O MEU CLUBE
É O TORREENSE – ALGUMAS ESTÓRIAS
(3ª Parte)
NINÉU
Não vou escrever sobre o Torreense, instituição que
faz parte do nosso património, do qual nos orgulhamos, e que já por três vezes esteve
entre os grandes do futebol nacional.
Aproxima-se 2017, ano em que se irá comemorar o 1º
centenário do clube, designadamente com a publicação de um livro contendo toda
a sua história.
Nesta circunstância, cabe-me apenas relatar alguns
factos pessoais.
Comecei a ir ao Campo das Covas muito cedo, pela
mão do meu pai. Ao domingo, depois do almoço, íamos ao café do Borba, em frente
à igreja de São Pedro. Mal acabava de beber um garoto punha-me na alheta para ver os remates potentes do Sidónio
que me deixavam entusiasmado.
Nessa altura fazia recortes dos jornais desportivos,
pois o meu pai, sendo caixeiro-viajante, trazia resmas de jornais das suas
viagens.
Em 1955 o Torreense subiu pela primeira vez à 1ª
Divisão. Lembro-me da loucura que foi a vitória em Santarém e do regresso dos
jogadores a Torres. Ainda aí estão para contar, melhor do que eu, o Zé da
Costa, o António Augusto, o Mergulho, o Zé Gonçalves e o Ti Góis, célebre
massagista. O Torreense era conhecido nessa altura pelos milionários do Oeste,
já que até três argentinos faziam parte do plantel – Belen, Forneri e
Pellegero.
Américo Belen esteve na origem da criação de uma
escola de jogadores. Um dia propuseram que a antiga Escola Secundária (depois, Liceu)
fosse jogar com a escola do Torreense. Eu ainda andava no 1º Ano, mas fui
escolhido para ir com os matulões do 5º e do 7º ano. Não me lembro do
resultado, mas sei que fiquei a pertencer à escola de jogadores. Fizemos poucos
treinos e os únicos jogos que fizemos foi com o Peniche. Os resultados pouco
interessam, mas marquei o meu primeiro golo e, vá lá, ganhámos por 6-0. Dessa
equipa faziam parte o Augusto, por alcunha o Moinante, que andava sempre descalço, e tinha uns pés que mais
pareciam blocos de cimento. No dia da apresentação ao público estreámos um
equipamento e as respectivas alpargatas. Os pés do Augusto ressentiram-se, pois
nunca se tinham visto em semelhantes apertos. E a tal ponto que o tipo passou completamente
ao lado do jogo, ao levar todo o seu santo tempo a olhar para as alpargatas. A
organização era um pouco incipiente e a actividade da escola ficou por ali.
Em 1958 o Torreense organizou o 1º Torneio
Infantil, por iniciativa de Evaristo Silva, no qual participaram o Várzea F.
Clube (vencedor), o Castelo, o Forte de São Vicente, e a Paul, com vista à
captação de jovens para a criação de uma equipa de principiantes, para
participarem na AFL, Associação de Futebol de Lisboa. Fiz duas épocas nos
principiantes, cujo treinador era Evaristo Silva e que no caso de vitória nos
oferecia um bilhete na 2ª plateia para as ‘matinés’
do cinema de domingo.
Depois vieram os juniores. Na 1ª época só fiz um
jogo porque o meu pai me puniu ‘severamente’ não me deixando jogar, por as
notas no Liceu não serem muito famosas. Na 2ª época já foi diferente. Fizemos
uma grande época. O distrital foi canja e até fomos ao campeonato nacional.
Nessa altura o Tóino do Penedo (Runa) era o nosso
defesa direito. Num tal jogo em Lisboa o extremo esquerdo da equipa adversária
passava por ele como ‘cão como vinha vindimada’. No final queixava-se ele «não sei o que tinha hoje, não tinha força
nas pernas». Os jogos eram ás 10h30 da manhã, e tínhamos que sair de Torres
às 8 horas. Perguntámos-lhe: – Tomaste o
pequeno almoço? Ele disse que sim, que tinha bebido um achocolatado, cujo
slogan era «Tody dá força». – E das
outras vezes? ripostámos nós. A que ele respondeu, cheio de convicção:– «Das outras vezes, como um bife com batatas
fritas e uma baldaça de tinto».
Na época de 63/64 subimos à 1ª Divisão,
praticamente com a malta da terra. Claro que a 1ª Divisão era outra loiça.
Vieram dois ou três profissionais e os restantes tinham os seus empregos,
treinando das 19h30 às 21h30. Os prémios de jogo eram chorudos. Por vitória em
casa recebíamos 100 escudos (50 cêntimos na moeda actual), e por vitórias fora,
200 escudos (1 euro). A excepção foi quando ganhámos ao Sporting por uns
rotundos 3-0 em que recebemos mil escudos (5 euros). Uma verdadeira pechincha!
