Nº 35 - Publicado em 9 de Novembro de 2012
É PRECISO DEFENDER O PATRIMÓNIO NOS
CENTROS HISTÓRICOS
(I Parte)
ISABEL LUNA
(Arqueóloga)
“Há
dois erros comuns no que diz respeito ao património. O primeiro é pensar que é
sobre edifícios: é sobre as pessoas e o que elas investem nos tijolos. O
segundo é pensar que é sobre o passado: é sobre o futuro, o que ficará depois
de nós desaparecermos” (Simon Thurley).
Os conceitos de património cultural e de conservação,
tal como hoje os entendemos, são construções da moderna sociedade ocidental. O
processo de patrimonialização, isto é, de distinção daquilo que se
considera herança colectiva e que, como tal, deve ser preservado e legado às
gerações vindouras, tem por base valores sociais condensados em convenções
internacionais, cuja dinâmica tem sido patente ao longo das últimas décadas.
Se, no final do século XIX, a conservação patrimonial
incidia sobre o monumento, entendido como criação arquitectónica excepcional,
isolada e expressão de culturas passadas, a partir dos anos 60 do século XX, o
conceito de monumento amplia-se, abarcando os conjuntos edificados e os sítios,
urbanos ou rurais, sejam eles formados por grandes criações artísticas ou por
edificações modestas e anónimas que, enquanto conjunto, adquiriram significado
cultural (Carta de Veneza, 1964). Os sítios urbanos passam então a ser
considerados monumentos históricos, uma sensibilidade que está intimamente
ligada à devastação de inúmeras cidades europeias, provocada pela Segunda
Guerra Mundial, e ao reconhecimento do papel dos centros urbanos na construção
e consolidação da identidade colectiva das sociedades.
O progresso que caracterizou o pós-guerra trouxe, porém,
novas ameaças às cidades. O acelerado desenvolvimento urbano, destacando-se os
grandes empreendimentos públicos e privados, associados também à especulação
imobiliária, criou uma enorme pressão sobre os núcleos urbanos, de que
resultaram irremediáveis destruições. Assim, a partir dos anos 80, as
preocupações voltaram-se para o ordenamento territorial e para o enquadramento
harmonioso das novas construções nos antigos núcleos edificados, tentando
respeitar o carácter das cidades antigas e das aldeias tradicionais, os seus
edifícios dominantes e a sua relação com a paisagem envolvente.
A noção de cidade congrega
dois sentidos complementares: um sentido territorial – topográfico,
urbanístico, arqueológico –, que engloba espaços e edifícios, e um sentido social,
de comunidade politicamente organizada para a consecução de objectivos comuns.
Os núcleos urbanos constituem,
assim, expressões materiais da vida das sociedades que os habitaram ao longo
dos tempos e, por esse facto, devem ser também entendidos como documentos históricos. São os centros
históricos urbanos que preservam, primordialmente, o carácter histórico da
cidade e o conjunto de elementos materiais e simbólicos que exprimem a sua
imagem; ou seja, são eles que consagram a memória da cidade. O património construído constitui,
neste contexto, uma parte relevante e insubstituível do tecido urbano, crucial
para a identidade de uma cidade e dos seus residentes, presentes e futuros.
Locais primordiais de
socialização, as cidades são entidades complexas, cuja identidade, apesar de
historicamente enraizada, está em permanente mutação. O derradeiro objectivo da
conservação do património urbano consiste, assim, na manutenção,
potencialização e transmissão dos valores e quadros históricos de referência da
cidade, em permanente equilíbrio com o
moderno progresso, a bem do desenvolvimento
harmonioso das sociedades. Porque “uma cidade sem passado é como uma pessoa
sem memória” (Carta Urbana Europeia, 1992).
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Nº 36 - Publicado em 21 de Dezembro de 2012
A
IMPORTÂNCIA DA ARQUEOLOGIA URBANA
(II
Parte)
ISABEL
LUNA
(Arqueóloga)
Os núcleos urbanos constituem expressões materiais da vida das
comunidades que os habitaram ao longo dos tempos e, por esse facto, constituem “um dos mais poderosos arquivos da memória
da sociedade contemporânea”: “na
cidade, o passado está sempre presente” [1].
Mas o património histórico dos
centros urbanos não se confina aos espaços e às construções que se erguem acima
do solo. De facto, sob os solos das cidades acumulam-se sucessivas
camadas de vestígios arqueológicos, que testemunham a vida de dezenas de
gerações de antepassados que habitaram o mesmo local e que o foram
transformando ao longo dos séculos.
