25 junho 2025

O ABISMO DO ESQUECIMENTO | Jornal BADALADAS - 9 MAIO 2025

 

O ABISMO DO ESQUECIMENTO

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

 

[ NOTA: O culto e a evocação da Memória colectiva são instrumentos fundamentais para a construção da História. Fazem parte do Património identitário de qualquer comunidade humana. Eis como um livro de Banda Desenhada pode ser um veículo poderoso desta mensagem].

 

I

UMA PROMESSA

 

Imaginem uma filha e um pai que estiveram separados, durante setenta e dois anos, não só pela vida e pela morte mas também por alguns palmos de terra anónimos que cobriam o corpo de um deles num dos cemitérios de uma qualquer povoação espanhola.

Visionem a filha desse homem - na sequência de uma nova legislação que lhe permitia a ela, como a todos os demais que estivessem nas mesmas circunstâncias, formular, quanto a tal separação forçada,  um preciso pedido ao Estado -, fazê-lo por escrito e, depois, nele insistir, persistir, sempre e teimosamente, numa luta demorada, dolorosa, cansativa, contra burocracias reais e inventadas, más consciências várias,  desculpas esfarrapadas e hipocrisias múltiplas, murmuradas em jeito de conselho ou ameaça disfarçada, até ao deferimento final.

Muitos outros talvez tivessem desistido logo nos primeiros degraus ou já a meio da escadaria dos pequenos poderes instalados, mas ela não, cara de pau, sem vergonha, agitadora de passados já calados e quase ignorados pelas novas gerações, a querer, sem necessidade ou justificação, reacender esse pulsar histórico que cada vez menos se fazia sentir à superfície da realidade social e política do nosso vizinho de fronteira.

E o que queria, afinal, essa mulher já velha, ao fim de tão prolongada espera e demora, da administração pública de Espanha?

Que, num cumprimento de uma promessa feita à mãe dela e mulher do falecido, a deixassem recuperar o corpo do seu pai, sepultado numa concreta vala comum existente num concreto cemitério e, com essa transladação, arrancada a ferros, se assistisse, de alguma forma, ao seu regresso ao mundo normal dos vivos e dos mortos e, em certa medida, através da recuperação do seu nome, da sua história pessoal, da sua identidade, dos seus  restos mortais e do seu lugar ao lado dos seus, já idos,  a uma espécie de ressuscitação simbólica, no plano individual e comunitário, do mesmo.                

 

II

UMA BANDA DESENHADA

                  

Quem me conhece sabe que a Banda Desenhada, desde muito cedo, sempre fez parte da minha vida. Também é verdade que as chamadas histórias aos quadradinhos, quer em Portugal, como por esse mundo fora, deixaram de ser destinadas apenas aos miúdos e jovens, em mero jeito de entretenimento sem rasgo ou risco, para serem também e cada vez mais pensadas também ou apenas para os adultos, tendo ganho uma dinâmica e dimensão cada vez maiores e enverado por uma multiplicidade de caminhos formais e temáticos que justificaram plenamente a denominação de tal expressão artística como a 9.ª Arte. 

Não constitui, por isso, espanto nenhum se vos venho falar, nesta página, dessa obra-prima de 2023, que é «O ABISMO DO ESQUECIMENTO», da autoria de Paco Roca [argumento e desenhos] e de Rodrigo Terrasa [argumento] publicada em outubro do ano passado pela Editora ALA DOS LIVROS.

Interessa frisar aqui que os autores desta Banda Desenhada não ignoram nem escamoteiam os crimes cometidos, por qualquer uma das forças envolvidas na Guerra Civil Espanhola, conflito sangrento que varreu a sociedade hispânica entre 1936 e 1939, não se podendo, nessa medida, qualificá-lo como um livro parcial, tendencioso, acantonado fundo nas trincheiras impolutas da esquerda e virado todo ele apenas contra todos os demais que combateram  os republicanos.  