Å Å Å Å Å Å Å Å Å Å Å Å
Enquanto
alinhavo estas estórias não me sai do pensamento o meu querido amigo e velho
companheiro Vítor Campos. É para ti que me dirijo. Estiveste comigo em quase
todos estes momentos acabados de relatar, lembras-te? Dos jogos do Liceu,
passando pelo Várzea, pelos principiantes, pelos juniores e pelos seniores.
Travas neste momento uma luta difícil, mas porque sempre foste um lutador sei
que vais ganhar mais este jogo.
Sessenta
anos de companheirismo e amizade fazem com que esteja sempre contigo. Mas
também os torrienses estão todos a fazer força por ti.
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Nº 44 - publicado em 7 de Junho de 2013
A MALTA DA
MINHA RUA
(2ª Parte)
NINÉU
No período da minha infância e adolescência (finais
da década de quarenta e princípios de cinquenta) a rua era pertença dos
rapazes; a casa era o espaço próprio para as meninas.
Os rapazes iam desenvolvendo as suas competências,
brincando e jogando, desde as épocas do berlinde, do pião, das caricas, até ao
mais desejado: o jogo da bola. A rua onde eu nasci – a rua Cavaleiros da Espora
Dourada, no Centro Histórico – não era alcatroada, nem tinha sinais de
trânsito, e um automóvel passava de vez em quando. Para jogar futebol bastavam
quatro pedras a fazer de baliza e uma bola por mais minúscula que fosse. As
jogatinas eram interrompidas, por vezes, à passagem da galera do Clemente,
puxada por quatro cavalos, que ia à estação do Caminho de Ferro buscar cereais
para a moagem, com uns homens em cima, descalços e com uma saca de serapilheira
aos ombros para descarregarem os sacos. Mas também eram interrompidas às
quintas-feiras à tarde, à passagem do gado que vinha da Malveira e se deslocava
para o matadouro, deixando o nosso ‘estádio’
cheio de bosta e impraticável durante uns dias. Os companheiros das
brincadeiras eram o Béticha, o Faninha, o Zé Luís que morava nas traseiras da
minha casa, mas também o Tonecas e o Tó. Havia ainda, uns mais velhos e outros
mais novos – o Tobau, o Gilberto, os irmãos João, Murilo, José e Pedro, mas
também o António Alberto, o Virgílio e o Tatonai. Esta era a malta da minha rua
e os laços que criámos ainda perduram nos dias de hoje.
Desembocava a minha rua numa zona onde, num
perímetro mais ou menos pequeno, havia cinco tabernas. E para que o leitor
menos familiarizado com estes nomes e este local da cidade se possa situar
dir-lhe-ei que se trata do espaço vizinho da «Fábrica das Histórias», a
nascente do Tribunal. Era a taberna da Ti
Emília Popó (onde trabalha um canalizador e há pouco tempo havia um
quiosque), cujo irmão Jaime Pópó, sapateiro, tinha em mim o seu melhor cliente,
pois – não tendo sido ainda inventados os sapatos de ténis – as meias solas gastavam-se
em pouco tempo. Era a taberna do Santo
Antoninho, onde se encontra o café ‘Oceano’. Era a taberna do Zé Pequeno, onde hoje existe um cartório.
E ainda a taberna do Zézinho do Casão,
onde fica o restaurante ‘Adélia’. Para não falar da taberna da viúva do Zé Roberto que ficava ali à
ilharga, a um passo da minha casa. Ao lado da taberna do Zé Pequeno havia a mercearia do Ti Carlos (actualmente, a
Sotopal) onde íamos comprar os rebuçados da bola, sempre na esperança de nos
calhar a bola de catchu.
A vida corria lenta, a preto e branco, como nos
filmes do neo-realismo italiano. Não havia semana-inglesa, nem reformas, nem se
falava de «estado social». Num tempo em que, só no primeiro dia, os pais
levavam os filhos à escola, e diziam aos professores que se os meninos se
portassem mal lhes chegassem a roupa ao pêlo. Como é diferente do tempo de hoje
em que são os familiares que invadem as escolas para baterem nos professores!
Em frente à taberna do Zé Pequeno era o local da
venda da batata, um espaço rectangular delimitado por um muro e um lancil,
óptimo para a prática do futebol. Nesse sítio havia um urinol e um chafariz,
hoje desaparecidos. Posteriormente a venda da batata transferiu-se para a praça
Machado dos Santos, ainda hoje com o nome popular de ‘Praça da Batata’.
Nessa época dois acontecimentos vieram emoldurar a
vida desportiva do burgo. A inauguração do ringue do Sporting de Torres, com a
presença dos nossos campeões de hóquei em patins: o Emídio Pinto, o Raio, o
Edgar, o Jesus Correia e o Correia dos Santos. Foi a vinda desses jogadores que
motivou a rapaziada a ir para o Pátio Alfazema (também conhecido por ‘Caldeira’)
jogar hóquei, mas sem patins, e com
uns sticks manhosos feitos de uns paus e pregos. O outro acontecimento foi o
arranjo do Jardim da Graça, pelo ano de 1954, em que o coreto deu lugar ao
obelisco. E o que mais apreciámos foi a autêntica pista de atletismo, em terra
batida – que ainda lá está, e cujo desenho corresponde ao empedrado que
circunda o Jardim da Graça – onde realizávamos grandes provas de velocidade.
