Memória
de uma escola nocturna, em 1872-1873,
na
freguesia de S. Pedro da Cadeira
Ao longo do século XIX, as mudanças
políticas propiciadoras do advento do liberalismo acabaram também por
contribuir para algumas alterações no ensino. Numa fase primeira desse século,
o mestre das primeiras letras foi
sendo olhado como alguém que devia ser formado em instituições próprias a fim
de obter os conhecimentos e as técnicas da profissão a desempenhar. Data desse
período a sucessiva discussão e desenvolvimento dos três métodos de ensino – de ensino mútuo, de leitura repentina e a
cartilha maternal – que pretendiam ser a solução para os problemas
educacionais[1].
De igual forma, o debate em
torno da alfabetização começou a ganhar uma maior proeminência entre os que se
preocupavam com o futuro da vida nacional. Justino Pereira de Magalhães
apresenta para meados do século do século XIX uma taxa que se situava acima dos 75%, se referenciada a ambos os
sexos. Salienta o mesmo autor que a redução dessa taxa só atingiria um
valor inferior a 50% em meados do século XX[2]. Se nos circunscrevermos
ao concelho de Torres Vedras, encontraremos igualmente em Venerando Matos
valores de analfabetismo que, ainda hoje, nos confrangem: 1878 – 86,07%, 1890 –
84,71%, 1900 – 83,31%[3].
Compreender-se-ão, à luz
destes, essoutros números que D. Antonio da Costa, em 1870, lançava aos
políticos nacionais como chamada de atenção para o que sucedia na Europa do seu
tempo: Em Hespanha ha 1 escola para 600 habitantes, em França, Baviera,
Italia, Hollanda e Inglaterra 1 para 500 e 400. Na Suiça 1 para 300. Nos
Estados Unidos 1 para 160. Na Prussia 1 para 150. Em Portugal 1 escola para
1:100 habitantes[4].
A irregularidade da frequência
e a falta de aproveitamento verificado eram os factores que penalizavam os já
de si poucos alunos que frequentavam as escolas em Portugal. Os professores de instrução primária desta
segunda metade do século XIX bem tentavam ultrapassar a situação: forneço a muitos d’estes papel, tinta,
pennas e livros, e no meio d’estes sacrifícios a frequencia continua muito
irregular. Ha alunos que em todo o anno não chegam a frequentar um mez[5].
Todavia não eram apenas os
mais novos que mereciam o olhar atento dos pedagogos nacionais. Os adultos
analfabetos ou minimamente alfabetizados foram concentrando alguma atenção
sobre si. Dessa forma, assiste-se à criação de cursos nocturnos, procurando dar
instrução às pessoas que precisavam de trabalhar durante o dia para garantir o
sustento diário. O ministro do reino, Martens Ferrão, em 1866, instava junto
dos governadores civis para que abrissem cursos nocturnos nas várias
localidades, sustentados por meio de
gratificações das camaras municipaes e juntas de parochia[6].
O inicio foi prometedor: em 1867, abriam-se no reino português 545 cursos
nocturnos. Todavia poucos subsistiram. Em 1870, lamentava-se a extinção da
quase totalidade, ficando muitas das gratificações por pagar aos respectivos
professores[7].
Uma
escola nocturna em Portela de Belmonte
O acompanhamento de meninos na
cadeira das primeiras letras, na
freguesia de S. Pedro da Cadeira, encontra-se atestado, em sequência, desde
1822, por mestres laicos, de que o reverendo João da Anunciação será, em 1862,
a excepção[8]. Os valores da frequência
encontram-se de acordo com a realidade nacional que antes referimos.
Em pesquisas no Arquivo Municipal
de Torres Vedras encontrámos, porém, uma breve memória referente a um curso
nocturno que funcionou no ano lectivo de 1872-1873 no lugar de Portela de
Belmonte daquela freguesia. Ter-se-iam inscrito 45 alunos, embora apenas 18
fossem de maior regularidade. As idades variavam entre os 16 e os 30 anos. Desses,
um, frequentava em paralelo as aulas diurnas e as nocturnas. Criado em 2 de
Dezembro de 1871, funcionou entre os meses de Outubro a Março, do ano seguinte,
com um total de 123 lições. Era professor José Francisco d’ Albuquerque auferindo
a gratificação da Câmara Municipal de Torres Vedras de 14:400 réis.
