29 maio 2020

PERSONAGENS HISTÓRICAS TORRIENSES

Página PATRIMÓNIOS
no jornal BADALADAS, de Torres Vedras
em 29 de Maio de 2020

MEMÓRIAS DE DONA GRACIA FROES
E DE SEU FILHO PEDRO AFONSO
Joaquim Moedas Duarte

O Comandante Filipe Mendes Quinto – que em tempos comandou a fragata Hermenegildo Capelo e é actualmente Vice-Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa – procurou-me através do amigo comum Vitor Canas e indagou se Torres Vedras reconhecia o valor de um homem que aqui nasceu e deixou vulto na História nacional: Pedro Afonso, conde de Barcelos, filho bastardo do rei D. Dinis e da dama torriense Dona Gracia Froes.
Como a preservação do Património histórico se faz também pela evocação memorialística de personagens marcantes, aceitei o repto de procurar entender a pertinência da questão e tentar responder.
Que nos dizem sobre isto os velhos historiadores locais, Júlio Vieira e Madeira Torres?
Júlio Vieira, depois de enumerar as diversas visitas e permanências do rei D. Dinis em Torres Vedras, acrescenta:
«D. Dinis passava muitas vezes por esta vila nas suas idas a Leiria.
Foi numa das várias vezes que o rei trovador por aqui esteve, que se enamorou da linda torriense D. Gracia Froes, filha de João Froes ou Froyas e de D. Catarina Domingos Franco, e de cujos amores levados em segredo depois para o termo de Lisboa, próximo a Odivelas, nasceu o famoso D. Pedro, conde de Barcelos, autor do célebre Nobiliário do conde D. Pedro».
Madeira Torres, no qual Júlio Vieira muitas vezes se escora, junta mais pormenores, dos quais destacamos:
«Esta senhora, que nasceu em Torres Vedras, era grandemente abastada, e vindo para Lisboa com seu filho, que se pode presumir ter tido a mesma naturalidade, viveu junto à Sé, e dos seus bens instituiu, e mandou fazer a Capela de S. Gervásio onde jaz enterrada».
Retemos duas informações: por um lado, a referência à formosa dama torriense, Dona Gracia Froes, distinguida pela real líbido com a gestação de um bastardo real; por outro, o fruto desses amores ilícitos, D. Pedro Afonso.
Da primeira personagem pouco sabemos. Algumas fontes mais recentes dão-nos pistas interessantes, que prometemos desenvolver noutra ocasião. Ana Cruz Parra, que estudou as questões da paternidade medieval a partir do caso de D. Dinis, informa-nos que este rei teve seis filhos ilegítimos, todos de mães diferentes e assumidos como seus. Embora não se conheça a data exacta do nascimento, presume que o filho de Gracia Froes foi o primeiro ilegítimo, primogénito e, portanto, mais velho que o herdeiro, futuro rei D. Afonso IV.
A infidelidade conjugal dos reis, naqueles tempos medievos, não tinha o estigma social de hoje. Era essencial garantir descendência e, com ela, a força numérica da linhagem real e consequente poder político e económico. D. Dinis levou, talvez, longe de mais esta tarefa pois, no afã de garantir poder e riqueza ao bastardo preferido – D. Afonso Sanches – suscitou o ciúme do herdeiro legítimo, o que deu origem a uma guerra civil entre pai e filho. É aqui que entra o filho de D. Gracia Froes, D. Pedro Afonso. Homem sensato e culto, abastado e senhor de numerosos vassalos, sofreu adversidades resultantes dessa guerra insana – que o espoliou e obrigou a exilar-se alguns anos em Castela – mas soube aliar-se à Rainha D. Isabel e conseguiu mediar o conflito sangrento até à assinatura de um tratado de paz. Voltou à antiga grandeza e aos seus escritos que o tornaram célebre.

CONDE DE BARCELOS E ESCRITOR DE MÉRITO
D. Pedro Afonso recebeu o título de Conde de Barcelos mas foi em Lalim, concelho de Lamego, onde tinha Paço residencial e uma grande propriedade, que passou os anos finais da sua longa vida – cerca de 75 anos. Faleceu em 1354. No último testamento, determinou que queria repousar no Convento de S. João de Tarouca, ali perto. Ainda em vida, mandou construir o túmulo onde foi inumado. A imponência da estátua jacente e o realismo das cenas de caça, esculpidas nas faces maiores da arca tumular, levaram à classificação deste túmulo como Monumento Nacional.
O conde Pedro Afonso, fazendo parte da alta nobreza, manejava as armas de combate e de caça, geria os bens fundiários e subjugava as gentes avassaladas que viviam nos seus domínios senhoriais. Mas a glória maior deste homem é o seu legado literário. Em primeiro lugar, a Crónica Geral de Espanha de 1344. Foi a primeira grande obra historiográfica portuguesa, escrita em linguagem vulgar, já a desprender-se do Latim popular e a autonomizar-se no âmbito do Galaico-Português. Em segundo lugar, o conde Pedro Afonso redigiu um nobiliário, o Livro de Linhagens, obra basilar para quem queira estudar a sociedade medieval portuguesa. Na época não havia registos civis com as notações de nascimento, baptismo, casamento e morte. O Livro de Linhagens servia o propósito de legitimar a origem familiar e os direitos sucessórios, pesem, embora, os riscos inerentes às alterações sugeridas pelo interesse próprio ou pela rivalidade parental. Conhecem-se muitos acrescentos nas sucessivas edições manuscritas.
Por último, Pedro Afonso é considerado o último príncipe trovador, autor de Cantigas de Amor e de Escárnio, ao uso da época. Ele próprio fez uma compilação dessas peças poéticas, um Livro de Cantigas, que deixou em testamento ao seu sobrinho Afonso XI, rei de Castela. Perdido no tempo – numa época em que se desconhecia ainda a imprensa e tudo era manuscrito – este cancioneiro terá sido a fonte de que saíram os cancioneiros da Ajuda e da Vaticana, repositórios preciosos da nossa literatura primeva.
Que responderei, então, ao comandante Mendes Quinto?
A ligação de D. Pedro Afonso a Torres Vedras faz-se unicamente pela sua filiação materna. É plausível que aqui tenha nascido mas disso não há provas irrefutáveis. A sua notoriedade projectou-o no todo nacional, onde se insere Torres Vedras. Mais do que torriense, Pedro Afonso foi um homem notável do seu tempo. O enorme valor cultural do seu legado literário é que faz erguer o conde D. Pedro ao nível superior dos notáveis da nossa História.
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Notas bibliográficas:
Júlio Vieira – Torres Vedras Antiga e Moderna, 2ª ed., Livrododia e Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, Torres Vedras, 2011. (1ª ed.  1926). P. 107 e 108.
Madeira Torres – Descrição Histórica e Económica da Vila e Termo de Torres Vedras, Coimbra, 1862, ed. Fac- Sim.  Misericórdia de Torres Vedras.
Ana Raquel Parra – A paternidade na Idade Média – O caso de D. Dinis, dissertação de Mestrado, Fac. Letras de Lisboa, 2017/18.
Luís Krus – A construção do passado medieval- Textos inéditos e publicados, Inst. Estudos Medievais da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2011.



                        


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