Médico radiologista, natural de Torres Vedras, onde reside, Jorge
Rodrigues dedica-se entusiasticamente à criação do Perdigueiro Português na sua
quintinha perto de Dois Portos. É uma paixão que herdou de seu pai, Américo
Rodrigues e que tem aprofundado através do estudo e da investigação sobre
temática cinófila. Reconhecido internacionalmente, é chamado frequentemente a
desempenhar funções de Juiz de provas, seja em exposições caninas, seja em
provas mais especializadas de Cães de Parar. A nosso convite, colabora hoje
nesta página Patrimónios, ciente de que a cinofilia faz parte do nosso património
histórico – tal como o seu texto expressivamente demonstra. | J. Moedas Duarte
PERDIGUEIRO PORTUGUÊS
Joia
viva milenar do nosso património histórico e sócio-cultural
Jorge Rodrigues
O perdigueiro português é um cão
de caça (cão de parar) que integra o 7ºGrupo da Federação Cinológica
Internacional (FCI) e é um dos mais populares e comuns cães entre nós. Para
além disso em face do seu tamanho médio, de pêlo curto, carácter meigo e rústico,
é utilizado também como cão de companhia entre nós e sobretudo no norte da
Europa onde a caça está interdita
Com raízes remotas nos milenares
cães de busca ibéricos que paravam apontando a caça, é uma das raças definidas
e estáveis mais antigas do Mundo, com características morfológicas e funcionais
idênticas às actuais pelo menos há 1000 anos, de acordo com a representação
pictórica e iconográfica disponível. É o único representante actualmente
reconhecido pela FCI do antigo perdigueiro ibérico de pêlo curto que existia no
oeste peninsular.
Ao longo dos séculos foi criado
nos canis reais, da nobreza e do clero e utilizado na busca de caça ferida em
montarias, na caça de altanaria e na caça com rede a lanço. Com a utilização
das armas de fogo na caça, passou a ser usado como cão de parar e de cobro.
Sendo um “produto” do povo
português que o vem criando, seleccionando e moldando há séculos, deste povo
herdou muitas das características sociológicas como a rusticidade, a
adaptabilidade ao clima, à orografia, à maneira de ser do povo português, com
um espírito sofredor e de missão, destacando-se a meiguice, os brandos
costumes, em suma um verdadeiro todo-o-terreno nacional de parcas exigências…
De resto em todas as raças caninas portuguesas não há uma que seja agressiva…
Longa História
Desde o rei Afonso III
(1248-1279) que aos cães destinados a caçar aves, era dado o nome de podengos
de mostra, designação que permanece hoje em Espanha onde o cão de parar é
conhecido por "perro de muestra" [in Ordenações, 1261 -
"...e os açoreiros que levem os podengos..."]. No Livro de Montaria
de D. João I (1357-1433) é mencionado igualmente como podengo de mostra, ou seja,
um cão “humilde e adulador” de "pés pequenos e rápidos" (sufixo engo),
que evidenciava capacidade de parar perante a caça e gozando de grande
prestígio entre os seus utilizadores, sendo penalizado fortemente quem os
molestasse.
Sendo originariamente ibérico
ocidental / português, acompanhou o percurso histórico, sociológico e cultural
do nosso povo. Andou pelo mundo na diáspora, onde originou outras raças de cães
hoje bem mais conhecidas…
Na investigação
histórico/pictórica/iconográfica que temos realizado, encontramos as suas
representações mais antigas numa lápide sepulcral visigótico-moçárabe da Igreja
de S. João Baptista de Tomar (Séc. X), no Testamento Veteres de Sª Cruz
de Coimbra (Séc.XII), no Génesis de uma Bíblia portátil do Séc.XIII
(Biblioteca Nacional de Lisboa) no Livro da Caça do Conde de Foix (séc.XIV).
Nos nossos barcos, provavelmente
e junto com o cão de água português (ajudante na faina da pesca) com o cão de
gado transmontano e o cão de Castro Laboreiro (cães protectores do gado
embarcado) o perdigueiro (auxiliar na caça em terras a desbravar) terá chegado
à terra do Labrador (de João Fernandes Lavrador, açoreano donatário da terra a
que deu o nome – onde provavelmente terá contribuído para a génese do retriever
do Labrador (estudos genéticos a decorrer…), cães que os ingleses trouxeram
quando lá chegaram. Surge representado num quadro do Museu do Prado em Madrid
acompanhando o imperador Carlos V e Isabel de Portugal (séc.XVI) passou pelo
Brasil (expedição de caça do Coronel Sampaio e Sousa) e pela Índia (algodão
bordado - Bengala - Séc.XVII-Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa) e chegou
ao Japão (está representado nos biombos NamBan e no rol dos bens desembarcados
em Nagasáqui na primeira nau que aí aportou no séc. XVI consta um casal de
perdigueiros). No séc. XVII chegou a Inglaterra levado pelo séquito da rainha
Catarina de Bragança (figura num quadro de caça acompanhando o rei Carlos II,
seu marido).
