Página PATRIMÓNIOS no BADALADAS - 25 FEVEREIRO 2022
Nª Srª DOS ANJOS, DO CARVALHAL
HISTÓRIA DE UMA IMAGEM
Joaquim Moedas Duarte (texto e fotos)
Em Abril do ano passado, nesta página PATRIMÓNIOS,
falámos de um “hospital de bens culturais” chamado “Salvaguardar”, a propósito
da imagem de Nossa Senhora dos Anjos que para ali fora levada, a fim de ser
restaurada. Soubemos, há umas semanas, que a imagem regressara à capela do
Carvalhal, freguesia do Turcifal. Lá a fomos ver, na companhia do Padre Paulo,
a quem felicitámos pela iniciativa, felicitação extensiva à comunidade local e
à Câmara Municipal de Torres Vedras que contribuíram com donativos.
A repetida referência a esta imagem, na página
sobre o nosso Património, parece-nos relevante na perspectiva histórica,
artística e patrimonial. Uma imagem, uma igreja, um túmulo e tantos outros bens
materiais são testemunhos do Tempo que passou, habitado por gerações
sucessivas. São memórias que dão espessura ao nosso próprio Tempo, que lhe
conferem identidade cultural e nos ajudam a compreender a nossa forma de habitar
o mundo como comunidade humana.
Esta imagem desafia-nos a entender o percurso histórico que a trouxe até aqui. É o que vamos tentar.
DÁDIVA DA INFANTA DONA MARIA (1521 – 1577)[1]
Torres Vedras foi pertença de rainhas e princesas
portuguesas nos tempos da primeira e segunda dinastias. No terceiro quartel do
século XVI era donatária a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I e da sua terceira
consorte, D. Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V. Em rigor, era
“senhoria donatária dos direitos reais”, de que usufruía por mercê régia. Filha
do mais rico monarca da época e da rainha originária dos poderosos Habsburgos,
a infanta D. Maria era senhora de uma enorme fortuna. Além de Torres Vedras,
possuía também Viseu, que acumulava com privilégios e rendas de proveniência
diversa. Em tempos de ausência de Estado como entidade propiciadora de
financiamentos às comunidades locais, eram os donatários que acorriam aos
pedidos das populações para suprir carências e necessidades. Foi assim que a
Infanta D. Maria financiou a obra urgente de restauro do Chafariz dos Canos,
como o atesta a lápide que encima o arco central, com a data de 1561.
Vivendo em pleno lançamento da Contra-Reforma, – de
que foi, juntamente com seu irmão D. João III, pertinaz defensora – esta
Infanta aplicou grande parte da sua fortuna no estabelecimento e financiamento
de instituições religiosas católicas – conventos, paróquias, igrejas – e apoios
a órfãos, viúvas e carenciados, num tempo em que só a caridade cristã e o
mutualismo corporativo supriam a inexistência de apoios sociais. Nesta linha,
ela fundou, em1570, o convento de Nossa Senhora dos Anjos, no lugar do Barro,
destinado a frades franciscanos arrábidos. A história deste convento é longa e dela
pouco diremos. Interessa-nos, para já, a imagem da sua padroeira, de que
falámos no início deste texto. Um opúsculo, publicado em 1910, que se baseia em
informações do cronista dos Arrábidos, Frei António da Piedade (1728), relata assim: “(a Igreja) foi dedicada a Nª Srª dos Anjos,
título de que era sobremaneira devota a dita infanta D. Maria, que a essa conta
ordenou que o mais perito escultor que então houvesse em Lisboa fizesse com
todo o primor da arte uma imagem de Nª Srª, a que servisse de trono uma nuvem
de anjos e serafins, que a inculcasse como rainha e soberana de todos”.[2]
Segundo o investigador Ruy Ventura, o autor mais
provável desta obra terá sido o flamengo Estácio Matias, a quem a infanta
encomendou também outras imagens.
A imagem que hoje conhecemos parece diferente da
original. Eis o que diz o cronista jesuíta que a viu em 1860 e a descreve em
1910: “A imagem é de talha, de madeira, e
de tamanho natural, em proporções de uma mulher de estatura regular (…), de
excelente escultura, estofada e com as mãos postas levantadas à altura do
pescoço, mas mais para o lado esquerdo, e acompanhada de dois anjos, que de uma
e outra parte mostram voarem com ela ao céu”. Logo de seguida, acrescenta: “Infelizmente, porém, houve quem se
lembrasse de mandar, seguramente com boa intenção, aguarentar a roupagem da
senhora, tirar-lhe o manto esculturado que tinha e era de boa talha, assim como
a peanha, em que lhe servia de trono uma nuvem de anjos e serafins(…). De modo
que ficou a imagem em corpo, não se podendo já expor em público, se não vestida
de manto postiço, que se lhe põe quando se coloca no camarim (tribuna do
altar-mor)”. Desconsoladamente, o padre jesuíta comenta: “A imagem não é da Senhora dos Anjos que aqui conhecemos em 1860 e que
a infanta D. Maria mandara com tanto empenho fazer em Lisboa com o possível
primor. Se ao menos uma reprodução fotográfica nos tivesse ficado dela! Mas nem
disso houve lembrança.”
Quer dizer: aquela é uma imagem truncada, desapossada dos acessórios que lhe conferiam imponência e majestade. De facto, foi essa a impressão que tivemos, quando a vimos há dias, e que o cronista tão bem expressou com aquela frase: “imagem em corpo, não se podendo já expor em público, se não vestida de manto postiço”. Não podemos concluir que a imagem actual não seja a que foi mandada fazer pela infanta dona Maria, mas a verdade é que a eliminação do manto de madeira e dos anjos a tornaram diferente aos olhos de quem a admirara completa. Também é esse o entendimento das comissões de festas do Carvalhal, como verificámos, em 2014, nos preparativos da procissão da festa anual, em 15 de Agosto. A foto mostra a imagem num andor com pequenos anjos aos seus pés, e um manto em tecido que quase a tapa por completo.
VICISSITUDES
DO CONVENTO DO BARRO
Por que motivo a imagem foi para a capela de Nª Srª
da Quietação do Carvalhal, em 1910? O opúsculo do P. A. Cordeiro, que atrás
citámos, invoca uma referência do Santuário
Mariano, de Frei Agostinho de Santa Maria, na qual se recorda a devoção dos
habitantes do Carvalhal a uma imagem de Nª Srª que estava no Barro e à qual
deram o título de Senhora da Saúde. Hipótese a estudar. Seja como for, é a
comunidade cristã do Carvalhal que guarda, preserva e venera a secular imagem que
atravessou os séculos e chegou até nós com a invocação de Nª Srª dos Anjos,
dádiva de uma infanta real no século XVI.
[1] Seguimos de perto as abundantes e rigorosas informações de: D. Maria (1521-1577): uma infanta no
Portugal de quinhentos, Paulo Drumond Braga, Edições Colibri e Câmara
Municipal de Torres Vedras, Lisboa 2012; A
Infanta Dona Maria de Portugal(1521-1577). O Mecenato de uma Princesa
Renascentista, Carla Alferes Pinto, Lisboa, Fundação Oriente, 1998.
[2] Cf.: P. António da Costa Cordeiro S.J., Jubileu do Collegio do Barro (1860-1910) –
Notícia histórica da sua fundação e ministérios até o anno presente, Braga,
1910.
[3] Cf.: Anotadores do livro de Manuel Agostinho Madeira Torres, Descrição histórica e económica da vila e termo de Torres Vedras, 2º Ed., Coimbra, 1862, p. 141 e seguintes.
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