Trata-se de uma edição muito cuidada e num formato que não é habitual [encontramo-lo também na última aventura de BLAKE e MORTIMER, ainda que em paralelo com o álbum tradicional] e que, num registo visual que nos reconduz quer à fotografia, como ao cinema, nos narra, lentamente, por vezes gesto a gesto, em contracorrente com a história da perseverante irmã antes contada, uma outra história terrível.

III

UM COVEIRO

Falemos então de um republicano que escapa por um triz, graças à intervenção de um padre amigo, à morte certa e que, como único trabalho disponível, em jeito de castigo cruel, é encarregue de ser o coveiro de todos os demais republicanos que depois de presos, sumariamente julgados e condenados à morte pelo regime franquista vencedor, são transportados, em datas incertas e no segredo da noite, em camionetas civis, até diversos locais previamente preparados para o imediato cumprimento da dita pena, encostados aos muros ou paredes aí existentes, passados pelas balas das espingardas dos pelotões de fuzilamento e, depois de recarregados e levados para um dos muitos cemitérios municipais existentes, lançados, como lixo, em valas já abertas e anónimas para todo o sempre.

Este bom homem, coveiro à força, acaba por arriscar a vida, não só mediante o contacto fortuito que vai estabelecendo, a pouco e pouco, com os familiares próximos das mulheres e homens ali sepultados, como pela forma cada vez mais cuidada e digna como procede, também pela calada noturna e com a progressiva ajuda daqueles, ao enterro dos seres humanos fuzilados [chegando a fazê-lo, numa segunda fase, em simples e toscos caixões de madeira trazidos pelos ditos familiares], dos quais recolhe, aliás, algo pessoal e identificativo, assim como deixa escondido nas roupas dos seus cadáveres a sua identificação [com frequência, dentro de pequenos frascos], para que, num futuro incerto, se venha a conseguir voltar dar publicamente um nome aquele corpo expurgado do mesmo.

Tal coveiro que, durante meses e contra a sua vontade, tem de esconder e calar esse trágico e triste trabalho de eliminação indiscriminada dos potenciais adversários políticos do regime vigente, por parte das forças fascistas no poder, acaba por ser despedido, sem, contudo, nunca deixar de, quando contatado por alguém, dar as informações necessárias e entregar as pequenas recordações que conservou aos familiares das pessoas que sepultou, o melhor que conseguiu, mas sempre com respeito e amor, no dito cemitério.   

IV

UM AUTOR



Há que então falar aqui de PACO ROCA, que é um dos autores modernos de Banda Desenhada com uma das obras mais sólidas e interessantes que tem sido publicada nestes últimos 25 anos, pela qual recebeu, aliás, vários prémios e que tem um mais que justo reconhecimento internacional, estando quase toda ela disponível no nosso idioma, por iniciativa da Editora LEVOIR. De nome, FRANCISCO MARTÍNEZ ROCA, nasceu em Valência, no ano de 1969 e é responsável, entre muito outros, por livros como «Rugas», de 2007, [que deu também origem a um filme de animação com o mesmo nome, de 2011, que já passou nos cinemas portugueses], «A Casa», de 2005 ou «O Farol», de 2004 e «Os trilhos do acaso», de 2013, ambos também relacionados com a Guerra Civil Espanhola, sendo que, no que respeita ao último, através do relato do papel relevante que os republicanos, que lograram  fugir aos franquistas, tiveram na Segunda Guerra Mundial, no combate aos exércitos nazis e fascistas.

 

V

UMA SÓ HISTÓRIA 

Não apaguem a História. Ainda que inconveniente. Cobarde. Vergonhosa. Não amputem, desvirtuem, branqueiem a memória coletiva de um povo, quando o porvir psicológico, sociológico, afetivo, emocional desse povo foi edificado desde então até ao seu viver atual, também sobre esse lado negro, desvairado, obscuro. Que, no que concerne à particular história narrada por PACO ROCA, é o lado dos perdedores e das suas famílias e amigos e do quanto sofreram, de uma forma direta ou indireta, às mãos dos ganhadores, já após o fim da Guerra Civil Espanhola. 

