PÁGINA "PATRIMÓNIOS" NO JORNAL "BADALADAS" | 27 NOVEMBRO 2020 |
OS GUADAMECIS DA IGREJA DA MISERICÓRDIA
Joaquim Moedas
Duarte
Continuando a assinalar os 500 anos
da fundação da Misericórdia de Torres Vedras (1520), hoje destacamos três peças
de grande valor artístico da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras: os
frontais dos altares da capela-mor, de couro pintado e lavrado, a que se dá o
nome de guadamecis. Contudo, eles não podem ser vistos isoladamente, fazem parte
de um conjunto de notável riqueza decorativa.
O ALTAR
Desde a mais distante antiguidade,
o altar era uma plataforma elevada onde se faziam sacrifícios à divindade.
Encontramo-los na Bíblia judaica e nas praticas greco-romanas do mundo antigo.
O altar era o centro das práticas religiosas. A Igreja Católica, ao longo dos
seus dois milénios de existência, reformulou o significado e a simbologia do
altar, nele concentrando memórias do passado e vivências do presente. Do
passado, evoca-se o sacrifício de Cristo no Calvário, altar supremo da Redenção
e a ceia de despedida, a última, em que foi instituída a presença eucarística;
do presente, celebra-se o encontro dos crentes em redor do altar, mesa de
convívio espiritual e de partilha do pão consagrado.
Os templos católicos sempre foram
construídos em redor do altar-mor, colocado no lugar mais destacado e
proeminente, para onde convergem os movimentos e os olhares dos fiéis. Ao
altar-mor associou-se, também, o culto das relíquias dos mártires: os restos
mortais de S. Pedro na grande basílica de Roma, os de Santiago em Compostela,
os pequenos despojos de outros mártires na pedra de ara que obrigatoriamente
ainda hoje se coloca no centro do altar onde se celebra Missa.
A importância do altar explica a
prática de concentrar nele as mais exuberantes manifestações das artes
decorativas, sobretudo após a renovação do Concílio de Trento, no século XVI e
a posterior eclosão do estilo barroco. Peça por excelência do mobiliário
religioso, o altar, em forma de mesa fechada, tem a face virada ao público –
chamada “frontal” – decorada com motivos
aplicados sobre materiais diversos, seja pedra nua, azulejo ou madeira.
OS GUADAMECIS DOS FRONTAIS
Na igreja da Misericórdia de
Torres Vedras, o altar-mor – onde se glorifica a imagem da Senhora da
Misericórdia com o Menino Jesus ao colo – é ladeado por dois altares laterais.
Do lado do Evangelho, o de Santo Cristo, ligado ao suplício do Calvário, com os
símbolos da Paixão e uma belíssima imagem de Cristo Morto ocultada pelo frontal
do altar; do lado da Epístola, à direita, o de Santo António. A parte superior
de cada um dos altares é decorada com retábulos de talha dourada, numa
exuberância e riqueza decorativas de magnífica opulência visual. Todo o
conjunto é do século XVIII, contrastando com a elegância austera dos mármores
policromados das paredes e do chão, ao gosto do séc. XVII e de que encontramos
semelhança na igreja do Turcifal.
Inicialmente, estes altares, além
do já referido esquife com o Senhor Morto, tinham frontais de madeira com
imitação de embutidos de mármore, pintados sobre as tábuas. Porém,
provavelmente já em fase adiantada do Séc. XVIII, os frontais destes altares
foram revestidos de guadamecis.
Franklin Pereira, investigador que
mais tem estudado este assunto, elucida: «O termo guadameci [também guadamecil]
provém do árabe e significa ornamento floral vivo de cores ou couro assim
decorado. A técnica do guadameci é realizada sobre couro de carneiro, cortado
num rectângulo; fixa com um mordente, a folha de prata cobre toda a superfície.
O desenho, vincado, é pintado com cores de óleos; um verniz, resultante da
cozedura de ingredientes vegetais, dá à prata as tonalidades do ouro, e daí a
designação de “couros dourados”, apesar do emprego do ouro ser raro». Os rectângulos
eram cozidos uns aos outros, dando origem a panejamentos de dimensões variadas,
com aplicações diversas: nas paredes dos palácios, em móveis, em frontais de
altar, etc. (in: Revista Al Madan, nº 22, Janº 2018, p. 131-146)
Depois de pintado, o couro era
“lavrado” ou vincado com punções metálicas de pouco recorte, dando-lhe uma
textura de baixo-relevo. Esta técnica, proveniente de países árabes do próximo
Oriente, foi aprendida e aplicada com brilhantismo, em Córdova, pelos artesãos
da curtimenta de peles, ao longo da Idade Média, tendo-se posteriormente
expandido por toda a Europa.
Sendo uma técnica complexa e
onerosa, estes couros lavrados são relativamente raros. O caso dos guadamecis
da Misericórdia de Torres Vedras reveste-se, pois, de uma notável importância
patrimonial, tanto mais quanto eles se conjugam com os elementos decorativos
que acima descrevemos.
Hoje, quando entramos nesta igreja,
ficamos maravilhados com o brilho do seu interior, bem diferente da atmosfera
soturna, escurecida pelo fumo das velas, do tempo em que foi capela mortuária.
Mas ela só adquiriu essa expressividade depois das importantes obras de
manutenção e restauro que decorreram entre 2003 e 2010 e que orçaram perto de
cem mil euros. Confiados à oficina do mestre bracarense das artes decorativas
que foi Martinho Lobo Ferreira, os altares e seus frontais foram desmontados e
transportados para Braga, onde foram restaurados. Um esforço assinalável que
restituiu à Misericórdia de Torres Vedras o antigo esplendor.
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