A página LUGAR ONDE, no semanário torriense BADALADAS, deu destaque à inauguração do FORUM de Associações, que aconteceu em 25 de Outubro de 2014.
O acto público foi presidido por Carlos Miguel, presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, com a participação da presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, Ana Abrunhosa e de Carlos Ferreira, Presidente do Forum.
Joaquim Moedas Duarte, presidente da Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, proferiu um discurso de apresentação da sua Associação que a seguir transcrevemos:
É com enorme alegria que a Associação para a Defesa e
Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, de cuja Direcção faço
parte, se associa à festa desta inauguração. Permitam-me recordar que a nossa
Associação completa, este ano, 35 anos de existência. Não vou fazer a sua
história mas julgo que é oportuno partilhar convosco algumas considerações que
nos permitem entender melhor o contexto em que ela surgiu, em
Março de 1979.
Os anos 70 do século XX foram, em Portugal, um tempo de
viragem e renovação de todos os aspectos da vida colectiva, sobretudo a seguir
à revolução do 25 de Abril de 1974. No campo cultural, por força de conturbadas
circunstâncias políticas, assistiu-se à proliferação de iniciativas dispersas
que tinham como matriz orientadora a substituição do modelo autoritário
deposto, substituído por instâncias descentralizadas que garantiam a
intervenção directa e voluntarista dos activistas culturais. Nessa época, foi através
da renovação do Poder Local Autárquico que as populações tomaram consciência do
seu papel de intervenientes directos, porque principais interessados, na defesa
e preservação dos bens culturais das suas localidades. A nossa experiência
autárquica nesses anos testemunha que esse foi um período de intensa
participação cívica em que as preocupações com a resolução imediata de
problemas relacionados com as infra-estruturas de abastecimento de água ou
saneamento básico corriam em paralelo com as realizações culturais,
tornando possível, através da iniciativa
de elementos mais esclarecidos ou sensibilizados, reavivar o interesse pela
memória histórica local e pelas tradições populares mais genuínas.
Neste renascer cívico ganhou importância a ideia da defesa
do Património, sobretudo o edificado, que nos últimos anos do Estado Novo havia
sido descurado devido ao esforço da guerra colonial – ao contrário dos anos
áureos do Regime em que a promoção do Património fora uma das bandeiras da
renovação nacionalista preconizada por Salazar. Surgiram, por todo o país,
Associações de Defesa do Património (ADP), num crescendo que atingiria o seu
auge nos anos 90, totalizando cerca de uma centena.
Este movimento levou à realização de quatro Encontros
Nacionais de ADP: Santarém (1980), Braga (1981), Torres Vedras (1982) e Setúbal
(1986) e à constituição de uma Federação em 1981, a FADEPA.
Nos activistas deste poderoso movimento cultural era
clara a preocupação com a necessidade de afirmar a consciência identitária como
condição necessária do modo de ser e estar das comunidades humanas. Num período
de rápidas alterações sociais e políticas, o regresso ao passado surgia como
elemento compensador de perdas e danos, oferecendo um referencial simbólico
onde ancorar a busca da identidade ameaçada. A libertação dos constrangimentos
políticos do regime ditatorial levou à celebração da partilha colectiva como
manifestação e fruição da liberdade. Essa partilha evidenciou a consciência
grupal de uma identidade renascida que se materializou no cuidado pela herança
comum, - o Património.
A erupção entusiástica do interesse pelos vestígios do
passado é, aliás, uma das características dos períodos de regeneração que se
seguem às revoluções, como se viu a seguir à Revolução Francesa ou, em
Portugal, após a implantação da República. O recurso ao Património não é
arbitrário, antes resulta da interiorização colectiva da ideia de que o passado
comum é o elo que une os elementos da comunidade ameaçados pelas tensões
desagregadoras dos períodos revolucionários.
Significativa do período histórico pós 25 de Abril 74
foi a ideia de que esta identidade
deveria afirmar-se mediante a assunção da responsabilidade individual que
aceita fazer parte integrante de um colectivo independente do poder político
central. Daí a constituição de inúmeras instâncias associativas – Comissões de
Moradores, de Melhoramentos, de Clubes Culturais e Recreativos, etc – e, entre
elas, as de Defesa do Património. Esta
proliferação tornava-se, assim, o reverso da política centralista do Estado
Novo, em que os cidadãos se substituiam ao longínquo poder autocrático, mas
teve como consequência inevitável, durante os primeiros anos do regime
democrático, alguma indefinição do quadro legal relativo às questões do
Património. O primeiro grande diploma legal sobre esta matéria surgirá apenas
em 1985. No texto de 62 artigos é visível « a
força e originalidade com que vinha progredindo a acção das ADP’s», como se
comprova pela referência explícita à sua existência no Artº 6º, nomeadamente no
1º ítem:
«1 -
As associações de defesa do património, adiante designadas por «ADP», são as
associações constituídas especificamente para promover a defesa e o
conhecimento do património cultural.»