Este livro pede-nos para que não se enterrem as memórias, individuais, particulares, de tantas pessoas que, depois de vencidas na guerra, foram derrotadas, de uma forma definitiva, em tempo de uma aparente paz. Não deixem ficar debaixo da terra, silenciosas, silenciadas, esquecidas, as estórias pessoais ou familiares que também a controem, a alimentam e a conservam. Não há uma genuína História quando só os vencedores a escrevem e a compõem a seu belo jeito e prazer. E, nesse movimento de embelezamento e branqueamento da mesma, descartam-se, ignoram-se e calam-se os factos relativos aos vencidos e aos que estão entre uns e outros.    

A História integral, verdadeira, é, ao fim e cabo, informada, alimentada, recriada e compreendida quer mediante a descrição e análise dos gestos heróicos, benevolentes, tolerantes e generosos praticados por todos os fazedores da pequena e grande história, mas também [e principalmente?] pelos atos violentos, injustificados, vis, indesculpáveis por eles também levados a cabo, que revoltam, necessária e inevitavelmente, a consciência de qualquer cidadão que tenha a sua escala de princípios e valores assente no humanismo, compaixão e justiça.

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O CENTRO HISTÓRICO | Jornal BADALADAS | 28 MARÇO 2025

 


A PROPÓSITO DO DIA NACIONAL DOS CENTROS HISTÓRICOS

O CENTRO HISTÓRICO

1ªparte

por J. Pedro Sobreiro e J. Moedas Duarte

Em 1988 constituiu-se uma Associação dos Municípios Portugueses com Centro Histórico (APMCH) de que Torres Vedras foi um dos 16 municípios fundadores. Este núcleo foi-se alargando até aos actuais 100 concelhos. Em 1993 esta associação decidiu criar o Dia Nacional dos Centros Históricos. Escolheu-se o dia 28 de Março como forma de homenagear o grande historiador e escritor Alexandre Herculano, nascido nesta data, mas em 1810, e que foi um dos grandes defensores do Património Histórico e Cultural nacional.

Este dia comemora-se anualmente com actividades que promovem o conhecimento dos monumentos sediados nos CH, bem como os espaços públicos ou privados neles incluídos, escolhendo-se para cada ano um município onde se realizarão as comemorações oficiais. Este ano será em S. Brás de Alportel.

Das comemorações faz parte a atribuição de prémios para entidades que se distingam na salvaguarda dos valores defendidos pela APMCH. Caso do Prémio Memória e Identidade, que visa distinguir as personalidades que mais se destacaram nas áreas da salvaguarda e da valorização do património cultural, sob o lema “Transformar sem destruir, crescer sem devorar as raízes”. Pretende enaltecer a carreira de quem se destacou ao longo da vida nas áreas da arquitetura, da engenharia, da história e das artes, pugnando sempre pela defesa e pela divulgação dos centros históricos, enquanto conjuntos representativos de valores culturais e artísticos, cuja memória importa preservar e cuja vida se impõe dinamizar. (cf. Site da APMCH)

Este ano, as personalidades escolhidas são João Barroso Soares (que foi presidente da Câmara de Lisboa de 1995 a 2002) e Vítor Manuel Veríssimo Serrão (professor jubilado de História da Arte e autor de obra notável nessa área da historiografia).

Conjunto histórico ou tradicional

Entende-se por “conjunto histórico ou tradicional” todo o grupo de construções e de espaços, incluindo sítios, ruínas arqueológicas ou paleontológicas constituindo um estabelecimento humano no meio urbano e rural, cuja coesão e valor são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitectónico, histórico, pré-histórico, estético ou sócio-cultural (…)   1)

Este conceito de centro histórico foi definido pela primeira vez na Conferência Geral da Unesco - A Salvaguarda dos conjuntos Históricos ou Tradicionais, realizada em Nairobi, em 26 de Outubro a 30 de Novembro de 1976, constituindo uma das áreas que então vieram a ampliar a ideia de Património Cultural, tal como o artesanato, a arqueologia industrial, o mobiliário urbano, as tradições orais e a paisagem.

