08 janeiro 2023

PERDIGUEIRO PORTUGUÊS - Jornal BADALADAS de 28 OUTUBRO 2022

 

Médico radiologista, natural de Torres Vedras, onde reside, Jorge Rodrigues dedica-se entusiasticamente à criação do Perdigueiro Português na sua quintinha perto de Dois Portos. É uma paixão que herdou de seu pai, Américo Rodrigues e que tem aprofundado através do estudo e da investigação sobre temática cinófila. Reconhecido internacionalmente, é chamado frequentemente a desempenhar funções de Juiz de provas, seja em exposições caninas, seja em provas mais especializadas de Cães de Parar. A nosso convite, colabora hoje nesta página Patrimónios, ciente de que a cinofilia faz parte do nosso património histórico – tal como o seu texto expressivamente demonstra. | J. Moedas Duarte


PERDIGUEIRO PORTUGUÊS

Joia viva milenar do nosso património histórico e sócio-cultural 

Jorge Rodrigues

O perdigueiro português é um cão de caça (cão de parar) que integra o 7ºGrupo da Federação Cinológica Internacional (FCI) e é um dos mais populares e comuns cães entre nós. Para além disso em face do seu tamanho médio, de pêlo curto, carácter meigo e rústico, é utilizado também como cão de companhia entre nós e sobretudo no norte da Europa onde a caça está interdita

Com raízes remotas nos milenares cães de busca ibéricos que paravam apontando a caça, é uma das raças definidas e estáveis mais antigas do Mundo, com características morfológicas e funcionais idênticas às actuais pelo menos há 1000 anos, de acordo com a representação pictórica e iconográfica disponível. É o único representante actualmente reconhecido pela FCI do antigo perdigueiro ibérico de pêlo curto que existia no oeste peninsular.

Ao longo dos séculos foi criado nos canis reais, da nobreza e do clero e utilizado na busca de caça ferida em montarias, na caça de altanaria e na caça com rede a lanço. Com a utilização das armas de fogo na caça, passou a ser usado como cão de parar e de cobro.

Sendo um “produto” do povo português que o vem criando, seleccionando e moldando há séculos, deste povo herdou muitas das características sociológicas como a rusticidade, a adaptabilidade ao clima, à orografia, à maneira de ser do povo português, com um espírito sofredor e de missão, destacando-se a meiguice, os brandos costumes, em suma um verdadeiro todo-o-terreno nacional de parcas exigências… De resto em todas as raças caninas portuguesas não há uma que seja agressiva…

 

Perdigueiro em paragem

Longa História

Desde o rei Afonso III (1248-1279) que aos cães destinados a caçar aves, era dado o nome de podengos de mostra, designação que permanece hoje em Espanha onde o cão de parar é conhecido por "perro de muestra" [in Ordenações, 1261 - "...e os açoreiros que levem os podengos..."]. No Livro de Montaria de D. João I (1357-1433) é mencionado igualmente como podengo de mostra, ou seja, um cão “humilde e adulador” de "pés pequenos e rápidos" (sufixo engo), que evidenciava capacidade de parar perante a caça e gozando de grande prestígio entre os seus utilizadores, sendo penalizado fortemente quem os molestasse.

Sendo originariamente ibérico ocidental / português, acompanhou o percurso histórico, sociológico e cultural do nosso povo. Andou pelo mundo na diáspora, onde originou outras raças de cães hoje bem mais conhecidas…

Na investigação histórico/pictórica/iconográfica que temos realizado, encontramos as suas representações mais antigas numa lápide sepulcral visigótico-moçárabe da Igreja de S. João Baptista de Tomar (Séc. X), no Testamento Veteres de Sª Cruz de Coimbra (Séc.XII), no Génesis de uma Bíblia portátil do Séc.XIII (Biblioteca Nacional de Lisboa) no Livro da Caça do Conde de Foix (séc.XIV).

Nos nossos barcos, provavelmente e junto com o cão de água português (ajudante na faina da pesca) com o cão de gado transmontano e o cão de Castro Laboreiro (cães protectores do gado embarcado) o perdigueiro (auxiliar na caça em terras a desbravar) terá chegado à terra do Labrador (de João Fernandes Lavrador, açoreano donatário da terra a que deu o nome – onde provavelmente terá contribuído para a génese do retriever do Labrador (estudos genéticos a decorrer…), cães que os ingleses trouxeram quando lá chegaram. Surge representado num quadro do Museu do Prado em Madrid acompanhando o imperador Carlos V e Isabel de Portugal (séc.XVI) passou pelo Brasil (expedição de caça do Coronel Sampaio e Sousa) e pela Índia (algodão bordado - Bengala - Séc.XVII-Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa) e chegou ao Japão (está representado nos biombos NamBan e no rol dos bens desembarcados em Nagasáqui na primeira nau que aí aportou no séc. XVI consta um casal de perdigueiros). No séc. XVII chegou a Inglaterra levado pelo séquito da rainha Catarina de Bragança (figura num quadro de caça acompanhando o rei Carlos II, seu marido).

