O ABISMO DO ESQUECIMENTO
José Eduardo Miranda Santos Sapateiro
[ NOTA: O culto e a evocação da Memória colectiva são instrumentos
fundamentais para a construção da História. Fazem parte do Património
identitário de qualquer comunidade humana. Eis como um livro de Banda Desenhada
pode ser um veículo poderoso desta mensagem].
I
UMA PROMESSA
Imaginem uma filha e um pai que estiveram separados, durante
setenta e dois anos, não só pela vida e pela morte mas também por alguns palmos
de terra anónimos que cobriam o corpo de um deles num dos cemitérios de uma
qualquer povoação espanhola.
Visionem a filha desse homem - na sequência de uma nova
legislação que lhe permitia a ela, como a todos os demais que estivessem nas
mesmas circunstâncias, formular, quanto a tal separação forçada, um
preciso pedido ao Estado -, fazê-lo por escrito e, depois, nele insistir,
persistir, sempre e teimosamente, numa luta demorada, dolorosa, cansativa,
contra burocracias reais e inventadas, más consciências várias, desculpas
esfarrapadas e hipocrisias múltiplas, murmuradas em jeito de conselho ou ameaça
disfarçada, até ao deferimento final.
Muitos outros talvez tivessem desistido logo nos primeiros
degraus ou já a meio da escadaria dos pequenos poderes instalados, mas ela não,
cara de pau, sem vergonha, agitadora de passados já calados e quase ignorados
pelas novas gerações, a querer, sem necessidade ou justificação, reacender esse
pulsar histórico que cada vez menos se fazia sentir à superfície da realidade
social e política do nosso vizinho de fronteira.
E o que queria, afinal, essa mulher já velha, ao fim de tão
prolongada espera e demora, da administração pública de Espanha?
Que, num cumprimento de uma promessa feita à mãe dela e
mulher do falecido, a deixassem recuperar o corpo do seu pai, sepultado numa
concreta vala comum existente num concreto cemitério e, com essa transladação,
arrancada a ferros, se assistisse, de alguma forma, ao seu regresso ao mundo
normal dos vivos e dos mortos e, em certa medida, através da recuperação do seu
nome, da sua história pessoal, da sua identidade, dos seus restos mortais
e do seu lugar ao lado dos seus, já idos, a uma espécie de ressuscitação
simbólica, no plano individual e comunitário, do
mesmo.
II
UMA BANDA DESENHADA
Quem me conhece sabe que a Banda Desenhada, desde muito
cedo, sempre fez parte da minha vida. Também é verdade que as chamadas
histórias aos quadradinhos, quer em Portugal, como por esse mundo fora, deixaram
de ser destinadas apenas aos miúdos e jovens, em mero jeito de entretenimento
sem rasgo ou risco, para serem também e cada vez mais pensadas também ou apenas
para os adultos, tendo ganho uma dinâmica e dimensão cada vez maiores e
enverado por uma multiplicidade de caminhos formais e temáticos que
justificaram plenamente a denominação de tal expressão artística como a 9.ª
Arte.
Não constitui, por isso, espanto nenhum se vos venho falar,
nesta página, dessa obra-prima de 2023, que é «O ABISMO DO ESQUECIMENTO», da
autoria de Paco Roca [argumento e desenhos] e de Rodrigo Terrasa [argumento]
publicada em outubro do ano passado pela Editora ALA DOS LIVROS.
Interessa frisar aqui que os autores desta Banda Desenhada
não ignoram nem escamoteiam os crimes cometidos, por qualquer uma das forças
envolvidas na Guerra Civil Espanhola, conflito sangrento que varreu a sociedade
hispânica entre 1936 e 1939, não se podendo, nessa medida, qualificá-lo como um
livro parcial, tendencioso, acantonado fundo nas trincheiras impolutas da
esquerda e virado todo ele apenas contra todos os demais que combateram
os republicanos.
Trata-se de uma edição muito cuidada e num formato que não é
habitual [encontramo-lo também na última aventura de BLAKE e MORTIMER, ainda
que em paralelo com o álbum tradicional] e que, num registo visual que nos
reconduz quer à fotografia, como ao cinema, nos narra, lentamente, por vezes
gesto a gesto, em contracorrente com a história da perseverante irmã antes
contada, uma outra história terrível.