As cidades, vilas e aldeias
são estruturas complexas, pluri-estratigrafadas, que resultam de lentos
processos de construção, alteração, reformulação, deterioração e renovação,
devidamente sedimentados pela passagem do tempo. Estas acções acabam por ficar
registadas no subsolo, numa complexa sobreposição de níveis de ocupação que, apesar
de “invisíveis”, constituem
verdadeiros "arquivos do solo"
[2],
de elevado potencial histórico-documental.
A consideração da cidade
como sítio histórico-monumental (Carta de Veneza, 1964) pressupõe o seu
entendimento como uma realidade única, um todo em si própria. Nesta
perspectiva, o estudo da cidade deverá partir de uma abordagem integral e
transdisciplinar, que tenha em conta a sua integração tanto no espaço como no
tempo. A Arqueologia Urbana, através das suas metodologias específicas, é a
disciplina que permite recuperar a informação contida no subsolo das cidades e
proceder ao seu estudo sequencial, revelando a origem e evolução da urbe.
A Arqueologia Urbana
desenvolveu-se a partir da segunda metade do século XX, quando o objecto de
estudo da arqueologia se alargou para lá dos períodos clássicos da história,
estabelecendo a aplicabilidade dos seus métodos a todas as épocas do passado,
até à actualidade. Também a destruição urbana provocada pela Segunda Guerra
Mundial permitiu uma consciencialização do volume de informação histórica
irremediavelmente perdido, num processo conhecido por “erosão da história”.
Todavia, a arqueologia
urbana não deve confundir-se com uma mera “arqueologia
em meio urbano”, de carácter necessariamente pontual e fragmentário: mais
do que uma arqueologia na cidade, ela deve constituir-se
como uma arqueologia da cidade. O que, de certa forma,
pressupõe que cada cidade seja “objecto
de um projecto de investigação consistente, com objectivos concretos” [3].
A arqueologia urbana deve ser entendida, pois, como uma arqueologia “das cidades vivas”, enquanto
prática contínua, decorrente de um projecto de investigação coordenado por uma
entidade tutelar [4]. A
cidade é percebida como uma entidade viva, em permanente evolução, em que a arqueologia
procura não apenas o seu conhecimento, mas fazer simultaneamente com que esse
conhecimento seja utilizado na gestão quotidiana e sustentável do espaço
urbano, tendo em conta que os recursos arqueológicos são limitados e a sua
perda irreversível e irreparável.
Em Portugal, destacam-se os
casos de Braga e Mértola onde, através de projectos integrados de arqueologia,
foi possível obter um conhecimento profundo sobre as cidades e,
simultaneamente, fazer reverter esse mesmo conhecimento em prol do desenvolvimento
das urbes.
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Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico
[1] MARTINS, Manuela e RIBEIRO, Maria do
Carmo – «A arqueologia urbana e a defesa do património das cidades», 2010,
149-177.
[3] MARTINS, Manuela e RIBEIRO, Maria do
Carmo, op. cit.
[4] GASPAR, Alexandra, DELGADO, Manuela
& LEMOS, Francisco Sande – «O salvamento de Bracara Augusta», 1986, 27-42.
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Nº 37 - Publicado em 11 de Janeiro de 2013
(III Parte)
ISABEL LUNA
(Arqueóloga)
O desenvolvimento das
investigações em arqueologia urbana levou a que, na década de 70 do século XX,
se tenha constatado a incoerência da repartição do estudo dos centros urbanos
entre uma disciplina arqueológica que investigava o património construído
oculto no subsolo, e uma disciplina arquitectónica que investigava aquele que
se elevava acima do solo. De facto, o património arqueológico, apesar de soterrado,
aflora por vezes à superfície, a partir das fundações dos edifícios existentes.
A própria genealogia histórica dos imóveis é atestada pela investigação
arqueológica, pelo que a acção do arqueólogo se estende ao edificado e a do
arquitecto tem de passar, invariavelmente, pela componente arqueológica dos
edifícios. Nasceu assim a denominada Arqueologia da Arquitectura, uma
especialização metodológica e instrumental, pluridisciplinar, que envolve
urbanistas, arquitectos, engenheiros, historiadores de arte, arqueólogos e
artífices, que veio renovar e alargar consideravelmente os estudos de
arqueologia urbana. Basicamente, consiste na aplicação aos edifícios das
metodologias arqueológicas, nomeadamente dos sistemas de análise estratigráfica
e de registo. A estratigrafia horizontal, do subsolo urbano, é entendida como
formando uma unidade natural com a estratigrafia vertical das paredes dos
edifícios, com a qual claramente se interrelaciona.