É curioso que no reinado de D. Sebastião
(Séc. XVI) era comum (ainda que proibido) o seu uso pelas classes populares que
a estes perdigueiros recorriam para mitigar as fomes que em tempo de
descobertas grassavam entre nós. O povo invadia pela calada da noite as coutadas reais onde causava
grandes danos cinegéticos. No «Regimento das Coutadas de Lisboa e seu termo»
(1557-1578) aparece pela primeira vez o termo perdigueiro, designando um cão
para a caça à perdiz. Neste Regimento eram penalizados gravemente os seus
possuidores não autorizados e que fossem reincidentes, com uma pena de dois
anos de degredo nas galés...
A partir do século XVIII
tornou-se conhecido e apreciado pela colónia mercantil inglesa do norte de
Portugal ligada ao vinho do Porto e muitos exemplares foram enviados para
Inglaterra, onde constituíram a base do Pointer inglês. Sydenham Edwards (in Cinographia
Britannica de 1800) afirmava ter esse pointer “espanhol” (leia-se ibérico,
já que há muito tempo a Península Ibérica tinha dois Estados distintos) sido
introduzido no seu país por um negociante português do Porto, numa época assaz
recente...
Hoje os estudos genéticos mais
recentes e fiáveis a decorrer admitem fortemente o contributo genético do
perdigueiro português na formação do pointer inglês, dos setters inglês e
irlandês (provavelmente através da variedade de pêlo comprido do perdigueiro
ibérico, hoje muito rara no perdigueiro português e nunca reconhecida
oficialmente, embora existam ainda alguns exemplares…)
Mas continua a estar representado
em objectos de arte (jarra pintada à mão por D.Fernando II de Saxe-Coburgo,
Palácio da Pena - Sintra), no quadro do Rei D.Luis e dos príncipes trajando de
caça no Palácio da Ajuda, Lisboa), numa pintura de uma jornada de caça de um
inglês no Douro (Quinta de Gatão, Douro) ou em cerâmica artística da Real
Fábrica do Rato (Palácio Pimenta, Lisboa).
Nos fins do Séc. XIX coincidindo
com os conflitos sociais e políticos do fim da monarquia-primeira república,
sofreu algum declínio, mercê de convulsões sociais graves e de novos gostos e
contactos com o exterior, com a ascensão de uma burguesia endinheirada que dava
projeção a raças estrangeiras então em moda.
No primeiro quartel do Século XX
imbuídos de um espírito nacionalista em vigor na época, ilustres portugueses
ligados ao património português vivo (equinos, bovinos, ovinos, caprinos,
suínos e caninos) e com algum apoio dos serviços estatais preocupados com a
recuperação e salvaguarda do nosso património vivo, percorreram o continente e
ilhas de lés a lés, procedendo à inventariação, registo, preservação e
reconhecimento de todas as raças autóctones que existem na actualidade. No caso
dos cães apenas o sabujo português, o galgo lusitano e o “rabo-torto” da
Terceira não puderam ser preservados.
No caso do perdigueiro alguns
criadores deram início a esse esforço a partir dos núcleos conservados puros
sobretudo no norte, tendo sido fundado o Livro Português de Origens em 1932,
elaborado o primeiro Estalão da Raça (Standard) em 1931 e reconhecido
internacionalmente como Standard Oficial da raça em 1938 (autor Prof. Manuel
Fernandes Marques), estalão que sofreu ligeiras actualizações em 1962 (redução
de todas as cores então autorizadas para o amarelo em três tonalidades e o
castanho) e em 2004 (apenas o amarelo nas tonalidades claro, comum e escuro).
Com a revolução de Abril de 1974
e as alterações sócio políticas decorrentes, o perdigueiro, a exemplo das
restantes raças autóctones, sofreu novo declínio encontrando-se então muito
abastardado e “esquecido” por esses tempos…
Sendo uma raça autóctone multisecular e geneticamente dominante, foi de novo possível com o contributo de criadores, caçadores e serviços oficiais a partir do início dos anos oitenta do século XX voltar à velha forma e proceder à sua recuperação e a uma forte divulgação nacional e internacional da raça, hoje presente nos cinco continentes e com inúmeros criadores na Europa, nos Estados Unidos da América e no Brasil, que mantêm o padrão definido pelo Standard da raça. Estará, pois, salvo da extinção, quanto mais não seja pelo contributo dos criadores estrangeiros…
Dada a ligação por várias décadas
de Torres Vedras à recuperação, preservação, divulgação e investigação desta
raça canina através de um criador (afixo FCI “de Torres”) e porque esta milenar
joia viva integra o nosso património genético, cultural e histórico, foi em boa
hora que a Câmara Municipal de Torres Vedras aceitou a oferta de uma estátua do
Perdigueiro Português (última obra de Mestre Augusto Cid) que desde 11 de
Novembro de 2016 integra o património cultural da cidade, no renovado Parque do
Choupal.
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