03 janeiro 2021

OS GUADAMECIS DA IGREJA DA MISERICÓRDIA

 PÁGINA "PATRIMÓNIOS" NO JORNAL "BADALADAS"  | 27 NOVEMBRO 2020  | 

OS GUADAMECIS DA IGREJA DA MISERICÓRDIA

Joaquim Moedas Duarte

Continuando a assinalar os 500 anos da fundação da Misericórdia de Torres Vedras (1520), hoje destacamos três peças de grande valor artístico da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras: os frontais dos altares da capela-mor, de couro pintado e lavrado, a que se dá o nome de guadamecis. Contudo, eles não podem ser vistos isoladamente, fazem parte de um conjunto de notável riqueza decorativa.

 

O ALTAR 

Desde a mais distante antiguidade, o altar era uma plataforma elevada onde se faziam sacrifícios à divindade. Encontramo-los na Bíblia judaica e nas praticas greco-romanas do mundo antigo. O altar era o centro das práticas religiosas. A Igreja Católica, ao longo dos seus dois milénios de existência, reformulou o significado e a simbologia do altar, nele concentrando memórias do passado e vivências do presente. Do passado, evoca-se o sacrifício de Cristo no Calvário, altar supremo da Redenção e a ceia de despedida, a última, em que foi instituída a presença eucarística; do presente, celebra-se o encontro dos crentes em redor do altar, mesa de convívio espiritual e de partilha do pão consagrado.

Os templos católicos sempre foram construídos em redor do altar-mor, colocado no lugar mais destacado e proeminente, para onde convergem os movimentos e os olhares dos fiéis. Ao altar-mor associou-se, também, o culto das relíquias dos mártires: os restos mortais de S. Pedro na grande basílica de Roma, os de Santiago em Compostela, os pequenos despojos de outros mártires na pedra de ara que obrigatoriamente ainda hoje se coloca no centro do altar onde se celebra Missa.

A importância do altar explica a prática de concentrar nele as mais exuberantes manifestações das artes decorativas, sobretudo após a renovação do Concílio de Trento, no século XVI e a posterior eclosão do estilo barroco. Peça por excelência do mobiliário religioso, o altar, em forma de mesa fechada, tem a face virada ao público – chamada “frontal” –  decorada com motivos aplicados sobre materiais diversos, seja pedra nua, azulejo ou madeira.

 

 



OS GUADAMECIS DOS FRONTAIS

Na igreja da Misericórdia de Torres Vedras, o altar-mor – onde se glorifica a imagem da Senhora da Misericórdia com o Menino Jesus ao colo – é ladeado por dois altares laterais. Do lado do Evangelho, o de Santo Cristo, ligado ao suplício do Calvário, com os símbolos da Paixão e uma belíssima imagem de Cristo Morto ocultada pelo frontal do altar; do lado da Epístola, à direita, o de Santo António. A parte superior de cada um dos altares é decorada com retábulos de talha dourada, numa exuberância e riqueza decorativas de magnífica opulência visual. Todo o conjunto é do século XVIII, contrastando com a elegância austera dos mármores policromados das paredes e do chão, ao gosto do séc. XVII e de que encontramos semelhança na igreja do Turcifal.

Inicialmente, estes altares, além do já referido esquife com o Senhor Morto, tinham frontais de madeira com imitação de embutidos de mármore, pintados sobre as tábuas. Porém, provavelmente já em fase adiantada do Séc. XVIII, os frontais destes altares foram revestidos de guadamecis.

Franklin Pereira, investigador que mais tem estudado este assunto, elucida: «O termo guadameci [também guadamecil] provém do árabe e significa ornamento floral vivo de cores ou couro assim decorado. A técnica do guadameci é realizada sobre couro de carneiro, cortado num rectângulo; fixa com um mordente, a folha de prata cobre toda a superfície. O desenho, vincado, é pintado com cores de óleos; um verniz, resultante da cozedura de ingredientes vegetais, dá à prata as tonalidades do ouro, e daí a designação de “couros dourados”, apesar do emprego do ouro ser raro». Os rectângulos eram cozidos uns aos outros, dando origem a panejamentos de dimensões variadas, com aplicações diversas: nas paredes dos palácios, em móveis, em frontais de altar, etc. (in: Revista Al Madan, nº 22, Janº 2018, p. 131-146)

Depois de pintado, o couro era “lavrado” ou vincado com punções metálicas de pouco recorte, dando-lhe uma textura de baixo-relevo. Esta técnica, proveniente de países árabes do próximo Oriente, foi aprendida e aplicada com brilhantismo, em Córdova, pelos artesãos da curtimenta de peles, ao longo da Idade Média, tendo-se posteriormente expandido por toda a Europa.

Sendo uma técnica complexa e onerosa, estes couros lavrados são relativamente raros. O caso dos guadamecis da Misericórdia de Torres Vedras reveste-se, pois, de uma notável importância patrimonial, tanto mais quanto eles se conjugam com os elementos decorativos que acima descrevemos.

Hoje, quando entramos nesta igreja, ficamos maravilhados com o brilho do seu interior, bem diferente da atmosfera soturna, escurecida pelo fumo das velas, do tempo em que foi capela mortuária. Mas ela só adquiriu essa expressividade depois das importantes obras de manutenção e restauro que decorreram entre 2003 e 2010 e que orçaram perto de cem mil euros. Confiados à oficina do mestre bracarense das artes decorativas que foi Martinho Lobo Ferreira, os altares e seus frontais foram desmontados e transportados para Braga, onde foram restaurados. Um esforço assinalável que restituiu à Misericórdia de Torres Vedras o antigo esplendor.




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