A Arqueologia da
Arquitectura beneficiou de um conjunto de desenvolvimentos teóricos e
tecnológicos registados nos últimos anos, como os sistemas de datação absoluta
de paramentos (dendrocronologia e termoluminescência), as técnicas de registo e
representação (fotogrametria), os sistemas de análise de técnicas e materiais
de construção e um novo sistema de representação estratigráfica: a matriz de
Harris (1979). Estas técnicas, aplicadas aos edifícios, permitem obter
informações não apenas sobre a construção, mas igualmente sobre as alterações,
restauros e reconstruções efectuadas ao longo do tempo.
A arqueologia urbana,
enquanto arqueologia da “cidade em devir”,
procura estudar, entre outros aspectos, a origem e evolução da cidade, o seu
enquadramento, planeamento, estrutura morfológica, relações e hierarquias
espaciais, infra-estruturas e edificações urbanas, bem como as suas vocações,
locais simbólicos, actividades económicas e movimentos populacionais. A nova
abordagem dada pela arqueologia da arquitectura veio acrescentar a este volume
de informação uma série de conhecimentos específicos sobre as edificações
urbanas, nomeadamente o estudo dos espaços e dos usos, bem como dos processos,
técnicas e fases de construção.
Não obstante todos os
desenvolvimentos da arqueologia urbana, no final do século XX o crescimento
demográfico das cidades e a consequente expansão da construção civil, a par dos
projectos de renovação urbana, em particular dos centros históricos, acabaram
por afastar a disciplina dos seus propósitos iniciais, passando esta a
funcionar quase exclusivamente como uma “arqueologia
de salvamento”, cuja função consiste em libertar os terrenos urbanos dos empecilhos arqueológicos, de modo a
viabilizar novos empreendimentos. Se bem que a maioria dos municípios disponha
já de gabinetes de arqueologia, que procedem ao acompanhamento das intervenções
levadas a cabo nos centros urbanos, muitos limitam ainda a sua acção aos
trabalhos arqueológicos mínimos obrigatórios, nos imóveis classificados e suas
respectivas zonas de protecção, remetendo a história das cidades para um plano
claramente secundário. Por isso, os centros históricos urbanos continuam a
assistir, diariamente, à realização de obras em espaços públicos, edifícios e
infra-estruturas, que destroem irremediavelmente volumosas e preciosas parcelas
da história das cidades e dos nossos antepassados.
±
Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico
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Nº 38 - Publicado em 1 de Fevereiro de 2013
(1ª
Parte)
EMANUEL
CARVALHO
(Assistente
de Arqueólogo)
Desde
a sua criação que os centros históricos se revelaram como elementos do espaço
urbano da maior importância, pois não só representam como estão na origem das
cidades, vilas ou aldeias.
E
se a sua importância se revela como o espaço onde “tudo” começou, no caso de
Torres Vedras, é o castelo que surge como o núcleo central que esteve na origem
da actual cidade. Todavia, todo o espaço “intramuros” que delimitou a área
urbana, até pelo menos ao século XIX, faz parte do centro histórico, visto que muito
cedo, com a expansão da urbe, foi ocupado por populações que, à sombra do castelo,
aqui se vieram instalar, e por diversos motivos consoante as necessidades:
defesa, comércio, política, etc. Desse tempo ficou-nos a malha urbana, na maior
parte das vezes adaptada ao relevo do terreno.
Podemos
afirmar assim que o centro histórico é uma das referências identitárias das
populações que aqui nasceram, cresceram e morreram.
Dos
principais locais a destacar no centro histórico teremos o castelo, o bairro
islâmico, a judiaria, os palácios e as construções ligadas à actividade
religiosa – sendo estes os locais possíveis de identificar através dos documentos
históricos.
Os
centros históricos, como realidades vivas, devem merecer o maior cuidado e
relevância – para além da arquitectura – de outras disciplinas, como a
História, a Arqueologia, a Antropologia, a Geografia, a Sociologia, cujos contributos
são indispensáveis para uma visão integrada do fenómeno urbano. Porém, é no
âmbito da Arqueologia que nos iremos deter mais demoradamente.
Locais
como o castelo, onde na década de 80 e 90 do século XX se realizaram diversas
intervenções arqueológicas, serão objecto da nossa atenção, tal como os Paços
do Concelho, pela importância dos achados ali encontrados durante as obras de
recuperação no início do século XXI. Outros locais, como a área de implantação
do primitivo Convento de Santo Agostinho, a Rua Cândido dos Reis (antiga
Corredoura), ou as recentes intervenções na Travessa do Quebra Costas e na área
envolvente do Chafariz dos Canos e da Igreja de São Pedro também serão aqui
referenciadas.
