S.
Gonçalo, Padroeiro de Torres Vedras
Luís Filipe Rodrigues
(texto)
J. P. Sobreiro (selecção de imagens)
Pintura Quinhentista de autor e proveniência desconhecidos, representando S. Gonçalo encimado por uma cartela com partitura musical. Patente na exposição do Museu Municipal (Nov. 2022 a Maio 2023)
Tudo ou quase tudo é
incerto na vida de S. Gonçalo. Incerto e inverosímil. Desconhece-se o apelido,
o nome dos pais e da sua ascendência, como a data exacta do nascimento e da morte.
Tudo parece ter ficado no domínio da lenda – tal ocorrendo a grandes mestres da
humanidade, como Confúcio ou Sócrates ou Buda.
O que se regista, então é uma tentativa de percurso biográfico, sabendo-se
que as informações recolhidas pelos seus principais biógrafos, duzentos anos depois,
– Frei Aleixo de Menezes e Frei António da Purificação – tiveram como principal
referência e ponto de apoio a transmissão oral.
É verdade. Tudo permanece
na penumbra. Por exemplo, o próprio ano do nascimento, pois só no século XVIII
foi referida a data de 1360, devido a nesse final de século começar a ser
instruído o processo de beatificação, requisito para a construção de uma
biografia. Ou na penumbra permanece o ano exacto da morte, havendo biógrafos
que apontam a era de 1445. E também sobre os seus ascendentes, sendo certo que
Gonçalo nasceu em Lagos no seio de uma família de pescadores, honesta e temente
a Deus. E educado segundo os princípios cristãos.
Nascido em Lagos, muito
cedo sentiu dentro de si um chamamento. Atraído por essa voz interior partiu para
Lisboa na companhia de parentes. Depois de bater à porta de alguns conventos
apresentou-se ao prior da Graça por quem foi recebido e aceite. O convento e a igreja da Graça foram fundados em finais do
século XIII, para os frades da Ordem dos Agostinianos Eremitas, conhecida por
Ordem dos Gracianos, no largo da Graça, em Lisboa.
Depois de
frequentar a universidade – ao tempo
instalada no actual bairro das Escolas Gerais, em Alfama – recusa o título de doutor em Teologia, preferindo ficar apenas
com o grau de pregador, com o qual dá início à sua vida apostólica. Pregador
eloquente e virtuoso, frade muito zeloso e atento aos problemas da Ordem
mendicante, os seus superiores encontraram nele alguém talhado para missões de
maior responsabilidade.
Deste modo, é
enviado para a Estremadura, como prior do Convento de São
Lourenço, actual freguesia de Miragaia, concelho da
Lourinhã, aí permanecendo dois anos. Por ser um dos mais pobres da Ordem foi
extinto e abandonado em meados do século XVI. Embora não restando dele quaisquer
vestígios, no mesmo local terá sido erguida a igreja de S. Lourenço dos Francos
ou igreja do Convento dos Agostinhos, um templo rural com características da
arquitectura do renascimento estremenho, objecto de sucessivos restauros até
aos dias de hoje.
Depois da Estremadura regressa
a Lisboa. Neste período, em que preside aos destinos do Convento, é elevado a
Vigário Geral, e nessa função apresentado como Reformador da Província. Quatro
anos depois ruma para longe, com a missão de dar seguimento às grandes obras do
Convento da Graça, em Santarém, que fariam dele uma das joias da Ordem e onde foi sepultado o descobridor do
Brasil, Pedro Álvares Cabral.
Cumprida a tarefa, e
findo o priorado, é enviado para Torres Vedras onde permanece 10 anos, até à
sua morte, em 1422. O Convento, contruído por volta de 1380, ocupava o lugar
fronteiro à igreja de Santiago, na mais movimentada rua medieval. Era aí, à porta do mosteiro, que tantas
vezes frei Gonçalo exercia o seu múnus pastoral e apostólico ao cruzar-se com
as gentes que vinham da faina dos campos, deixando uma imagem de paciência, bondade, humildade e sabedoria. Ou
catequizando com desvelo os mais novos. Ou de alforge às costas, por caminhos e
lugares da região, onde se deslocava a pedir esmola, a dar bons conselhos, a
espalhar a Palavra de Deus.
No interior do convento – unum inter pares, um frade entre os
outros, prestando as tarefas mais humildes e serventuárias, como lavar os pés
aos hóspedes e peregrinos, varrer o chão, arrumar as oficinas – Frei
Gonçalo tinha a missão de
governar, de tratar de assuntos de organização e provedoria. Conta-se que um
dia se deslocou a Lisboa, a pé, implorando
apoio junto do arcebispo, seu velho amigo. Estamos em 1413. Foi bem sucedido em
tal demanda, pois na despensa rareavam os mantimentos necessários para
satisfazer as exigências do Capítulo Provincial ali reunido. Para além de no refúgio da sua cela se dedicar à meditação,
a copiar livros de cantochão, a compor música sacra, a fazer iluminuras que
serviam para decorar os livros.