A memória é a faculdade de saber esquecer. E porque
é selectiva depende da maneira de ser e estar de cada um. Mas sempre na
convicção e na expectativa, ao reflectirmos sobre a nossa história individual, de
poder ser entendida como parcela de um património social comum.
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Nº 43 - publicado em 17 de Maio de 2013
EU
NASCI NO CENTRO HISTÓRICO
(1ª
Parte)
NINÉU
É
verdade, eu nasci no Centro Histórico, quando Torres Vedras pouco mais era que
o dito ‘Centro’. A Várzea acabava na Rua Álvaro Galrão, a Rua Teresa de Jesus
Pereira estava longe do seu nascimento e ir ao Lar de S. José era uma aventura,
pois ficava muito fora de portas.
Vou
mergulhar na infância, fazendo um apelo à memória, pois a memória traz-nos a
vida anterior, mas também a vida interior feita de afectos e sentimentos. O que
eu quero trazer aqui é um testemunho pessoal e despretensioso desse meu tempo,
isto é, fazer novamente ressurgir os sítios e os nomes de pessoas pouco
lembradas ou já esquecidas.
Nasci na Rua dos Cavaleiros da
Espora Dourada. Nasci em casa, como era costume nesse tempo, ao contrário do
que acontece hoje, mercê de novas condições sociais, económicas e científicas. A
minha rua, antiga Rua dos Mercadores, parte do cimo das escadinhas junto à zona
do castelo e vai desembocar na Porta da Várzea, a um passo da actual ‘Casa das
Histórias’. O traçado mantém-se intacto – ligando dois bairros com grandes
pelejas futebolísticas, os castelhanos e os marroquinos – apesar da alteração
do casario e, obviamente, dos moradores que agora o habitam.
Caminhando do fim das escadinhas em
direcção à Várzea, do lado direito morava o Josué, saxofonista nas horas vagas,
mas não sei bem se ele pertencia à orquestra ‘Os Relâmpagos’, ou à sua rival
‘Os Lusitanos’ em que o meu pai era baterista, orquestras de metais ao bom
estilo de Glen Miller. Em frente tinha o José Correia uma oficina de
marceneiro. Continuando do lado direito havia a ‘Casa do Patim’, uma casa
senhorial onde se instalava a comitiva Real na passagem por Torres Vedras – e,
no meu tempo de infância, servindo de depósito da Casa Hipólito. Seguiam-se umas
casas baixinhas, vivendo, numa delas, a menina Zulmira, cinquentona, que alugava
os fatos de anjinho para as meninas levarem nas procissões. Ainda do lado
direito aparecia uma correnteza de casas baixas que davam para um largo onde a
galera do Clemente estacionava – mesmo em frente à porta da igreja de S. Tiago.
Ainda lá continua o prédio da moagem. Nesse mesmo largo, ao centro, existiam
duas grandes palmeiras. Prosseguindo na Rua Cavaleiros da Espora Dourada
encontramos um armazém da Casa Hipólito, onde morava no primeiro andar a pessoa
com mais posses da minha rua, o António Hipólito Júnior. Mais uma casa de
rés-do-chão do Ti Augusto e lá está o prédio onde eu nasci, número 9, com a sua
fachada ainda intacta. No primeiro piso, e a meu lado, vivia o Ti Faustino, com
um talho na praça; no piso de cima moravam dois construtores civis, o Zé
Milhariço e o António Ubaldo, velhas glórias do Torreense. Seguiam-se mais umas
casas baixas e um albergue onde pernoitavam pessoas de fracas posses.
Este
panorama, descrito de um modo sucinto, dá-nos a imagem de uma rua com muito
movimento, devendo-se isso, entre outras razões, ao facto das famílias serem
muito numerosas. A existência do filho único era coisa rara nessa época. Havia
casas muito pequenas, só com duas divisões, onde permaneciam um casal com cinco
filhos. Por exemplo, nos últimos trinta metros desta rua, só em três casas
viviam treze jovens. Estávamos no pós-guerra, e era usual muitos meninos
andarem descalços e com fundilhos nos calções. Não havia televisão e a rua era
o espaço de socialização por excelência.
± Texto escrito ao
abrigo do antigo acordo ortográfico
Gostei de ler estas memórias do Ninéu... Algumas dizem-me muito, mesmo sendo mais novo.
ResponderEliminarEu também nos anos 60 e 70 vivi intensamente a minha juventude, em lugares como estes da então vila de Torres Vedras, infância passada para norte, para lá do rio sizandro, no Choupal das minhas memórias