Este era o corolário de uma década de intervenção
aguerrida e muitas vezes incómoda para o poder político e para os interesses
materiais instalados, nomeadamente na área do urbanismo. Significava, também, o
reconhecimento da importância das ADP’s na introdução de conceitos e
metodologias de intervenção, até aí praticamente arredados do quotidiano
administrativo apesar de constantes nos inúmeros documentos internacionais
dedicados à preservação do Património – desde a Carta de Atenas (1931), passando pela Carta de Veneza (1964) até ao Apelo
de Granada (1977), entre outros
Dezasseis anos depois daquele diploma legal foi
publicada a Lei nº 107/2001 que
consideramos a magna carta do património cultural português na qual (Artº 1º)
se estabelecem «as bases da política e do
regime de protecção e valorização do património cultural, como realidade da
maior relevância para a compreensão, permanência e construção da identidade
nacional e para a democratização da cultura». De novo encontramos
referência explícita às ADP’s mas agora num articulado mais bem estruturado que
constitui, só por si, o estatuto genérico da participação activa dos cidadãos
nas questões do Património, claramente desenvolvido nos sete ítens do Artº 10º
e nos três do Artº 11º. Depois de caracterizar o perfil associativo das ADP’s,
aí se reconhece aos cidadãos “o direito
de participação, informação e acção popular” bem como o direito a obter
cooperação da Administração Pública central, regional e local em todos os
domínios da sua actividade específica. E ainda o direito aos “incentivos e benefícios fiscais atribuídos
pela legislação tributária às pessoas colectivas de utilidade pública
administrativa.” Esta explicitação clara de direitos é completada, no Artº
11º com os deveres de “ preservação,
defesa e valorização do património cultural”, cada um deles desenvolvido
nos três ítens do articulado.
Parece-nos,
pois, de justiça apontar para o papel decisivo da participação dos cidadãos no
estabelecimento das linhas orientadoras, plasmadas na lei de bases do
património cultural.
É justo lembrar que a Associação do Património de
Torres Vedras teve participação muito activa neste movimento.
Fundada em Março de 1979 por iniciativa do director do
semanário local Badaladas, com o
apoio entusiasta do vereador da cultura da Câmara Municipal, a que se juntou um
grupo alargado de personalidades, desde logo se afirmou como interventora sagaz
nas questões do Património local, marcadas pela emergente importância dos
promotores imobiliários encorajados por um Poder Autárquico permissivo, mais
sensibilizado para o desenvolvimento
urbanístico do que para a salvaguarda de valores patrimoniais de feição
histórica. Com a sede a funcionar incialmente nas instalações do jornal, é
natural que tenha sido nas suas páginas que a actividade da nova associação
ganhou relevo – o que ainda hoje acontece, apesar de a sede da ADP há muito se
ter deslocado para instalações independentes.
O dinamismo
desta associação explica que, logo em 1982, tenha organizado o III Encontro de
ADP’s, em Torres Vedras, amplamente divulgado nas páginas do jornal. Realizado
de 1 a 4 de Abril, nele participaram cerca de 400 pessoas representando 91
associações de todo o país, com uma centena de comunicações. Em jeito de
balanço, José Pedro Sobreiro, então presidente da ADPTV, sublinhou:
«O Património não se defende apenas nos
“monumentos intocáveis”, mais ou menos protegidos por lei. A defesa do
património tem a ver com uma atitude perante a vida das sociedades e abrange um
leque de acções que pode ir da publicação de um catálogo de museu até à
preservação do ambiente tradicional de uma artéria.»
Depois deste relance sobre o
nosso passado recente, olhemos agora para o presente e para as possibilidades
do futuro
Quanto ao
presente deste movimento cultural, é indubitável que perdeu a pujança e o
fulgor dos anos iniciais. Muitas associações do património ficaram pelo
caminho, num processo natural de ciclo de vida. Não temos dados estatísticos
disponíveis, apenas um conhecimento empírico resultante da nossa experiência
nesta área. Uma investigação rápida na internet
mostra-nos que resistem ainda algumas associações que mantêm actividade
regular, mais ou menos significativa. O que nos parece relevante sublinhar é
que a preocupação com as questões da salvaguarda do património cultural e da
sua divulgação – frequentemente incluídas na promoção turística - fazem hoje
parte da agenda da grande maioria das autarquias locais, como podemos comprovar
pela análise dos respectivos sítios da internet. É lícito supor que esta
generalização resulta, também, do trabalho pioneiro das ADP’s, hoje diluído ou
absorvido pelas competências administrativas do Poder Local.