Sua fama de milagreiro vem de longe, pois já em vida é tido como taumaturgo, dotado de um poder admirável, fruto da fé e da confiança que o povo depositava na sua palavra, tomando-o, assim, como intermediário de Deus. Mas é depois da sua morte que cresce essa aura de santidade testemunhada por inúmeros episódios miraculosos, devidamente autenticados.
Um dos mais relevantes –
documentado num dos oito painéis de azulejo expostos na antiga portaria do convento,
hoje designada sala de S. Gonçalo – destaca o Santo, já glorioso, a salvar um
sobrinho, naufragado no mar, e a mandá-lo visitar e orar na sua sepultura em
Torres Vedras. A notícia de tal milagre espalhou-se velozmente pela região, a
ponto de os pescadores de Lagos o invocarem por seu padroeiro.
D. João II, seu grande
devoto, conhecedor dos feitos extraordinários obtidos por intercessão do Santo,
enviou do Algarve uma carta datada de 26 de Setembro de 1495, e endereçada à
Câmara Municipal de Torres Vedras, «exaltando
esta vila e chamando-lhe povo abençoado, pela glória de possuir os ossos do
santo taumaturgo». Em consequência desta missiva a Câmara proclamou a 13 de
Outubro desse ano S. Gonçalo «Defensor e Padroeiro da Vila e seu termo», com
o voto de assistir, no dia da comemoração do seu falecimento, à Missa anual.
Existe cópia do documento, em que se exprime tal voto, no arquivo da câmara
municipal, retirado de uma certidão da época, pois que o livro original ardeu
num incêndio.
A partir daquela data, S.
Gonçalo passou a ser venerado como padroeiro de Torres Vedras. O culto foi-se
propagando e o principal gesto impulsionador
deste culto foram as sucessivas transladações dos seus restos mortais. E houve
cinco, sendo a segunda a mais expressiva – com a transladação do cofre contendo os ossos do santo, percorrendo as
ruas da vila – no ano em que o
edifício velho começou a ser demolido e transferido para o local de hoje, devido
às permanentes cheias do rio Sizandro. A quinta e derradeira transladação
acontece em 15 de Novembro de 1784 para o primeiro altar à esquerda de quem
entra na igreja da Graça, em cumprimento de um voto de acção de graças pela
cura de uma chaga que D. Pedro III, o príncipe consorte da rainha Dona Maria I,
teve num joelho.
Ao celebrarmos – em articulação com a cidade de Lagos – os 600 anos da morte de S. Gonçalo, cumpre evocar a memória de alguém que marcou gerações de crentes pelo seu amor entranhado à Igreja, deixando como legado um olhar iluminante e misericordioso, um braço forte e solidário velando sempre pelos mais pobres e desprotegidos.
(Por
opção do autor, texto não segue as normas do novo Acordo Ortográfico)
para um roteirO da vida de S.
gonçalo
– Nasce em Lagos, em 1360,
no local onde, segundo a tradição, agora se
encontra o seu nicho e imagem.
– Em 1380 ingressa na Ordem
dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, convento de Nossa Senhora da Graça, em
Lisboa. Frequenta os ‘Estudos Gerais’. Professa votos perpétuos de pobreza, de
castidade e de obediência.
– Em 1394, é colocado como
prior do Convento de São Lourenço dos Francos, num local ermo, próximo da Lourinhã.
– Em 1404 é prior do convento
de Nossa Senhora da Graça em Lisboa. Nesse período é elevado a Vigário Geral da
Ordem.
– De 1408 a 1412, prior no
convento da Graça em Santarém
– A partir de 1412 prior
do Convento da Graça em Torres Vedras
– 1422, data da fixação da
sua morte. Morre no mosteiro velho, situado na várzea grande, com fama de
santidade.
– Entre 1489 e 1510 foram
autenticados catorze milagres. Tal autenticação foi realizada a partir da
descrição feita pelo frade Leonel, então prior do convento novo de Torres
Vedras, interessado em compulsar tais actos miraculosos para endossar ao
Vaticano.
– Em 1559, ano em
que os restos mortais são transladados para a capela do Hospital de Santo André
ou da Gafaria, situado na entrada sul da vila.
– Em 1580, após a conclusão do convento novo, deu-se uma outra transladação, da
capela de Santo André para a nova igreja.
– Em
1778 é beatificado. O Papa Pio VI autoriza o culto de Beato a Frei Gonçalo, com
honras de Santo em Portugal.
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