Esse esforço de acompanhar
jovens adultos a completar, ou a iniciar a sua instrução, afastando-os dos efeitos
desastrosos do analfabetismo está aqui bem patente. Sabendo-se como na
ruralidade o trabalho diário requer o contributo de todos os braços
disponíveis, não se estranha que muitos pais não tivessem como prioridade a
instrução dos seus filhos. Era essa a prática então. Caberia, pois, aos poderes
públicos, contribuir para a alteração dessa mentalidade, mas e principalmente
aos professores, que assim o entendiam, lutar tenazmente pela mudança. Atrevemo-nos
a acreditar que seria esse o entendimento de José Francisco d’Albuquerque.
Curiosa a existência desta
memória pois, conjugando-a com outros dados, podemos perceber que José
Francisco d’Albuquerque era o mestre de
primeiras letras que, em 1850, havia sido provido na escola diurna de S.
Pedro da Cadeira e aí continuara pelo menos até 1857 quando outro professor
assumiu a função. Nascido em Lisboa, na freguesia da Lapa, em 1826, veio a
casar, em 1848, com Ludovina da Conceição Reis, natural de Santo Isidoro,
concelho de Mafra. Em 1850 nasceria ao casal um filho – Eduardo Sebastião dos
Reis Albuquerque. Entre 1883/1889 e 1891/1892 seria ele a assegurar o lugar de professor oficial da escola pública do ensino primário do lugar da Coutada, na mesma freguesia.
Posteriormente, caberia à sua filha Laura do Rosário Reis de Albuquerque, em
1913, nessa escola[9],
continuar o longo caminho de serviço público de qualidade e profissionalismo
iniciado pelo avô.
José Francisco d’ Albuquerque
viria a falecer com 69 anos, na Coutada, já viúvo, embora ainda em 1888 tenha
percorrido a freguesia de S. Pedro da Cadeira, acompanhando seu filho Eduardo Albuquerque,
ambos como agentes recenseadores do inquérito agrícola realizado esse ano. As
suas assinaturas são maioritárias face ao muito reduzido número das que os
respondentes apuseram nos boletins – evidência gritante do analfabetismo
existente.
A instrução pública, nos
tempos seguintes, iria continuar a depender do sentido cívico de outros
habitantes da freguesia que lutaram para a concretização dos seus sonhos ao
serviço da comunidade. Não temos notícia que se tenha, mais alguma vez, retomado
este molde do ensino de curso nocturno. Foi este um fugaz episódio, mas que
terá constituído verdadeiro desafio para quem nele se envolveu, permanecendo
hoje como incentivo e memória patrimonial a não esquecer.
Mapa
estatístico da escola nocturna de S.Pedro da Cadeira - 1872 a 1873
[1] António Nóvoa, “Do Mestre-Escola ao
professor do ensino primário. Subsídios para a história da profissão docente em
Portugal (Séculos XV-XX)”, Análise
Psicológica, 3 (V), 1987, pp.413-440.
[2] Justino Pereira de Magalhães, “Ler e
escrever no mundo rural do Antigo Regime. Um contributo para a história da
alfabetização e da escolarização em Portugal”, Análise Psicológica, 4 (XIV), 1996, pp.438-439.
[3] Venerando Aspra de Matos, “O tempo e o
modo na construção de uma vila – Século XIX”, Nova História Local –Torres
Vedras, Carlos Guardado da Silva (coord), Edições Colibri, Câmara Municipal de
Torres Vedras, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Instituto de
Estudos Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano, 2018, p.171.
[4] D. Antonio da Costa, Instrucção Nacional, Imprensa Nacional,
Lisboa, 1870, p.112.
[5] Ibidem,
pp.115-116
[6] Ibidem,
p.121.
[7] Ibidem,
pp.121-123.
[8] Manuel Agostinho de Madeira Torres, Descrição Económica da Vila e Termo de
Torres Vedras, 3ª edição, Edições Colibri/ Câmara Municipal de Torres
Vedras, 2020, p.34, Nota dos Editores da 2ª edição.
[9]
Manuela Catarino, S. Pedro da Cadeira. História, Memórias e
Património de uma freguesia torriense, Junta de Freguesia de S. Pedro da
Cadeira, 2021, pp. 124-125.
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