A sua emergência decorreu da simples constatação de que a envolvente espacial dos chamados “monumentos notáveis” constitui o quadro natural ou construído que lhes está imediatamente associado através de relações estéticas e laços sociais, económicos ou culturais.

Ora, foi nestes anos setenta que se desenvolveu entre nós o incremento da defesa do património, na sequência da revolução democrática de 74, com a criação de um movimento protagonizado por dezenas de associações locais e regionais, entre as quais a nossa.

Não será, pois, de admirar que uma das emergências mais sentidas pela ADDPCTV no seu início se tenha concentrado na salvaguarda e na valorização do nosso Centro Histórico, a braços com os naturais sintomas de envelhecimento, com uma crescente voracidade construtiva e com os desafios do tráfego automóvel, características do ímpeto de modernização e do crescimento urbano, que esses tempos também anunciavam.

O PLANO DE SALVAGUARDA

Assim, perante as ameaças de descaraterização dos espaços e das construções tradicionais, iniciámos uma acção de sensibilização do poder autárquico para a necessidade de criar um instrumento de planeamento que pudesse defender o nosso casco histórico.                                                                                                                             Para além de artigos e de chamadas de atenção na imprensa local, foi importante a realização de uma exposição intitulada “CASTELO - conjunto histórico tradicional, origem de Torres Vedras”, apresentada na antiga sede da Física, em 1980, em que se fez a caracterização do património construído, confrontando os torrienses com as suas memórias, e se apelava à sua salvaguarda. Foi o início de um processo que visou a apresentação de uma proposta-base para a elaboração de um plano de salvaguarda em 1985. A partir deste documento foi criado, pela Câmara Municipal, o Gabinete Técnico Local, em 1987, que procedeu a um rigoroso levantamento dos edifícios, ruas e largos da área definida – com base no suposto perímetro da muralha medieval - e estabeleceu um regulamento de protecção para as diferentes zonas. Este Gabinete, dirigido pelo Arq.  António J. Bastos, contou com a estreita colaboração da direcção desta Associação do Património tendo o Plano de Salvaguarda do Centro Histórico sido aprovado em 1989.

De registar ainda a apresentação conjunta de outra exposição dedicada ao Castelo – montada no torreão, que, entretanto, fora requalificado - aquando da realização do primeiro festival “Castelo de Música”, que decorreu no interior do Paço dos Alcaides, em 1988.

De algumas dissidências entretanto registadas não cabe aqui fazer menção, importando, sim, referir a relevância deste primeiro instrumento de planeamento na contenção de uma escalada de descaracterização do equilíbrio urbano tradicional, valor fundamental na construção de uma identidade que a jovem cidade de Torres Vedras (1979) então se arrogava.

Alguns anos após a sua entrada em vigor, a Câmara Municipal procedeu à pedonização e ao arranjo de alguns arruamentos e mais tarde à reabilitação da praça Machado dos Santos, agora liberta do posto de transformação eléctrica que ocupava o seu centro. Mas o facto mais assinalável foi a demolição da “monstruosa” Fábrica A da Casa Hipólito, que durante anos esteve encostada à igreja de Santiago.

Outra menção interessante é a substituição da iluminação pública, por iniciativa do Vereador Dr. António Carneiro, com a colocação de lanternas de desenho tradicional. Mais tarde proceder-se-ia à iluminação monumental do castelo, pela EDP, por diligência do Engº Manuel Silvestre. Ambas as iniciativas contaram com forte colaboração desta associação.

Outras acções se seguiram ao longo destes anos, nem sempre merecedoras da nossa concordância. O Plano haveria de ser revisto em 2006, registando algumas alterações e aliviando algumas cláusulas restritivas – o termo Salvaguarda deu lugar à Reabilitação, assinalando uma outra forma de ver e de organizar.

Em próximo artigo retomaremos o assunto.

 

1)       Conferência Geral da Unesco- A Salvaguarda dos conjuntos Históricos ou Tradicionais, capítulo 1, alíneas a) e b), Nairobi, 26 de Outubro a 30 de Novembro de 1976.

 

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