao herdeiro do trono da França ou ao germânico Frederico, rei dos Romanos. Mas os tempos que se aproximavam seriam conturbados. Em 1449, o confronto de Alfarrobeira põe fim à vida de D. Pedro marcando definitivamente a assumpção do poder pelo jovem rei Afonso V, que decidirá o enlace da irmã.

Primeiro, foi o retrato da jovem infanta. Uma embaixada trouxe um pintor, ao reino português, cerca de 1448, para o efeito. Depois a decisão. A proposta oficial de Frederico III era formalizada nos inícios de 1450. Desenrolaram-se, de seguida, os procedimentos diplomáticos – o contrato de casamento foi estipulado a 10 de Dezembro de 1450, em Nápoles, perante seu tio D. Afonso, rei de Nápoles e Aragão.


Retrato de Leonor de Portugal, pintura anónima de princípio do séc. XVI


A jovem Leonor terá começado a aprender a língua alemã e a preparar-se para a vida que a esperava bem longe do reino em que nascera. Em Março de 1451, o rei dos Romanos enviou dois embaixadores – Mestre Tiago Moetz e Nicolau Lanckman de Valckenstein – para, em Portugal, desposarem em seu nome a infanta portuguesa, o que virá a ocorrer no início de Agosto, na cidade de Lisboa. Vários são os relatos, quer do lado português, quer dos enviados alemães, descrevendo as opulentas festas que abrilhantaram acontecimento tão significativo.

Mas era necessário preparar a partida de Leonor. Durante longos dias, de 13 a 25 de Outubro de 1451, realizaram-se banquetes, representações teatrais, desfiles, danças, justas, jogos vários, touradas, caçadas, ofícios religiosos. Quase um verdadeiro conto de fadas, se diria, se estivéssemos no reino da imaginação. Porém, bem concreto nos custos que haviam levado Afonso V a reunir Cortes, em Santarém, para lançar sobre o povo dois pedidos e meio e dízima e meia ao clero, a fim de fazer face às despesas avultadas com o casamento e dote da noiva.

O trajecto estava definido: de Lisboa, por mar, até ao porto de Siena como solicitado no contrato nupcial. As peripécias vieram intrometer-se e os ventos contrários atrasaram a partida. No Mediterrâneo não faltaram ataques de piratas, tempestades múltiplas, que expuseram Leonor e a ampla comitiva a diversas e inusitadas experiências. Saídos em finais de Novembro, aportaram a Livorno a 1 de Fevereiro de 1452, após atribulada viagem marítima.

Informado Frederico, enviou uma comitiva que escoltou Leonor e seu séquito a Pisa onde se recompuseram antes de prosseguir caminho até Siena. Aí se viram os esposos, pela primeira vez, a 24 de Fevereiro de 1452. Desse encontro existem vários relatos, tanto portugueses como alemães, e, principalmente, uma representação pictórica, posterior, muito interessante: nela se vê a jovem desposada, de 17 anos, a ser apresentada pelo bispo de Siena, Eneas Silvio Piccolomini, a Frederico, e as saudações que trocaram perante os membros das respectivas comitivas. O contraste físico não pode ser mais evidente. A jovem de estatura mediana, olhos muito negros e luminosos, boca pequena, faces harmoniosamente rosadas, o marido, de 36 anos de idade, ao que parece com um porte que ultrapassava os dois metros de altura, detentor de carácter que viria a pautar a vivência conjugal.

Mas o casal precisava ainda de um momento especial. Separadamente, partiram para Roma onde celebrariam na igreja de S. Pedro o casamento sob a bênção do papa Nicolau V a 16 de Março. Três dias depois, voltaram à mesma igreja para que fosse feita a coroação de Frederico como imperador e de sua mulher como imperatriz. O cerimonial teve o máximo esplendor e a consagração pelas mãos do papa.

Faltava a lua de mel. E, mais uma vez, separadamente, os dois esposos partiram para o reino de Nápoles onde o tio D. Afonso organizou festejos grandiosos embora se estivesse no período quaresmal. Foi no domingo de Pascoela, que o imperador decidiu consumar o casamento. Os relatos das fontes são elucidativos: depois de ter sido levada ao quarto nupcial e, publicamente, ter trocado um beijo com o esposo, Leonor regressou à sua câmara. Vieram buscá-la dois condes para a conduzir ao leito nupcial. Recusou-se acompanhá-los, exigindo alguém de estrato social condizente com o seu estado. Por cinco ou seis vezes novas embaixadas se deslocaram entre um quarto e outro, por ela sucessivamente recusadas. Frederico acabou por vir, em pessoa, buscá-la…

O imperador partiu para Roma e Leonor ainda permaneceria em Nápoles até 24 de Abril. Reunir-se-iam em Veneza para finalmente se dirigirem para Neustadt, onde chegariam a 19 de Junho. Viveriam um casamento de cerca de quinze anos.



Apresentação de D. Leonor a Frederico III em Siena.

Fresco de Bernardino di Betti, chamado Pintoricchio.

Libreria Piccolomini, Catedral de Siena.


Felizes para sempre?

Mais uma vez as fontes, em particular as cartas que D. Lopo de Almeida escreveu a D. Afonso V dando notícias minuciosas do que a irmã vivia, no novo reino, não são muito abonatórias para o imperador. A imperatriz conheceu o travo da guerra e das revoltas que se desencadearam contra o Sacro Império Romano Germânico a que se somaram as perdas de três, dos cinco filhos, que foi gerando. Acresceram as ausências da maior parte dos membros portugueses do seu séquito, dado que Frederico terá considerado constituírem um gravoso encargo financeiro a suportar. Restaram-lhe dois filhos vivos – Maximiliano, futuro imperador e Cunegundes, ainda menina – para perpetuarem a sua memória.

No mesmo mês de nascimento se finou, em 1467, fizera 33 anos. Escolheu, como última morada, o local onde havia enterrado os filhos, no coro do convento cisterciense, em Neustadt. Ali, decerto saudosa de Portugal, a sua história chegou ao fim.

 

Referências Bibliográficas

 Leonor de Portugal, imperatriz da Alemanha. Diário de viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein, edição do texto latino e tradução de Aires A. Nascimento et alli. Lisboa: Edição Cosmos, 1992.

ALMEIDA, Adriana R. de.”Perspectiva sobre a história das emoções. O casamento de D. Leonor de Portugal com o imperador Frederico III” in RODRIGUES, Ana Maria; SILVA, Manuela Santos; FARIA, Ana Leal de (Coords.) – Casamentos da Família Real Portuguesa: diplomacia e cerimonial. Vol.1. Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, pp.253-287.

COELHO, Maria Helena da Cruz.” A política matrimonial da dinastia de Avis: Leonor e Frederico III da Alemanha”. Revista Portuguesa de História. t. XXXVI. vol.1. (2002-2003), pp.41-70.

DUARTE, Luís Miguel. D. Duarte. Requiem por um rei triste. Temas e Debates, 2007.


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