Quanto à Associação do
Património de Torres Vedras, os relatórios e planos de actividade, que
anualmente tem discutido e publicado no blogue PATRIMÓNIOS, abarcam uma grande
variedade de iniciativas que procuram responder aos novos desafios e exigências
do tempo presente. Que se espera hoje
de uma Associação do Património? A resposta, encontramo-la num documento
interno da nossa Associação, que passo a citar:
«Espera-se que continue a defender e a divulgar o Património! Mas tendo em conta
que estas ‘missões' já estão em grande parte assumidas por outras entidades –
IGESPAR, DGPC, autarquias, Regiões de Turismo… - espera-se sobretudo que
introduza CONHECIMENTO nas questões do Património. Esse é o aspecto mais
importante da sua acção, hoje em dia. De que modo? Intervindo regularmente na
imprensa, rádios e televisões regionais; editando materiais de qualidade;
organizando visitas guiadas temáticas; disponibilizando serviços de guias
turísticos, sessões de divulgação, acções de formação; utilizando todos os
meios informáticos disponíveis; actualizando inventários e registos
fotográficos; divulgando leis e textos de referência; criando núcleos escolares
de defesa do património; comparecendo em todos os eventos públicos relacionados
com o Património cultural; criando formas de participação das populações em
projectos inovadores que as interessem e mobilizem.»
A
partir destes princípios, a ADPTV tem actualmente em execução os seguintes
projectos de trabalho:
Ø TORRES VEDRAS, MEMÓRIAS DO SÉCULO XX:
vídeo-gravação de depoimentos orais de pessoas idosas, de alguma forma ligadas
ao Centro Histórico; recolha de fotografias, notícias de jornal...;
reconstituição do tecido comercial da zona histórica ( as lojas que ali
existiram...). Este projecto foi iniciado em 2012 com um ciclo de cinco debates
públicos sob o tema “Mais vida no Centro
Histórico”. Até ao presente foram realizadas 10 entrevistas vídeo-gravadas,
num total de cerca de 50 horas de gravação.
Ø VIVA HISTÓRIA:
realização de visitas guiadas, com percursos no Centro Histórico da cidade e na
região Oeste; disponibilidade deste serviço junto dos agentes turísticos. Este
projecto candidatou-se recentemente ao Programa Leader Oeste.
Ø AO ENCONTRO DA HISTÓRIA:
sessões públicas, com PowerPoint's, a pedido de pessoas ou instituições
interessadas, sobre os temas: Linhas de Torres Vedras / Monumentos de Torres
Vedras / A arte de moer: moinhos e azenhas / A nossa História escrita: Livros
de História Torriense.
Ø PATRIMÓNIOS:
publicação de artigos no jornal Badaladas,
de três em três semanas, sobre memórias
do Centro Histórico. Este projecto tem mobilizado muitos dos actuais ou
antigos moradores a darem o seu testemunho de vida, a maioria nunca tinha
escrito para um jornal. Desde 2010 até hoje foram publicados cerca de 70
artigos de 30 autores diferentes.
Meus
senhores e minhas senhoras:
Ao concluir esta
intervenção, quero sublinhar que os 35
anos de vida da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de
Torres Vedras exprimem bem a possibilidade e utilidade da participação
organizada dos cidadãos na salvaguarda e valorização do seu Património
histórico, na linha do que a Convenção de
Faro, de 2005, preconiza no seu artigo 12º: «Reconhecer o papel das organizações não lucrativas, tanto como
parceiros nas actividades desenvolvidas, como enquanto elementos de crítica
construtiva das políticas de património cultural.»
Por outro lado, fica
patente a ligação entre memória e património pois este não se entende sem
aquela. É a memória que confere valor simbólico aos vestígios do passado, -
material ou imaterial – uma operação mental em que, no dizer de um autor
consagrado, «a reivindicação presente de
um património é produtora desse património» - fenómeno a que aquele autor
chamou ‘patrimonialização’, resultado
‘do acto de memória’.[1]
De facto, a memória
social é um vasto universo cultural que, para subsistir, necessita de agentes
propulsores e dinamizadores e esse continua a ser, em nosso entender, o papel e
o território de acção das Associações para a Defesa do Património Cultural.
Obrigado pela vossa
atenção.
[1]
Joël Candau – Antropologia da memória.
Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 148.
Na semana seguinte o jornal Badaladas publicou a reportagem:
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