No
início do século XXI os centros históricos afirmam-se cada vez mais como um grande
mercado urbano do lazer, visto que se vem assistindo à requalificação do espaço
público e à crescente implantação de bares, restaurantes, ateliers, espaços
culturais, etc.
Torna-se
evidente que os centros históricos desafiam cada vez mais a nossa consciência
patrimonial dado que são o reflexo do passado, mas também do nosso presente,
apontando metas para o futuro.
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Nº 39 - Publicado em 22 de Fevereiro de 2013
PESQUISAS NO CENTRO HISTÓRICO – ZONA DO
CASTELO
(2ª Parte)
EMANUEL
CARVALHO
(Assistente
de Arqueólogo)
O
Castelo de Torres Vedras apresenta um conjunto de construções pertencentes a
diversas épocas, cuja origem pode remontar a um período pré-histórico – entre
as quais se destacam as ruínas do Palácio dos Alcaides, a Igreja de Santa Maria
do Castelo, o conjunto de panos de muralhas, torreões, barbacã, contrafortes e
cisternas. Indubitavelmente, este núcleo urbano assume-se como o elemento mais
notável do património torriense, não só pela sua relevância geográfica, mas
também como o local onde “tudo começou”.
Ciente
desta importância e querendo compreender melhor a história deste complexo
monumental, a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de
Torres Vedras em parceria com o Espeleo Clube de Torres Vedras e com o apoio do
Museu Municipal e patrocínio da Câmara Municipal, tomaram a iniciativa de
lançar na década de 80 e 90 do século passado diversas campanhas de escavações
arqueológicas. Este projecto foi dirigido desde o seu início pelo Dr. Clementino
Amaro, tendo contado com a participação de jovens oriundos de vários países da
Europa, integrados em Campos Internacionais de Trabalho, e apoiados pelo
Instituto Português da Juventude.
Nas
últimas campanhas a direcção dos trabalhos de escavação arqueológica foi
assegurada pela dr.ª Isabel Luna que participou nas primeiras campanhas como
voluntária.
A
escolha do local para início dos trabalhos, – a muralha sul do castelo, junto à
barbacã (pátio de entrada) – deveu-se a uma descoberta do arqueólogo torriense
Leonel Trindade, que tinha observado restos de “opus signinum” (cimento romano) em alguns blocos de pedra da
muralha, virados para o exterior. Foi a partir destes dados que os investigadores
da altura lançaram a hipótese de que seria possível encontrar níveis da época
romana à cota onde se situavam esses vestígios.
Era
já conhecida a presença romana na área do castelo, uma vez que a norte existem
duas cisternas que deverão ter sido construídas nessa época, facto
possivelmente relacionado com a existência de uma pequena fortificação.
Apesar
das fortes expectativas em trazer à luz do dia vestígios da ocupação romana, a
primeira campanha, para surpresa dos investigadores, veio a revelar uma extensa
necrópole (cemitério) da época medieval/moderna. Com o avançar dos trabalhos,
constataram os arqueólogos que essa necrópole se estendia por toda a área em
redor da Igreja de Santa Maria do Castelo.
Nos
primeiros níveis escavados foi recolhido sobretudo espólio associado às
invasões francesas ou às guerras civis que se lhe seguiram, uma vez que foram
encontradas diversas balas esféricas de chumbo e botões de farda. No nível
estratigráfico imediatamente abaixo, surgiu então a referida necrópole, com
cerca de meia centena de sepulturas, contendo ossadas pertencentes a todas as
faixas etárias. Tais sepulturas apresentavam tipologias construtivas
diferentes: desde simples covas no chão a caixas em pedra (algumas
antropomórficas) construídas com lajes calcárias, com esteios e tampas. Algumas
das quais mantinham ainda na sua cabeceira as estelas – lápides decoradas com
diferentes motivos, muitas delas referentes à profissão do defunto. É
importante destacar que mais de metade pertencia a crianças, na sua maioria
recém-nascidos. Uma dessas sepulturas – coberta por uma laje que tinha sido
utilizada como tabuleiro para o jogo do moinho – apresentava uma figura humana,
empunhando um bastão decorado, rodeada de cruzes de malta, símbolo que poderá
corresponder à figura de um funcionário judicial medieval, designado como
Saião. No contexto deste projecto de investigação esta peça foi considerada,
pelo seu carácter inédito, um dos achados de maior importância.
±
Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico
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