É curioso que no reinado de D. Sebastião (Séc. XVI) era comum (ainda que proibido) o seu uso pelas classes populares que a estes perdigueiros recorriam para mitigar as fomes que em tempo de descobertas grassavam entre nós. O povo invadia pela calada  da noite as coutadas reais onde causava grandes danos cinegéticos. No «Regimento das Coutadas de Lisboa e seu termo» (1557-1578) aparece pela primeira vez o termo perdigueiro, designando um cão para a caça à perdiz. Neste Regimento eram penalizados gravemente os seus possuidores não autorizados e que fossem reincidentes, com uma pena de dois anos de degredo nas galés...

A partir do século XVIII tornou-se conhecido e apreciado pela colónia mercantil inglesa do norte de Portugal ligada ao vinho do Porto e muitos exemplares foram enviados para Inglaterra, onde constituíram a base do Pointer inglês. Sydenham Edwards (in Cinographia Britannica de 1800) afirmava ter esse pointer “espanhol” (leia-se ibérico, já que há muito tempo a Península Ibérica tinha dois Estados distintos) sido introduzido no seu país por um negociante português do Porto, numa época assaz recente...

Hoje os estudos genéticos mais recentes e fiáveis a decorrer admitem fortemente o contributo genético do perdigueiro português na formação do pointer inglês, dos setters inglês e irlandês (provavelmente através da variedade de pêlo comprido do perdigueiro ibérico, hoje muito rara no perdigueiro português e nunca reconhecida oficialmente, embora existam ainda alguns exemplares…)

Mas continua a estar representado em objectos de arte (jarra pintada à mão por D.Fernando II de Saxe-Coburgo, Palácio da Pena - Sintra), no quadro do Rei D.Luis e dos príncipes trajando de caça no Palácio da Ajuda, Lisboa), numa pintura de uma jornada de caça de um inglês no Douro (Quinta de Gatão, Douro) ou em cerâmica artística da Real Fábrica do Rato (Palácio Pimenta, Lisboa).

Nos fins do Séc. XIX coincidindo com os conflitos sociais e políticos do fim da monarquia-primeira república, sofreu algum declínio, mercê de convulsões sociais graves e de novos gostos e contactos com o exterior, com a ascensão de uma burguesia endinheirada que dava projeção a raças estrangeiras então em moda.

No primeiro quartel do Século XX imbuídos de um espírito nacionalista em vigor na época, ilustres portugueses ligados ao património português vivo (equinos, bovinos, ovinos, caprinos, suínos e caninos) e com algum apoio dos serviços estatais preocupados com a recuperação e salvaguarda do nosso património vivo, percorreram o continente e ilhas de lés a lés, procedendo à inventariação, registo, preservação e reconhecimento de todas as raças autóctones que existem na actualidade. No caso dos cães apenas o sabujo português, o galgo lusitano e o “rabo-torto” da Terceira não puderam ser preservados.

No caso do perdigueiro alguns criadores deram início a esse esforço a partir dos núcleos conservados puros sobretudo no norte, tendo sido fundado o Livro Português de Origens em 1932, elaborado o primeiro Estalão da Raça (Standard) em 1931 e reconhecido internacionalmente como Standard Oficial da raça em 1938 (autor Prof. Manuel Fernandes Marques), estalão que sofreu ligeiras actualizações em 1962 (redução de todas as cores então autorizadas para o amarelo em três tonalidades e o castanho) e em 2004 (apenas o amarelo nas tonalidades claro, comum e escuro).

Com a revolução de Abril de 1974 e as alterações sócio políticas decorrentes, o perdigueiro, a exemplo das restantes raças autóctones, sofreu novo declínio encontrando-se então muito abastardado e “esquecido” por esses tempos…

Sendo uma raça autóctone multisecular e geneticamente dominante, foi de novo possível com o contributo de criadores, caçadores e serviços oficiais a partir do início dos anos oitenta do século XX voltar à velha forma e proceder à sua recuperação e a uma forte divulgação nacional e internacional da raça, hoje presente nos cinco continentes e com inúmeros criadores na Europa, nos Estados Unidos da América e no Brasil, que mantêm o padrão definido pelo Standard da raça. Estará, pois, salvo da extinção, quanto mais não seja pelo contributo dos criadores estrangeiros…

Estátua no Choupal de Torres Vedras (Foto JMD)

Dada a ligação por várias décadas de Torres Vedras à recuperação, preservação, divulgação e investigação desta raça canina através de um criador (afixo FCI “de Torres”) e porque esta milenar joia viva integra o nosso património genético, cultural e histórico, foi em boa hora que a Câmara Municipal de Torres Vedras aceitou a oferta de uma estátua do Perdigueiro Português (última obra de Mestre Augusto Cid) que desde 11 de Novembro de 2016 integra o património cultural da cidade, no renovado Parque do Choupal.

 


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