III
UM COVEIRO
Falemos então de um republicano que escapa por um triz,
graças à intervenção de um padre amigo, à morte certa e que, como único
trabalho disponível, em jeito de castigo cruel, é encarregue de ser o coveiro
de todos os demais republicanos que depois de presos, sumariamente julgados e
condenados à morte pelo regime franquista vencedor, são transportados, em datas
incertas e no segredo da noite, em camionetas civis, até diversos locais
previamente preparados para o imediato cumprimento da dita pena, encostados aos
muros ou paredes aí existentes, passados pelas balas das espingardas dos
pelotões de fuzilamento e, depois de recarregados e levados para um dos muitos
cemitérios municipais existentes, lançados, como lixo, em valas já abertas e
anónimas para todo o sempre.
Este bom homem, coveiro à força, acaba por arriscar a vida,
não só mediante o contacto fortuito que vai estabelecendo, a pouco e pouco, com
os familiares próximos das mulheres e homens ali sepultados, como pela forma
cada vez mais cuidada e digna como procede, também pela calada noturna e com a
progressiva ajuda daqueles, ao enterro dos seres humanos fuzilados [chegando a
fazê-lo, numa segunda fase, em simples e toscos caixões de madeira trazidos
pelos ditos familiares], dos quais recolhe, aliás, algo pessoal e
identificativo, assim como deixa escondido nas roupas dos seus cadáveres a sua
identificação [com frequência, dentro de pequenos frascos], para que, num
futuro incerto, se venha a conseguir voltar dar publicamente um nome aquele
corpo expurgado do mesmo.
Tal coveiro que, durante meses e contra a sua vontade, tem
de esconder e calar esse trágico e triste trabalho de eliminação indiscriminada
dos potenciais adversários políticos do regime vigente, por parte das forças
fascistas no poder, acaba por ser despedido, sem, contudo, nunca deixar de,
quando contatado por alguém, dar as informações necessárias e entregar as
pequenas recordações que conservou aos familiares das pessoas que sepultou, o
melhor que conseguiu, mas sempre com respeito e amor, no dito
cemitério.
IV
UM AUTOR
Há que então falar aqui de PACO ROCA, que é um dos autores modernos de Banda Desenhada com uma das obras mais sólidas e interessantes que tem sido publicada nestes últimos 25 anos, pela qual recebeu, aliás, vários prémios e que tem um mais que justo reconhecimento internacional, estando quase toda ela disponível no nosso idioma, por iniciativa da Editora LEVOIR. De nome, FRANCISCO MARTÍNEZ ROCA, nasceu em Valência, no ano de 1969 e é responsável, entre muito outros, por livros como «Rugas», de 2007, [que deu também origem a um filme de animação com o mesmo nome, de 2011, que já passou nos cinemas portugueses], «A Casa», de 2005 ou «O Farol», de 2004 e «Os trilhos do acaso», de 2013, ambos também relacionados com a Guerra Civil Espanhola, sendo que, no que respeita ao último, através do relato do papel relevante que os republicanos, que lograram fugir aos franquistas, tiveram na Segunda Guerra Mundial, no combate aos exércitos nazis e fascistas.
V
UMA SÓ HISTÓRIA
Não apaguem a História. Ainda que inconveniente. Cobarde.
Vergonhosa. Não amputem, desvirtuem, branqueiem a memória coletiva de um povo,
quando o porvir psicológico, sociológico, afetivo, emocional desse povo foi
edificado desde então até ao seu viver atual, também sobre esse lado negro,
desvairado, obscuro. Que, no que concerne à particular história narrada por
PACO ROCA, é o lado dos perdedores e das suas famílias e amigos e do quanto
sofreram, de uma forma direta ou indireta, às mãos dos ganhadores, já após o
fim da Guerra Civil Espanhola.
Este livro pede-nos para que não se enterrem as memórias,
individuais, particulares, de tantas pessoas que, depois de vencidas na guerra,
foram derrotadas, de uma forma definitiva, em tempo de uma aparente paz. Não
deixem ficar debaixo da terra, silenciosas, silenciadas, esquecidas, as
estórias pessoais ou familiares que também a controem, a alimentam e a
conservam. Não há uma genuína História quando só os vencedores a escrevem e a
compõem a seu belo jeito e prazer. E, nesse movimento de embelezamento e
branqueamento da mesma, descartam-se, ignoram-se e calam-se os factos relativos
aos vencidos e aos que estão entre uns e outros.
A História integral, verdadeira, é, ao fim e cabo, informada, alimentada, recriada e compreendida quer mediante a descrição e análise dos gestos heróicos, benevolentes, tolerantes e generosos praticados por todos os fazedores da pequena e grande história, mas também [e principalmente?] pelos atos violentos, injustificados, vis, indesculpáveis por eles também levados a cabo, que revoltam, necessária e inevitavelmente, a consciência de qualquer cidadão que tenha a sua escala de princípios e valores assente no humanismo, compaixão e justiça.
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